Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um passo à frente, outro atrás

‘Excepcionalmente hoje a coluna [do ombudsman] não é publicada.’ A explicação está na edição da Folha de S.Paulo‘ de domingo (13/4, pág. A-8) e, na verdade, dizia aos leitores o seguinte: ‘Desculpem. Ainda não temos um substituto para exercer a Ouvidoria’.


O jornal meteu-se numa enrascada pública, mesmo que tenham desaparecido magicamente as cartas dos leitores reclamando contra a não-renovação do mandato do ombudsman Mário Magalhães. Quando o pressionou a aceitar o fim do boletim diário de críticas pela internet, a direção do jornal deveria ter aventado a hipótese de uma recusa. Não pensou nisso, nem tinha um nome alternativo. E, se tivesse, deveria ter sido anunciado de imediato ou, pelo menos, uma semana depois da cerimônia do adeus de Magalhães, ainda que sua ‘posse’ viesse a consumar-se posteriormente.


E isso acontece num jornal que tem a coragem e a galhardia para diferenciar-se do grosso da grande mídia (e alguns dos seus mais reacionários colaboradores) ao organizar um debate sobre a TV Pública com um imbatível elenco de participantes: os presidentes das duas redes públicas (Tereza Cruvinel e Paulo Markun) e dois dos mais lúcidos observadores da imprensa – Eugênio Bucci e Carlos Eduardo Lins da Silva, ambos colaboradores regulares deste Observatório (ver aqui nota sobre o evento, para assinantes).


As mesmas pessoas que fizeram a tresloucada opção de encostar o ouvidor contra a parede tiveram a sensibilidade para perceber que a despudorada campanha contra a TV Brasil e o conceito de TV Pública empreendida pela ‘imprensa sadia’ (para usar a velha expressão de Gondin da Fonseca) é xiita. Pior: xiita e canhestra.


Quem se não os governos têm condições de bancar uma televisão de qualidade? Sob a égide exclusiva do Ibope será possível fazer um telejornalismo capaz de deixar resíduos informativos, culturais e existenciais?


Teor e atributos


É evidente que o distanciamento ou aproximação da TV Brasil com o governo não será muito diferente dos balanceamentos adotados pela TV Cultura ou pela antiga TVE durante gestões de profissionais como Fernando Barbosa Lima. Então, por que este ataque encarniçado e implacável a uma emissora que tem apenas cinco meses de vida e sequer teve tempo para escolher o seu logotipo?


A Folha deu um passo à frente ao organizar um evento com esta densidade e um passo atrás no caso da dispensa indireta do seu ouvidor. Pela aritmética, empate. No cômputo moral, a perda de um ‘defensor do leitor’ – e nas condições em que ocorreu – pesa mais. Todo jornalista é um ouvidor, todo jornalista é um crítico de jornalismo. Descartar um ouvidor, mesmo que venha a ser plenamente substituído, significa descartar um símbolo.


Alem de dedicar-se à defesa do interesse público o jornalismo não deve desobrigar-se do papel de ‘maldito’. Maldito, no caso, é sinônimo de inconformado, exigente, obstinado, turrão. E solitário. A última profissão romântica tem este nome porque romantismo é algo necessariamente tormentoso, prenhe de exaltações e dilemas.


A decadência apontada pelos consultores de mídia não diz respeito apenas ao jornalismo impresso: o processo jornalístico vem se decompondo por inteiro, perde teor e atributos. Hoje fala-se em ética como poção que se compra na farmácia, mas não existe ética sem dor. Cada decisão jornalística tem que ser onerosa e dolorosa. Bom jornalismo só se pratica com o ranger dos dentes, mesmo nos melhores momentos.


Benditos os malditos.