Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Asas de fora, escondendo o bom jornalismo

A Rede Globo, por ser o que é, desperta no público e na própria mídia opiniões adversas, normalmente extremadas. É inegável a capacidade que a emissora tem de produzir entretenimento. A telenovela é o maior exemplo disso. Ao concentrar em seu corpo de profissionais os melhores atores, diretores e autores, faz das suas tramas parte integrante da vida dos brasileiros há algum tempo. E é impressionante como entra ano, sai ano, sem que a qualidade caia. Avenida Brasil é o argumento certeiro contra quem se opõe a isso.

Nas transmissões esportivas acontece o mesmo. Até por deter, em diversos esportes, a exclusividade de transmissão – fato que emperra a diversidade de informação e divulgação, além de que, sem concorrência, a qualidade tende a estagnar –, o público tem acesso privilegiado a vários eventos. Com o poder aquisitivo do brasileiro em alta, os canais pagos estão a um passo, seja em casa ou nos bares. No caso do futebol, as transmissões interativas e repletas de câmeras por todos os lados fazem com o que o torcedor, lamentavelmente, não sinta tanta falta da arquibancada. A violência, os transportes precários, o alto custo dos ingressos e o horário tardio de algumas partidas também afastam o torcedor dos campos.

Mas o que a emissora carioca fez na última semana é o que se pode chamar de “deslealdade jornalística”. Em dois temas distintos, agronegócio e esporte, o maior grupo midiático do Brasil negligenciou informações, ao preferir privilegiar a notícia que lhe é conveniente porque agrada também aos seus. É a empresa (iniciativa privada) se sobrepondo ao canal de comunicação (bem público), deflagrando o conflito de interesses.

Desvirtuamento  da cultura indígena

Em 22/10, a jornalista Eliane Brum publicou no portal da revista Época, veículo pertencente às Organizações Globo, um texto incisivo sobre a situação calamitosa por que passa um grupo de índios Guarani-Caiovás que vive em Iguatemi-MS (ver aqui). Ameaçado de extinção, o grupo recebeu o decreto da Justiça Federal, que exige a saída dos índios dali, com um posicionamento de resistência, muito semelhante ao retratado no livro Enterrem meu coração na curva do rio (Dee Brown), que depois virou filme homônimo. E índios são expulsos, intimidados e mortos em nome do agronegócio, da monocultora, das exportações, enfim, de tudo aquilo que está encalacrado na alma deste país e que atende a interesses de pequenos, porém poderosos grupos.

Dois dias depois (24/10), o Jornal da Globo trouxe uma matéria de pouco mais de dois minutos relatando os benefícios da soja ao país, especialmente para Mato Grosso, o maior produtor nacional. A notícia mostra que em Sorriso (MT), município que ocupa a primeira posição no PIB da agricultura, negociações imobiliárias e cirurgias plásticas são feitas tendo como moeda de troca o grão (ver aqui).

Só que o que o JG não falou é que a prosperidade agrícola do MT, impulsionada pelo comércio da soja, vem em grande parcela à base da expulsão e matança de índios, para que as tribos deixem espaço para o plantio em larga escala. Os poucos índios que restam são encurralados em reservas cada vez menores. Há o desvirtuamento da cultura indígena, esta que foi responsável pelo surgimento do Brasil enquanto cultura, povo, enquanto algo que o identifique perante o mundo, porém renegado.

Acordo de cavalheiros

Ainda que a Globo possa alegar que divulgou tudo isso em um de seus canais, a Época, era compromisso do Jornal da Globo também fazê-lo, não só porque o jornalismo necessita passar por cima de interesses particulares e informar, como também levar em conta que a menor audiência do JG é bem maior que o público que lê a revista. A maioria ficou com o jornalismo fantasioso de William Waack, e não com a informação de fato de Eliane Brum. Enfim, a emissora legaliza e comemora os números do setor primário da economia, ainda que às custas do atentado à vida humana.

Não se recusa aqui o papel da soja na economia brasileira, que emprega muita gente e faz a somatória das nossas riquezas subir. Nem, tampouco, se afirma que todas as lavouras de soja têm em suas terras sangue indígena. Mas ao ser tendencioso, dar as costas ao outro lado e abdicar do viés mais crítico, o jornalismo, neste caso, pecou e deu campo a uma meia-verdade que, como todas as outras, não tem serventia.

A outra derrapada da Globo aconteceu no canal pago SporTV. Na última sexta (26/10), o apresentador André Rizek iniciou o programa Redação SporTV tratando de economia internacional. Segundo marcadores econômicos, o PIB da região britânica cresceu 1% nos meses entre julho e setembro, período que abrigou as Olimpíadas 2012, na contramão do que vive a Europa atualmente, afundada na crise. Tenhamos mais cautela numa análise dessa natureza.

Quatro pontos chamam a atenção: primeiro, o SporTV faz isso para endossar a sua opinião favorável à realização, aqui, dos Jogos, assim como da Copa, a despeito de toda a corrupção que envolve a realização desses dois eventos, especialmente em relação aos processos licitatórios e construção de locais de provas e jogos, quase integralmente não divulgada pelas Organizações Globo, devido ao acordo de cavalheiros que têm com o COB e CBF, em troca da exclusividade de algumas transmissões.

O que é relevante

Segundo, a notícia dá descontinuidade ao noticiário esportivo, já que no dia anterior o líder do Campeonato Brasileiro, Fluminense, havia vencido o Coritiba por 2×1, abrindo nove pontos de vantagem sobre o Atlético-MG. Normal seria que, num programa de esportes, o principal evento esportivo do país ganhasse repercussão ao ver o tricolor do Rio aproximar-se do título. Mas, não. A notícia de destaque foi o crescimento econômico da Inglaterra no terceiro trimestre do ano, ainda que o avanço tenha sido de um magro 1%.

Terceiro, é evidente que a economia da Grã-Bretanha cresceria no intervalo entre julho e setembro. Pessoas do mundo todo foram a Londres e quem vai a uma Olimpíada tem grana e vontade de gastar bastante. O consumo cresce, o dinheiro advindo de todas as partes do planeta gira e seria absurdo se a região que abrigou os últimos Jogos não tivesse números positivos. Quando saírem os índices de outubro a dezembro, muito provavelmente a Inglaterra voltará ao normal, seguindo o ritmo de estagnação ou recessão, a exemplo do restante da Europa. O dado difundido e elogiado no programa é quase fictício por não retratar a conjuntura sob perspectiva mais ampla. Temos, então, uma cifra mais virtual do que real.

Quarto ponto: o fato da economia crescer não representa que os problemas pontuais estejam resolvidos, como transporte público, saneamento, desemprego. Ao contrário, pode até maquiar uma realidade menos promissora, assim como na época do milagre brasileiro da bem extinta e pouco saudosa ditadura militar. O Brasil, por exemplo, sempre foi um país rico, mas dizer que a sociedade o é ou foi não condiz com o que está vigente. Para o Reino Unido, vale a mesma prerrogativa, apesar da diferença entre país rico e população rica ser bem menos díspar do que cá.

A qualidade das produções da Globo, além de alta, atingiu um patamar que nenhuma outra emissora do país tem. Mas que o jornalismo poderia estar mais comprometido com a informação, com a sociedade, poderia. Iria infringir seus próprios interesses e as conveniências de seus “sócios”, mas implementaria o que lhe é cabível, a dura e prazerosa missão de tornar público o que é relevante ao cidadão.

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[Thiago Cury Luiz é jornalista e professor universitário, Getulina, SP]