Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em quem acreditar?

Alexandre mandou reunir todas as crônicas que se pudesse reunir, contratou escribas para copiarem cada uma, e guardarem a cópia na grande biblioteca que ele insistia em construir. É sabido que aqueles escribas (os precursores da xerox e do ctrl-c+cltrl-v), alteravam o conteúdo, o texto e o contexto, movidos talvez pela vontade de serem cronistas.

Lembrei dessa informação contida na História da Crônica e, em pleno dia dos mortos, contrariando as boas maneiras, questiono a integridade do finado Jornal da Tarde e indago os respectivos entes queridos em pleno velório. Afinal, em quem acreditar: em Alberto Dines, Mino Carta ou Sandro Vaia?

Na coluna de obituário do Observatório da Imprensa leio o texto da redação do UOL, sem autor explícito: “Mino Carta, diretor da revista CartaCapital, concebeu o jornal com a ajuda do jornalista Murilo Felisberto. Os dois foram incumbidos em meados dos anos 60 pela família Mesquita (donos do jornal O Estado de S.Paulo) de criar um novo modelo de jornal no país, mais ousado, diferente do tradicional e inspirado nas mudanças culturais e de comportamento da segunda metade daquela década” (ver aqui).

“Eu tenho boas lembranças daquele tempo e tenho boas lembranças de quem trabalhou comigo. Nós revolucionamos, tanto na paginação quanto no texto. Acreditávamos que o jornalismo era uma forma de literatura, coisa que se perdeu no jornalismo brasileiro. Achávamos que a investigação era fundamental, que reportagens bem trabalhadas e profundas eram fundamentais para o êxito do jornal”, declarou Mino Carta.

No parágrafo seguinte, Mino desfia um rol de fatos históricos destacando que o JT bombou, cito a cassação de Ademar de Barros, guerra no Oriente Médio, deslizamento em Caraguatatuba.

Pergunto: o JT era um personagem? Era para bombar, era ele mesmo, o objeto JT, um sujeito exibido?

Alma de jornalista

No dia anterior eu havia lido Sandro Vaia que abriu seu “réquiem a um jornal que nunca existiu” assim: “O dr. Julinho (Júlio de Mesquita Filho) dizia que o dinheiro não parava de entrar. O jornal fechava as portas, o dinheiro entrava por baixo das portas. Os classificados na época bombavam.” Em seguida vaia: “Um ruidoso fracasso de distribuição. Foi preciso ir recuando o horário de fechamento aos poucos para que a cidade fosse percebendo a existência do jornal.”

New journalism? Vaia crava no final de uma frase: “piradinhos”. O que é isso? (a pergunta é minha):

“O Jornal da Tarde tinha uma redação de piradinhos. Era comandada por Mino Carta, o jornalista que se orgulhava de ter criado e dirigido uma revista sobre automóveis – a Quatro Rodas – sem jamais ter dirigido um, e Murilo Felisberto, um mineiro melífluo e ferozmente inteligente, que se divertia em dançar minuetos de bondades e maldades com aquela redação repleta de candidatos a gênios.

“Eram todos Hemingways em gestação, Godards ainda incompletos, Glaubers em preparação. Procurando bem, atrás daquelas velhas colunas e das velhas mesas de aço seria possível achar algum Proust escondido, que ganhava honestamente seu dinheiro falando mal do trânsito do coronel Fontenelle.”

Sua frase lapidar: “Foi para o espaço porque na verdade o jornal que foi tanta coisa nunca foi nada dentro da empresa que o gerou”.

Isoladamente, ler esta crônica de romantismo rasgado e acidez explícita, é como abrir a janela numa tarde de calor infernal no Rio de Janeiro, cheirar o vento que entra pela baía e pensar “que bom”, mas ao mesmo tempo saber que vem uma frente fria por aí, chuvas e alagamentos.

Um dia antes eu lera o texto de Dines, relido imediatamente, pois, como sempre impecável e robusto, em espaço e tempo.

Quem não gostaria de concluir um dos milhares cursos de jornalismo de uma dessas fábricas de pãezinhos Brasil afora (hoje) e arranjar emprego num jornal assim?: “…tinha fibra, surpreendia, era engraçado, dramático, empolgante, arrasador. Local, nacional e cosmopolita, erudito e popular, político e futebolístico, influente e esculachado. Requintado numa edição, espalhafatoso na seguinte, jornal-revista nos moldes do Herald Tribune que lhe serviu de paradigma inicial”. Essa é a descrição romântica que Dines faz do finado Jornal da Tarde.

Afinal, o que esconde o reino da paulicéia desvairada? O JT morreu porque era um autêntico jornal e todos os jornais nascem condenados a não serem 100% autênticos, do contrário fenecem? A redação do JT era chamada de os “meninos do Ruy”, empregada por Ruy Mesquita, segundo a unanimidade o único Mesquita com alma de jornalista autêntico; então, os “meninos de hoje” não têm o direito de serem autênticos, se quiserem exercê-lo fenecem, mais cedo ou mais tarde?

Drible na censura

Colho uma história de memória, que pode preencher o tempo entre um cafezinho e outro, um soluço, essas coisas que a gente faz em velórios (não suporto velórios, sou como um tio muito engraçado que, para diminuir o sofrimento pela morte de seu irmão muito querido, danou a contar piadas fazendo todos rirem de se engasgar com as lágrimas de dor, só não sei contar piada): existiu em Porto Alegre o Correio do Povo, com tamanha credibilidade pelo leitor gaúcho que, quando o concorrente furava uma notícia, ligavam para o Correio para confirmar se era verdade (o público apurava), dizem. O amigo Walter Galvani, em seu livro Um Século de Poder conta a história da Cia. Jornalística Caldas Junior, que mantinha o Correio do Povo em Porto Alegre, lançara o matutino Folha da Tarde, que saia ao meio-dia (portanto impresso na manhã), em formato tabloide ( o Correio era jornalão) copiando a moda da vizinha Buenos Aires.

Não demorou muito, a Folha da Tarde começou a ter uma segunda edição (precursora da agilidade de hoje dos jornais online) ao cair da tarde, chamada Folha (da Tarde) Final, que saía aos berros Praça da Alfândega afora, pela Rua da Praia e por toda a cidade. Não tardou para a Folha (pós meio-dia) sair de Manhã também (impressa na madrugada, fechada ao virar da meia-noite, portanto com notícia do dia anterior).

Eu mesmo, menino, perambulava por ali, e um dia Mário Quintana, que costumava tomar cafezinho e fumar com o Tio Volci num dos bancos da Praça da Alfândega, me disse para ficar na porta da delegacia e lhe contar rapidamente se acontecesse algo anormal de entra e sai de gente. Acho que, se existiu uma função menor do que o foca, eu fui isso por mais de um dia na Folha da Tarde.

Essa Folha da Tarde, morta junto com toda a empresa Caldas Junior (um crime impune até hoje, como muitos desse Brasil) foi dirigida pelo então “piradinho” Sérgio Jockymann, escritor carimbado da cena gaúcha, que admitira uma vez ter criado a história de um crime hediondo, para aumentar as vendas. Ele também mantinha uma coluna sem autoria conhecida, na verdade com um autor inventado, utilizada para driblar a censura da ditadura militar.

Viva os mortos, uns porque foram muito bons enquanto vivos, outros porque já foram tarde.

Leia também

Parem as máquinas! Outro jornal foi para as nuvens – Alberto Dines

Réquiem para um jornal que nunca existiu – Sandro Vaia

Morto pelo mercado – Luciano Martins Costa

Mino Carta: “Morte do JT me entristece em dobro” – UOL

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[Luís Peazê é jornalista e tradutor; http://www.clinicaliteraria.com.br]