Em novembro, quando se completam 90 anos da morte de Lima Barreto, é oportuno observar a atualidade e a relevância das considerações deste escritor e jornalista sobre a imprensa que tínhamos há cerca de um século. O que é o jornalismo? É um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade? Escolhida a segunda opção, poderíamos dizer que se trata de um relato dos fatos com fidelidade, isenção e neutralidade?
Há quem sustente a tese do jornalismo isento e objetivo, recorrendo a um argumento que pode ser comprovado hoje nas bancas de jornais: “A prova dos nove de que isso é possível é a comparação entre jornais diferentes. […] No Brasil, o leitor pode verificar que Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo […] destacam sempre mais ou menos os mesmos assuntos. Não é falta de criatividade: é que os jornalistas que neles trabalham, profissionais treinados, sabem reconhecer num enxame de fatos o que é relevante e o que não é.” Este argumento consta num artigo publicado no jornal O Globo (23/01/2007) por Ali Kamel, diretor da Central Globo de Jornalismo.
Embora pesquisadores das áreas de Comunicação, História e Ciências Sociais já tenham formulado críticas contundentes a este conceito de jornalismo, ele é insistentemente trazido à baila por jornalistas em atuação na imprensa. Ou seja, por mais que a população desconfie desta suposta isenção, há quem procure reforçar constantemente essa pretensa imparcialidade de jornais, revistas e outros periódicos. Este quadro exige daqueles que investigam a história do jornalismo um esforço redobrado no sentido de jogar por terra de uma vez por todas a associação entre jornalismo e verdade.
Obra em 17 volumes
Para Kamel, se o jornalismo fosse um “campo de batalha de ideologias, […] os jornais (impressos, digitais, radiofônicos ou televisivos) seriam feitos de acordo com os valores de seus donos e segundo suas verdades. […] Os fatos seriam escolhidos, não por critérios de relevância reconhecidos por qualquer bom profissional, mas conforme os valores de quem escolhe”. Recuar ao início do século 20 nos permite perceber que, naquele tempo, já havia quem abordasse o mesmo tema de forma oposta ao que defende o responsável pelo jornalismo de uma grande empresa do ramo.
Em 1909, Lima Barreto (1881-1922) lançava seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha. A certa altura da trama, o protagonista, cujo nome dá título à obra, apresenta um olhar bastante crítico sobre o jornalismo. Aos seus olhos, trata-se de “um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões”.
Afonso Henriques de Lima Barreto viveu no Brasil que transitou da monarquia à república. Filho de tipógrafo e neto de escrava, tornou-se órfão ainda na infância. O apadrinhamento do Visconde de Ouro Preto rendeu-lhe uma boa formação escolar, que lhe garantiu o ingresso na Escola Politécnica. Mas, ao invés de engenheiro, fez-se escritor e produziu vasta obra constituída de artigos, crônicas, contos, romances e diários. Tornou-se funcionário público para garantir a sua sobrevivência e a do pai, acometido de doença psiquiátrica. Embora o alcoolismo tenha levado o literato a internações forçadas no hospício, jamais internou o pai, de quem cuidou dentro da própria casa, no subúrbio carioca de Todos os Santos. Faleceu precocemente aos 41 anos de idade, no emblemático ano de 1922. Vale ressaltar que hoje, em 2012, quando se completam 90 anos de sua morte, percebemos que somente Caio Prado Júnior teve a ousadia de reunir e publicar a sua obra completa, em 1956, em 17 volumes – jamais reeditados –, pela editora Brasiliense.
Fatos criados e recriados
Curioso é notar que a estreia de Lima Barreto no mundo da ficção tenha ocorrido justamente através da publicação de um romance sobre a imprensa no Brasil da Primeira República. Vejamos um pouco do que o personagem central e narrador tem a nos contar sobre a dinâmica e o funcionamento de uma redação de jornal naquele período. No capítulo VIII, Isaías Caminha fora até O Globo em busca dos préstimos de Gregoróvitch. Não o encontrando no local, pôs-se a aguardar por ele. A espera lhe dá a oportunidade de observar os bastidores da imprensa, que descreve com riqueza de detalhes. Presenciou, por exemplo, a chegada à redação de um “grande romancista de luxuoso vocabulário, o fecundo conteur, o enfático escritor a quem eu me tinha habituado a admirar desde os quatorze anos”, conhecido como Veiga Filho. O motivo de sua ida à redação era para checar se o jornal noticiaria uma conferência que proferira. Em meio à discussão sobre quem redigiria o texto dessa notícia, Caminha presenciou o secretário da redação sugerir que o próprio Veiga fizesse o texto. E, perplexo, viu aquele “homem extraordinário que a gente tinha que ler com um dicionário na mão” acatar a sugestão. Passemos à transcrição literal da cena descrita por Isaías Caminha:
“Eu demorei-me ainda muito e pude ouvi-lo ler a notícia. Começou dizendo que era impossível resumir uma conferência de um artista como Veiga Filho. Para ele, as palavras eram a própria substância de sua arte. […] Veiga Filho acabou de ler a notícia no meio da sala, cercada de redatores e repórteres. Enquanto ele lia cheio de paixão, esquecido de que fora ele mesmo o autor de tão lindos elogios, fiquei também esquecido e convencido do seu malabarismo vocabular, do sopro heróico de sua palavra, da sua erudição e do seu saber… Cessando, lembrei-me que amanhã tudo aquilo ia ser lido pelo Brasil boquiaberto de admiração, como um elogio valioso, isto é, nascido de entusiasmo sem dependência com a pessoa, como coisa feita por um admirador mal conhecido! A Glória! A Glória! E de repente, repontaram-me dúvidas: e todos os que passaram não teriam sido assim?”
Este trecho evoca a consciência de Lima Barreto, que “fala” através de Caminha, sobre o que significava fazer jornalismo naquele tempo – e talvez não só naquele tempo. O que salta da ficção para a realidade é o desmascaramento de práticas características da imprensa. Onde está a verdade e a isenção sobre Veiga Filho e todos os que foram objeto das notícias já publicadas? Não por acaso, o autor associa imprensa a mágica e ilusão. O Globo não informava sobre os fatos, pois em sua redação os fatos são criados e recriados.
Versões comprometidas
Convém observar que a redação d’O Globo, retratada no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, é de um jornal ficcional. Para criá-lo, Lima Barreto teria se inspirado no Correio da Manhã, dirigido por Edmundo Bittencourt (1866-1943) no início do século 20. O escritor pretendia formular uma análise crítica daquele que era um dos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, criado em 15 de junho de 1901. Ao ser lançado, o livro tornou-se assunto frequente em diversas rodas de escritores e jornalistas, nas quais a diversão era “pôr um nome sobre cada pseudônimo” ou personagem. Após a morte do autor, os historiadores Antonio Noronha Santos, Gondin da Fonseca e Francisco de Assis Barbosa abordaram o assunto e indicaram as identidades que estariam por trás dos personagens: o próprio Lima Barreto é retratado no romance como Plínio de Andrade ou Plínio Gravatá, Edmundo Bittencourt como Ricardo Loberant, João do Rio como Raul Gusmão, Afrânio Peixoto como Doutor Franco de Andrade e Coelho Neto como Veiga Filho. Estas são algumas das personalidades que frequentavam as páginas daquele diário e foram recriadas no plano ficcional.
O atual O Globo, editado no Rio de Janeiro, foi fundado somente em 1925 – portanto, após a morte de Lima Barreto –, por Irineu Marinho. Não se trata do jornal satirizado no romance de estreia do “mulato de Todos os Santos”.
Em crônica publicada quase dez anos depois do lançamento de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto já adquirira plena convicção de que o jornal não é o lugar onde a informação pode ser veiculada de forma imparcial e isenta. É, antes, um campo de lutas e embates entre diferentes versões sobre a realidade, versões inegavelmente comprometidas com alguma perspectiva ideológica.
“Poderosos e prepotentes”
Vejamos:
>> “O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para a própria felicidade da espécie humana.”
>> “Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.”
>> “Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar são fechados e não aceitam nada que os possa lesar”.
>> “Dessa forma, quem, como eu, nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.”
Concepção de jornalismo
Em face da compreensão que tem do jornalismo, Lima Barreto chegou mesmo a criar a sua própria revista. Num sábado, em 25 de outubro de 1907, em formato simples e pequeno, 15 x 22 cm, Floreal aparecia para disputar com outras revistas a preferência e o gosto dos leitores. Embora a publicação tenha sido um fracasso do ponto de vista comercial, já que em seu lançamento vendeu pouquíssimos exemplares, um dos seus princípios editoriais é bastante revelador.
Na redação da Floreal, instalada na rua Sete de Setembro 89, 1º andar, no centro do Rio de Janeiro, fizera-se mais do que uma revista nos dias que antecederam a publicação do primeiro número. Era a materialização de um sonho acalentado por um jovem de 26 anos: dirigir a sua própria revista e fazer dela um instrumento de intervenção na sociedade em que vivia. Floreal tinha como editor o próprio Lima Barreto. O artigo inicial de Floreal, uma espécie de editorial, apontava a direção a ser seguida pelo jornalismo que ali se praticaria: “É uma revista individualista, em que cada um poderá, pelas suas páginas, com a responsabilidade de sua assinatura, manifestar as suas preferências, comunicar as suas intuições, dizer os seus julgamentos, quaisquer que sejam.”
Resta ao leitor refletir sobre qual concepção de jornalismo pode lhe permitir conhecer melhor a realidade: o que é pretensamente pautado pela isenção e neutralidade difundidas pela mídia empresarial dos nossos tempos ou aquele preconizado nos escritos de Lima Barreto no início do século 20? O que procura ocultar dos seus leitores uma certa orientação política e ideológica ou o que assume e reconhece a parcialidade sempre presente no olhar de quem subscreve um texto?
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[Denilson Botelho é professor de História da Universidade Federal do Piauí (UFPI)]