Um dia alguém me cochichou, num canto da redação:
– Tem um aí que sabe escrever.
Era uma injustiça, claro. Afinal, todos os jornalistas, em princípio, sabem escrever. Mas a frase tinha sentido, naquele contexto. E provavelmente já continha uma boa dose de fabulação, fenômeno que Renato Modernell descreve muito bem neste seu A notícia como fábula.
Eram os tempos em que Quatro Rodas, uma revista de automóveis em um país que só tinha quatro montadoras e alguns poucos modelos de carros, precisava, todo mês, cativar e prestar serviços aos seus leitores. Importação, nem pensar: era proibida. A solução era lembrar, a todo momento, que dentro de cada carro havia uma pessoa. E criar pautas de interesse dos leitores nesse universo: segurança, viagens, história, educação, economia. Os assuntos técnicos sobre modelos que o público poderia comprar não seguravam a revista, que, a cada mês, era ansiosamente esperada por um grande contingente de leitores. (Aliás, essa questão da periodicidade das publicações também é muito bem analisada por Modernell, nas próximas páginas, como mais um fator de fabulação.)
As vagas, na redação, eram, em sua maioria, ocupadas por jornalistas da área técnica. Então, o grande suprimento de reportagens da chamada “geral” era feito por freelancers. Com o tempo, à medida que surgissem vagas, alguns acabariam sendo contratados.
Aquele que sabia escrever, como todos já adivinharam, era um dos jovens que faziam freelance para Quatro Rodas e um dia seria contratado: Renato Modernell. Sim, o mesmo que hoje é mestre em jornalismo e doutor em letras.
Fabulação da verdade
A revista queria e precisava de gente que enxergasse além da pauta. As pautas, criadas na redação em um ambiente praticamente isolado do cotidiano das cidades, deveriam ser apenas sementes que germinariam se fossem plantadas em um bom terreno, ou seja, um bom repórter. Ou, como talvez dissesse o Modernell de hoje, as pautas precisavam de alguma fabulação.O Modernell daquele tempo já sabia ou intuía isso: suas matérias traziam sempre muito mais do que a pauta pedia.
Só esta qualidade já justificaria a frase lá de cima: tem um aí que sabe escrever.
Aliás, neste livro, ele dá um excelente exemplo de enriquecimento de pauta. O buraco de rua, para quem não sabe, é sinônimo, nas redações, de matéria que nenhum repórter quer fazer. Receber a tarefa de fazer uma reportagem sobre um buraco de rua é sinal de falta de prestígio. Ou de estar sendo perseguido pelo chefe. No comecinho dos anos 1960, não era apenas sinônimo: buraco de rua significava literalmente ir até um bairro, fotografar o buraco e escrever um texto. Em uma cidade esburacada, os jornais atendiam as reclamações de leitores.
Modernell mostra como um simples buraco de rua pode afetar a vida de uma moça que queria ser modelo ou de um comerciante que recebia visitas frequentes da fiscalização. Ou seja, em qualquer matéria, se o repórter enxergar além da pauta e perguntar para si mesmo em que ponto aquilo afeta a vida do cidadão comum, terá um material muito melhor para trabalhar.
Ir além da pauta, porém, é apenas metade da tarefa. A outra metade é colocar tudo isso no papel (perdão, na tela) de maneira cativante, para levar o leitor até o fim do texto. E, é claro, o jovem Modernell também tirava de letra essa segunda parte de uma boa reportagem. Justificava plenamente o sabe escrever.
Alguns colegas diziam que era covardia pois, afinal, o rapaz já era um contista premiado. Outra injustiça: muitos jornalistas que nunca tinham se aventurado pela literatura também escrevem muito bem.
Esse como escrever é discutido pelo professor Modernell nesta obra. Ele vai buscar um exemplo no jazz. Quando perguntaram a Louis Armstrong o que é o jazz, ele respondeu: o jazz não é um que, mas como.
Na verdade, nada impede (a não ser a idiossincrasia de alguns chefes) que a vida real seja escrita em forma de romance. É possível atender a todos os requisitos da pirâmide invertida, todos os W do lide, em forma de romance. [O “lide”, forma aportuguesada de lead, deve, em princípio, responder aos vários “Ws”: O que?, Quem?, Quando?, Como?, Onde?, Por quê? (em inglês, os cinco “Ws”: What, Who, When, Where, Why). O “como” (how) é incluído somente por alguns professores.] Basta saber.
Nem sempre isso é aceito. Tive uma matéria [“Nossa cidade”, edição n. 7, sobre Conceição do Mato Dentro (MG)] publicada na revista Realidade, em maio de 1966, com várias ousadias em relação ao convencional do texto jornalístico. A redação mandou a matéria para o prêmio Esso e vieram me dizer, depois, que ela disputou a final e ficou em segundo lugar, porque era mais uma crônica do que uma reportagem. Se a matéria ficou mesmo em segundo, eu não sei. Mas a simples frase mostrava preconceito quanto à forma do texto: era sim uma reportagem, mas escrita de forma não convencional.
Acadêmico e repórter
O uso de uma forma mais literária e de recursos literários sempre leva a uma fabulação da verdade. Mas recursos tipicamente jornalísticos têm o mesmo efeito, como bem demonstra o professor Modernell.
Enfim, a leitura do A notícia como fábula leva a importantes reflexões sobre a profissão e o trabalho dos jornalistas. Mesmo quando achamos que estamos levando ao público a verdade nua e crua, pode ser que, no próprio esforço para apresentar o fato puro e simples, já esteja contido o fator de fabulação.
Seria o caso até de pedir licença ao mestre Alberto Dines para usar o slogan do Observatório da Imprensa: “você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. Depois da leitura do A notícia como fábula, você também nunca mais vai ler jornal do mesmojeito. O acadêmico Renato Modernell voltou a ser repórter e,mais uma vez, foi muito além da pauta.
***
Onde está a fronteira entre o real e o imaginário?
[do release da editora]
Um texto tem condições de traduzir a realidade? Inquietante e desafiadora, essa pergunta acompanha o escritor, jornalista e professor Renato Modernell desde a década de 1960. Para respondê-la, ele examinou a forma pela qual a realidade e a ficção se entrelaçam nos textos jornalísticos, analisando textos publicados em diferentes veículos e em épocas diversas. O resultado está no livro A notícia como fábula (168 p., R$ 34,90), lançamento da Summus Editorial, em coedição com a Editora Mackenzie.
Modernell parte do pressuposto de que aquilo que consideramos “fato” e “imaginação” tem limites mais tênues e permeáveis do que comumente se supõe. “Sabemos que, em princípio, a missão do jornalista é narrar o que aconteceu, enquanto a do ficcionista é flanar no que poderia ter acontecido. Porém, desde quando essas categorias se separam como a água e o óleo? Não podemos negar que a arte da escrita (e isso vale para ambos os casos) tem poderes de envolvimento muito eficazes”, afirma.
O livro é resultado de um estudo de mestrado concluído em 2004, na USP, e aprofundado posteriormente pelo autor. Um trabalho que dialoga com a fantasia e não se limita ao repertório conceitual das áreas mais familiares do autor, como o jornalismo e a literatura. Suas reflexões passeiam, sem muita cerimônia, pelos domínios da filosofia, da mitologia e da arte. O texto por vezes assume a leveza da crônica, sem que isso prejudique seu rigor acadêmico.
Com base em uma larga experiência simultânea com o jornalismo e a narrativa ficcional, Modernell acredita que um texto de qualidade, assim como o voo de um pássaro, desafia os limites territoriais entre a realidade e a imaginação. Ao criar o conceito dos fatores de fabulação, ele aponta uma série de recursos de escrita capazes de “ficcionalizar” o texto jornalístico. Esses artifícios sutis escapam à percepção não só de quem lê, mas até de quem escreve.
Destinado a estudantes de jornalismo e a todos os que se interessam pela arte da escrita, seja ela baseada na realidade ou na imaginação, a obra tem como principal objetivo estimular a consciência crítica das novas gerações de jornalistas, contribuindo para uma postura diferente no trato da informação e no ofício da escrita.
O autor
Renato Modernell nasceuem 1953 na cidade de Rio Grande, no extremo sul do Brasil. Aos 18 anos radicou-se em São Paulo, onde se formou em Jornalismo. Iniciou a carreira como colaborador da Folha de S.Paulo na Itália. Morou em Roma e Barcelona. Trabalhou nas revistas Quatro Rodas, Globo Ciência, Época e Caminhos da Terra, dedicando-se, sobretudo, às reportagens de viagem. Tornou-se professor universitário e doutorou-se em Letras. Atualmente, dá aulas na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e dirige oficinas de escrita criativa. Ganhou o Jabuti e outros prêmios literários dentro e fora do país. Publicou os seguintes livros: Gird, 2012, Em trânsito, 2011, Viagem ao pavio da vela, 2001, Edifício Mênfis, 1996, Os jornalistas, 1995, O grande ladrão, 1990, Sonata da última cidade, 1988, Meninos de netuno, 1988, O homem do carro-motor, 1984, Meados dos anos setenta, 1979.