Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Afinal, do que estamos falando?

Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo. [François Marie Arouet Voltaire (1694-1778), filósofo iluminista francês]

Convidamos o leitor que, com o perdão do trocadilho, já deve estar embriagado com todo este monumental volume de discussões suscitadas com a decisão do governo brasileiro de expulsar o jornalista estrangeiro responsável pelo conteúdo de matéria que desagradou o presidente da República, a dedicar mais alguns minutos de seu tempo a esta temática.

Reconfortamos, entretanto, ao não nos deter em comentar o já comentado. É nossa promessa que repetiremos o estritamente necessário para os argumentos que pretendemos desenvolver nas linhas que se seguem.

Entendo que, se é que existem males que vêm para bem, não podemos (e não devemos) perder a oportunidade de olhar mais de perto a questão que esteve por de trás de todo o espanto da comunidade nacional e internacional com a decisão do atual governo: a mácula que a mencionada decisão impôs sobre o direito à liberdade de expressão e de imprensa no Brasil.

Este texto pretende apontar algumas questões relacionadas à liberdade de expressão, conceito que foi amplamente utilizado nas repercussões que se seguiram ao ato governamental, contudo pouco discutido com uma carga maior de profundidade.

Não raro, quando algo nos parece muito evidente, assumimos sem dificuldade que não há a necessidade de nos determos em maiores explicações acerca da temática em questão. Ora, quando dizemos o Brasil é uma democracia e isto é bom, raramente nos damos ao trabalho de definir democracia, pois todos supomos que nosso interlocutores entendem perfeitamente a mensagem. Da mesma forma, simplesmente tomamos como fato comum que a liberdade de expressão, hoje, se coloca como algo tão sólido nas democracias ocidentais (incluindo o Brasil) que a mera menção a este direito é auto-explicativa.

Nossa defesa é que a realidade, infelizmente, não possibilita tal simplificação. Diversos motivos nos levam a defender que a questão ao redor da liberdade de expressão é mais complexa do que parece: 1) A liberdade de expressão, no Brasil, não está tão consolidada como gostaríamos; 2) Liberdade de expressão não implica ausência de regulamentação sobre o tema; 3) A censura explícita como uma das formas de se impedir a liberdade de expressão não é a única e, talvez, não seja a mais importante; 4) A liberdade de expressão não é garantida igualmente a todos; 5) A liberdade de expressão ideal é condição necessária e suficiente para que os diferentes grupos da sociedade expressem os pontos de conflito político inerentes ao ambiente democrático; 6) A liberdade de expressão real não pode ser compreendida isoladamente no sistema de direitos humanos e tampouco como hierarquicamente superior a outros direitos.

Neste sentido, nesta seqüência pretendemos brevemente discutir a importância da liberdade de expressão para a idéia ocidental de democracia; discutiremos como a decisão recente do governo Lula de cercear a liberdade de expressão, outros acontecimentos deste governo e a conjuntura do sistema de comunicação brasileiro podem ser (ou são) nocivos à idéia de liberdade de expressão. Por fim, apresentaremos algumas discussões conectadas à regulamentação do setor de comunicação e à idéia de liberdade de expressão.

Liberdade de expressão: ápice democrático

É inegável que o direito de se expressar livremente esteve, desde as primeiras elaborações sobre democracia, no rol de condições fundamentais para a garantia de um regime que se diferenciava das autocracias e das oligarquias.

Um dos cumes da democracia direta ateniense, segundo muitos de seus apreciadores, era a possibilidade que os cidadãos tinham de se expressar no areópago. O estudo da doxa (opinião) sempre foi muito caro aos filósofos gregos.

Também nos parece bastante razoável afirmar que diversos projetos de poder que se seguiram à experiência democrática grega ancoraram-se em algum grau de controle do direito a informar e a se informar. As trevas da idade média – as quais segundo muitos historiadores não eram tão densas assim – e as luzes do renascimento estiveram fortemente vinculadas à redução e à ampliação do nível de informação disponível às pessoas em geral.

Mesmo quando a democracia deixa de fazer parte da pauta de opções políticas reais, visto que o seu caráter, até então exclusivamente direto, enfrentava um insolúvel problema de escala, a liberdade (ou a restrição) de expressão continua na lista de preocupações dos recém organizados Estados Nacionais. Aqui ela se afigura como um direito altamente individual. Em 1644, o parlamentar inglês John Milton, no célebre discurso Aeropagítica, faz a mais veemente defesa do direito da liberdade de expressão, estimulado pela censura que a monarquia inglesa queria impor a alguns tipos de livros. Para Milton a liberdade de expressão deveria ser concedida antes de todas as liberdades.

O filósofo inglês Stuart Mill, ao escrever seminal tratado sobre a liberdade, chega a afirmar que a liberdade de expressão é tão fundamental que sequer necessita ser discutida mais a fundo. Assim, a construção de um Estado Liberal, ainda que não necessariamente democrático, está intimamente conectada à capacidade de se assegurar os direitos civis (para utilizarmos a tipologia de T.H.Marshall), dentre os quais a liberdade de expressão tem lugar de destaque.

A invenção dos sistemas eleitorais aponta um caminho para os problemas de escala do governo do povo. As democracias passam, paulatinamente, a ser o regime adotado pelos Estados Liberais. Neste entrelaçamento, a liberdade de expressão passa, novamente, a ser vista como fundamental para a garantia não mais da democracia direta, mas da democracia eleitoral, ou indireta, ou delegativa.

São vários os papéis desempenhados pela liberdade de expressão para a garantia de uma democracia indireta mais vigorosa: o primeiro e mais evidente é permitir ao eleitor que tenha acesso a um conjunto de informações relevantes para tomar sua decisão sobre quem ocupará os postos de representação popular. Em outras palavras, a liberdade de expressão é fundamental para que todos os conflitos políticos se apresentem ao eleitorado. O segundo, com conseqüências bastante amplas, tem a ver com o fato da imprensa (umbilicalmente conectada à liberdade de expressão), especialmente na visão dos federalistas norte-americanos, ser parte integrante do sistema de freios e contrapesos inerente à tentativa democrática. Disto resulta que não há accountability (responsabilidade) efetiva por parte dos governantes eleitos sem liberdade de expressão e sem uma imprensa livre. Em outras palavras, este tipo de liberdade contribuiu para que o mau governo não seja tão mau assim. Um terceiro aspecto que nos parece altamente relevante é o de que a construção de uma esfera pública de discussões (conforme nos alerta Habermas em diversos momentos), central para o aprimoramento da democracia, só é possível em um ambiente onde haja liberdade de expressão e de imprensa.

Não é sem razão, portanto, que mesmo as definições mais enxutas de democracia não se furtam de chamar a atenção para a pertinência de se assegurar a liberdade de expressão através do Estado democrático de direito. Até mesmo os economistas Joseph Schumpeter e Anthony Downs e o cientista político Robert Dahl, freqüentemente associados a uma visão mais procedimental da democracia, sublinham com colorido especial o papel da liberdade de expressão para as suas definições de democracia.

De maneira bastante incisiva, a Corte Interamericana de Direitos Humanos salienta a sua visão acerca da importância da liberdade de expressão para a democracia. Para a Corte…

‘A liberdade de expressão é uma pedra angular da própria existência de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública… É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de exercer suas opções, esteja suficientemente informada. Por último, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada, não é plenamente livre.’

O parecer da Relatoria para a Liberdade de Expressão (2002) da Organização dos Estados Americanos vai mais além e relaciona diretamente a liberdade de expressão à proteção dos direitos humanos e ao combate à corrupção.

Seja como um inalienável direito individual, seja como um importante garantidor da democracia enquanto instituição, a livre expressão vem sendo, paulatinamente, defendida e assegurada por tratados internacionais, decisões de cortes internacionais e Constituições nacionais.

A liberdade de expressão garantida pelo sistema de direitos

A Carta Magna brasileira de 1988 deixa evidente em seu artigo 5o., inciso IX:

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 coloca em seu artigo 19:

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

A ampla sustentação do direito à liberdade de expressão tem na garantia conseqüente da liberdade de imprensa um de seus resultados mais relevantes. Neste sentido, a Declaração de Chapultepec, redigida em 11 de março de 1994 no México e assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em agosto de 1996, não só coloca, como o fizeram Milton e Mill, a liberdade de expressão como a mãe de todas as liberdades, como também salienta a relevância e a centralidade da liberdade de imprensa:

Sem liberdade não pode haver verdadeira ordem, estabilidade e justiça. E sem liberdade de expressão não haverá liberdade. A liberdade de expressão e da busca, difusão e recepção de informações, só se exercerá se existir liberdade de imprensa. (Declaração de Chapultepec, preâmbulo)

Na mesma linha das outras convenções supramencionadas, a Convenção Americana de Direitos Humanos também dedica especial atenção à liberdade de expressão em seu artigo 13:

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Este direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, já seja verbalmente ou por escrito, ou de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua eleição.

O Estado brasileiro é signatário, foi co-autor e, muitas vezes, estimulador destas declarações. Se não bastasse isto em duas reuniões hemisféricas, a de Santiago e a de Quebec, o governo brasileiro reiterou, juntamente com os demais países do continente presentes, sua intensa defesa da liberdade de expressão. Lê-se na declaração de Santiago (1998):

Coincidimos em que uma imprensa livre desempenha um papel fundamental [em matéria de Direitos Humanos] e reafirmamos a importância de garantir a Liberdade de Expressão, de informação e de opinião. Celebramos a recente designação de um Relator Especial para a Liberdade de Expressão, no marco da Organização dos Estados Americanos.

Portanto, nos parece não haver dúvidas quanto à consolidação de um marco jurídico nacional e internacional amplamente favorável às liberdades de expressão e imprensa. Tais direitos, ademais, ao menos até 2002, têm sido repetidamente defendidos pela nação brasileira, o que, não obstante, não garante que eles venham sendo assegurados na prática e, muito menos, que não tenham ocorrido incursões para driblá-los ou contorná-los, muitas vezes sem maiores pudores.

O governo Lula e a liberdade de expressão

O Brasil possui problemas estruturais e institucionais que representam forte ameaça à liberdade de expressão. Tais problemas, que não são exclusivos do governo Lula – apenas continuam com ele –, devem ser, em nossa visão, amplamente debatidos pela sociedade brasileira, sob pena de continuarmos contando com uma liberdade de expressão frágil, bastante longe do ideal vislumbrado pelos instrumentos normativos há pouco apresentados. Voltaremos a esta discussão mais à frente.

No momento, ocupar-nos-emos de algumas marcas registradas do atual governo no que diz respeito a pequenos e grandes atentados contra a já não tão robusta liberdade de expressão e de imprensa.

O episódio mais grave, ao que tudo indica, é o caso que estimulou a redação deste artigo: a expulsão do correspondente do The New York Times (a qual, no momento em que escrevo, foi revogada pelo STJ e, posteriormente, pelo presidente da República).

Uma questão fundamental aqui é se a decisão do governo (independentemente de seus desdobramentos) efetivamente se configura em uma ameaça presente e futura à liberdade de expressão e de imprensa, conforme foi alertado pelos mais diferentes atores da sociedade nacional e internacional.

Alguns articulistas dos jornais brasileiros afirmaram que a decisão governamental foi descabida, mas era totalmente vinculada ao caso específico da matéria do Times que tanto desagradou o presidente da República. Neste sentido, não teria por que insistir na tese de que tal decisão implicava risco presente ou futuro para a liberdade de expressão no país.

Ora, a estes senhores e senhoras pensamos ser relevante sublinhar que a abertura de precedentes nos regimes democráticos sempre precisa ser avaliada com bastante cuidado. Além disso, nos regimes democráticos, por definição, o objetivo número 1 das instituições é salvaguardar a própria democracia. Neste sentido, parece não fazer sentido que se deva esperar que uma ação que fronte as estruturas democráticas só venha a ser condenada e evitada quando se tornar freqüente o suficiente para não termos dúvida de que ela se constitui em ameaça ao regime. O bom senso manda, ao menor risco, criar as salvaguardas para que tal ação não possa ser mais executada.

Portanto, a despeito das sabidas ligações históricas do atual presidente com a defesa da democracia, a decisão da última semana (dentre outros episódios que estão relatados abaixo) me trouxe à memória o alerta contido na poesia de Eduardo Costa:

No caminho com Maiakovski

Na primeira noite eles se aproximaram

E roubaram uma flor

Do nosso jardim…

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem:

Pisam as flores,

Matam nosso cão …

E não dizemos nada.

Até que um dia

O mais frágil dentre deles

Entra sozinho em nossa casa,

Rouba-nos a luz e,

Conhecendo nosso medo,

Arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

No futuro arrancarão a nossa voz? Não sabemos. Provavelmente não. A indagação é: estamos dispostos a pagar para ver? Nós não.

A necessidade de forte indignação em relação à atitude do governo nos parece estar bastante bem demonstrada com a defesa de que o mero risco à democracia já é motivo suficiente para se acender todas as luzes de alerta. Contudo, algumas palavras do presidente precisam ser analisadas com cuidado, pois tais palavras podem indicar que não foi um mero deslize, ou seja, podem indicar que houve uma intenção deliberada de punir o resultado (desastroso, por certo) da utilização do direito de se expressar livremente feito por um repórter: em algum momento o presidente diz algo como ‘foi uma punição exemplar’.

Ou bem o presidente não quis dizer o que disse ou bem disse algo com o que deveríamos nos preocupar. Se não estou enganado uma punição exemplar é aquela que indica a violadores potenciais de uma determinada regra que, caso venham a violá-la no futuro, receberão uma punição tal qual aquela que foi aplicada em momento anterior a um sujeito que transgrediu a mesma regra. Se este raciocínio estiver correto e se o presidente quis dizer o que está dito, parece-me que, claramente, um aviso foi dado: casos como estes terão a mesma sentença no futuro. Por fim, também nos soa sintomático que integrantes do governo da Venezuela e o ex-ministro da Justiça do governo Geisel tenham apoiado publicamente a decisão.

Esperamos ser clarividente que a decisão inicial do presidente viola não só a Constituição Federal, mas todas as declarações mencionadas, das quais o Brasil é signatário. Mais especificamente, foram violados, pelo menos, os princípios 5 e 6 da Declaração de Chapultepec, e os itens 11 e 13 da Declaração dos Princípios da Liberdade de Expressão aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (108ª Sessão Ordinária). Abaixo reproduzimos os princípios pertinentes da Declaração da CIDH:

11) Os funcionários públicos estão sujeitos a serem mais escrutinizados por parte da sociedade. As leis que penalizam a expressão ofensiva dirigidas aos funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, são contra o direito à liberdade de expressão e o direito à informação.

13) A utilização do poder do Estado e dos recursos públicos, a concessão irregular e discriminatória de propaganda oficial, o cancelamento de concessões de rádio e televisão visando a castigar, premiar ou privilegiar os comunicadores sociais e os meios de comunicação em função dos seus diferentes estilos informativos atentam contra a liberdade de expressão e devem ser proibidos por lei. Os meios de comunicação social têm o direito de exercer suas funções de forma independente. Pressões diretas ou indiretas com o objetivo de silenciar o trabalho informativo dos comunicadores sociais são incompatíveis com a liberdade de expressão.

Mas nem só de cancelamentos de vistos vive o atual governo, infelizmente. O difícil relacionamento entre os jornalistas e o governo Lula em seu início foi amplamente divulgado pela imprensa escrita brasileira. A situação chegou a patamares tão periclitantes que gerou um protesto coletivo dos jornalistas credenciados para cobrir o Palácio do Planalto e um protesto do sindicato de jornalistas do DF.

Ao que tudo indica, não foram poucos os episódios que motivaram a indignação dos profissionais da notícia. Todos eles, sem embargo, pareceram estar relacionados a diferentes tipos de restrição da informação. Situação grave muito grave. À exceção das informações que podem abalar a segurança nacional – que para o bem das democracias não devem ser tantas assim –, todas as outras devem estar à disposição dos interessados em fiscalizar as ações do governo. No limite, todos os cidadãos. De forma mais específica, os diferentes órgãos que têm como uma de suas atividades fim fiscalizar o governo; dentre eles, é claro, se encontram os órgãos de imprensa (especialmente, os não oficiais). A Relatoria sobre Liberdade de Expressão da OEA tem uma interessante visão acerca das implicações da retenção de informações que deveriam ser de domínio público:

Em conseqüência, a informação é benéfica para uma melhor alocação dos recursos existentes numa sociedade. Por outro lado, a sociedade toda paga pelos dados que formam a informação pública: a apropriação, por parte dos funcionários, desta informação é, de acordo com Stiglitz, um roubo do mesmo calibre ao de qualquer outro bem público.

Episódios

O então ombudsman do jornal Folha de S. Paulo tratou em sua coluna de 23 de março de 2003 das queixas dos jornalistas em relação à Secretaria de Imprensa da Presidência da República. Em artigo de 31 de dezembro de 2003, ‘Aprendendo a ser vidraça’, os jornalistas do Estado de S. Paulo João Domingos e Tânia Monteiro descrevem ‘pequenas’ intolerâncias do governo ao lidar com a imprensa. Agressões a jornalistas praticadas pelo titular da Secretaria de Imprensa da Presidência e relatadas pelos jornais não parecem condizentes com o cargo e muito menos com a liberdade de expressão.

Em nossa visão os episódios passam a tomar dimensões ainda mais significativas quando, neste exato momento, está sendo desenhado pelo BNDES um grande empréstimo salva-vidas para os grupos de comunicação social do país. Declarações do ministro da Secretaria de Comunicação do governo que deixam a entender que os ‘jornalistas precisam tratar de temas mais positivos’, ao mesmo tempo em que se discute uma ajuda de tais proporções são, no mínimo, questionáveis.

Novamente, não estamos dizendo que o governo vai utilizar a sua posição privilegiada de emprestar (ou não) bilhões de reais para os meios de comunicação (muitos deles desesperadamente necessitados da ajuda) para ‘estimular a produção de notícias menos desagradáveis’. Entretanto, a mera possibilidade de que isto ocorra, talvez em mais um arroubo como aquele do cancelamento do visto, já se constitui em razão suficiente para a preocupação de todos.

Não bastassem os casos envolvendo diretamente a liberdade de expressão e de imprensa, outros também deixam os versos de ‘No caminho com Maiakovski’ especialmente vívidos na memória: expulsão de membros do partido que estavam defendendo exatamente aquilo que a sigla defendia poucos meses antes de assumir o poder; utilização de prédios públicos para divulgar a estrela símbolo do partido; estranho comportamento em relação aos arquivos referentes a atos cometidos pela ditadura militar.

Antes que me expulsem, saliento que não estou aqui tecendo nenhuma teoria da conspiração. Não tenho a menor condição de afirmar, com absoluta certeza, de que os episódios relatados pela imprensa possam ser entendidos como uma clara característica autoritária (no pior sentido da palavra) do atual governo. Entretanto, são casos flagrantemente antidemocráticos e, mais do que isso, podem ser altamente potencializados com um instrumento de poder como o BNDES. Por isso, a eterna vigilância por parte dos diferentes atores – Congresso, Judiciário e sociedade civil – mais do que nunca deve ser aplicada. Em relação ao empréstimo do BNDES não bastam apenas eterna vigilância e transparência, faz-se fundamental uma discussão mais ampla – que envolva outros atores além dos financeiramente interessados no assunto.

Neste sentido, gostaríamos de recordar um trecho de declaração conjunta do Relator Especial da ONU sobre a Liberdade de Opinião e Expressão, do Representante da OSCE sobre a Liberdade de Imprensa e do Relator especial da OEA sobre Liberdade de Expressão [o texto integral da declaração está anexado ao supramencionado Relatório 2002 da OEA sobre a situação da liberdade de expressão]:

Comercialização e liberdade de expressão

§ Os governos e os órgãos públicos nunca devem abusar da custódia das finanças públicas para tratar de influenciar no conteúdo da informação dos meios de imprensa; o anúncio de publicidade deve basear-se em razões de mercado.

§ Os proprietários dos meios de imprensa têm a responsabilidade de respeitar a liberdade de expressão e, em particular, a independência editorial.

Brasil, mostra a tua cara

Desafortunadamente, a liberdade de expressão no Brasil não sofre tão somente de ataques momentâneos; de forma mais grave e mais difícil de ser resolvida, há sérios problemas estruturais.

A liberdade de expressão nunca esteve tão centralmente na pauta como agora – dada a repercussão do cancelamento do visto. Logo, conforme já salientamos, é imprescindível que não percamos a oportunidade de apontar os outros problemas que fazem erodir direito tão fundamental.

Para que muitos leitores, não sem razão, fiquem com a impressão de que este articulista está enlouquecendo ao insistir na tese de violações estruturais do direito à liberdade de expressão, recorro a uma medição mundialmente feita pela organização não-governamental Freedom House (www.freedomhouse.org). Tal instituição acompanha, há várias décadas, a quantas anda a liberdade nas distintas nações do globo. A partir de vários critérios, portanto, a instituição oferece anualmente um ranking dos países mais livres e menos livres do planeta.

Paralelamente ao ranking geral do nível de liberdade dos países, a ONG publica, também anualmente, um ranking de liberdade de imprensa. Tal ranking é construído a partir das informações obtidas pela instituição acerca de 3 conjuntos de critérios: legais (leis e regulamentações que garantem ou obstruem a liberdade de expressão); políticos (formas políticas de se controlar a liberdade de expressão, como censura) e econômicos (como o sistema de propriedade do setor).

A partir da coleta das informações são atribuídas notas aos critérios e, ao final, os países podem ter uma pontuação global entre 0 e 100 pontos, sendo a nota 0 um indicador de total liberdade de imprensa e a nota 100 de total restrição. A instituição trabalha com 3 grandes categorias de países: países com médias que variem entre 0 e 30 pontos são considerados livres, entre 31 e 60 temos os países parcialmente livres e entre 61 e 100 os países não livres.

No topo da lista (ano 2004, a qual reflete o estado de liberdade no ano de 2003) encontramos Dinamarca, Islândia e Suécia, com nota 8, seguidas por Bélgica, Noruega e Suíça, com nota 9. O Brasil está na 80ª posição; juntamente com México, Mongólia e Cabo Verde, recebeu nota 36 e é considerado parcialmente livre no quesito liberdade de imprensa.

O que poderia explicar uma posição como esta? Diversas questões podem e merecem ser abordadas; iremos nos concentrar apenas naquelas que julgamos ser mais relevantes.

Concentração da propriedade

A forte concentração (horizontal, vertical e cruzada) da propriedade dos meios de comunicação no Brasil (bastante bem documentada) implica em potencial redução da liberdade de expressão. Na linha do que argumentamos em outro momento (cf. artigo ‘Televisão no Brasil: bônus sem ônus?’, pp. 324-329, publicado no livro Remoto Controle: Linguagem, Conteúdo e Participação nos Programas de Televisão para Adolescentes, 2004, editado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), pelo Unicef e pela editora Cortez, com o patrocínio da Petrobrás), entendemos que quanto maior a concentração dos meios de comunicação, menor a quantidade de grupos que terão voz através destes meios. O problema de escala da democracia direta ateniense (é impossível que bilhões de pessoas tenham voz no Areópago) foi, em grande medida, resolvido com o advento dos meios de comunicação: a mensagem pode chegar a bilhões de pessoas. Entretanto, na contramão do que ocorre com a comunicação face a face, a mensagem agora passa por um intermediário, a mídia. Este mediador se constitui em filtro importante entre os produtores da mensagem e os receptores e, logo, pode exercer significativo controle sobre a(s) mensagem(s) que serão, efetivamente, transmitidas ao receptor final. Em um cenário de ampla concentração este controle é, evidentemente, potencializado.

Relação entre políticos e mídia

A igualmente documentada posse de meios de comunicação por políticos de expressão local, regional e nacional pode se configurar em importante entrave à liberdade de expressão, dado que, não raro, conflitos de interesse terão lugar entre as redações e os donos do poder.

Propaganda oficial

Os elevados volumes de recursos advindos dos anúncios do governo federal, dos governos estaduais e dos governos municipais, assim como a elevada dependência destes recursos para a sobrevivência de muitas empresas de comunicações igualmente podem se constituir em instrumento para a limitação da liberdade de imprensa.

Limbo regulatório

Nossa lei de imprensa é de 1967, portanto foi produzida no e pelo regime militar; nosso código de telecomunicações é de 1962. Claramente, estes dois diplomas legais estão desatualizados em relação ao que reza nossa própria Constituição e em relação às discussões mais recentes no que diz respeito aos meios de comunicação de uma maneira geral e particularmente à liberdade de expressão. Com leis tão defasadas, e no caso da lei de imprensa com vários dispositivos inconstitucionais, vivemos em um limbo regulatório. Tal situação tem duas grandes conseqüências:onde não há regulação, há uma sensação de que tudo é permitido; para evitar este vale tudo, Ministério Público e Judiciário têm chamado a si a missão de fiscalizar, enquadrar e punir os eventuais erros da imprensa. Entretanto, na falta de um diploma legal, discutido pelos representantes da sociedade, esta ação do MP e do Judiciário acaba sendo desordenada e, não raro, acaba ultrapassando os limites do razoável. Limites estes que deveriam estar expressos e estabelecidos em uma legislação pertinente.

Em um cenário como este, não é de se espantar que muitos afirmem que as liberdades de expressão e de imprensa sofrem ameaças concretas e contundentes no Brasil. Tal situação, assim como o episódio do cancelamento do visto, deveria, no mínimo, gerar preocupações e indignação de iguais proporções.

Liberdade de Expressão, regulamentação, censura e o colete à prova de balas

Certa vez um excelente professor de Metodologia das Ciências Sociais nos disse que a ideologia é um ‘colete à prova de balas’. Desconfiamos que a atitude dos empresários dos meios de comunicação de – a qualquer sinal – de se discutir a regulamentação do setor, falarem em censura se configura na mesma estratégia de encerrar a discussão sem discussão. Assim como a ideologia emperra o debate, esta evocação da censura como sendo a conseqüência inevitável de qualquer regulação que se queira fazer sobre o setor acaba por sempre colocar um ponto final na deliberação, é um campo de força, um colete à prova de balas.

Certamente, este argumento (o da censura) tem muita força, por diversos motivos. Primeiro, mais impressionístico, porque ainda está muito presente nos corações e mentes de boa parte dos formadores de opinião e dos decision makers (mesmo aqueles que não têm ligações perigosas com as empresas de mídia) os 20 anos de vigência do regime autoritário que varreram a liberdade de expressão, opinião e informação do cenário brasileiro; logo, qualquer mínima chance de volta de instrumentos de censura é altamente rechaçada. A forma como atual governo tratou o artigo do New York Times confere ainda mais fôlego a este tipo de argumentação.

Segundo, o artigo 5º, inciso IX da Constituição Federal de 1988 é utilizado como argumento indiscutível de que nada pode afetar a liberdade de expressão. O controle de conteúdo, portanto, aparece como o grande calcanhar de Aquiles da discussão regulatória. Sempre rotulado de ‘censura’ este tipo de controle é de difícil aceitabilidade nas mais diferentes sociedades, especialmente pela maneira tortuosa como é conduzido o debate. A liberdade de expressão implica que todos os grupos conflitantes ou diferentes na sociedade tenham o seu direito à voz assegurado. Como podemos facilmente verificar, pouquíssimos são aqueles que têm este direito assegurado em uma mídia como a brasileira, pois poucas são as vozes que ganham espaço na esfera pública. Que liberdade de expressão é esta? Este cerceamento do direito de voz não é uma forma muito mais agressiva de censura do que o controle democrático do conteúdo?

Quando falamos em controle estamos nos referindo, genericamente, a diferentes instrumentos que permitiriam uma maior pluralidade de vozes nos meios de comunicação e, por conseguinte, uma maior liberdade de expressão. Tais controles vão desde ações afirmativas até respostas institucionalizadas a situações como aquela recentemente enfrentada pelo Presidente da República. Um direito de resposta bem regulamentado pode ser uma saída interessante nestes casos. O próprio Relatório da OEA, ao qual já fizemos menção, chama a atenção para este fato:

De acordo com o artigo 14 da Convenção Americana, ‘toda pessoa afetada por declarações falsas ou agravantes emitidas em seu prejuízo através de meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral, tem direito a realizar pelo mesmo meio de difusão sua retificação ou resposta nas condições que estabeleça a lei’. Este direito está relacionado com o direito à liberdade de expressão e oferece um recurso para reparar os danos que possam ocasionar a uma pessoa no exercício do direito à liberdade de expressão, sem interferir indevidamente no exercício do mesmo.

Aliás, a liberdade de expressão é, como sugere o discurso de muitos arautos da não censura, realmente, inversamente proporcional ao controle de conteúdo. Ou seja, à medida que todos os grupos tiverem acesso aos meios de comunicação, a necessidade de se controlar o conteúdo desaparece, dado que todos poderão, democraticamente, contestar as informações que lhes pareçam equivocadas.

Enquanto isto não ocorre, este direito meia-sola de ‘liberdade de expressão’ que temos aí precisa ser questionado e em confronto a ele cabe uma pergunta: porque o direito à liberdade de expressão é anterior, por exemplo, ao direito dos jovens ou das mulheres? Por que, em nome desta liberdade de expressão, a sociedade deve aceitar profundos desrespeitos aos direitos humanos? Por que deve aceitar programações que desrespeitam os parâmetros éticos que já estão dados pela Constituição Federal?

É óbvio que estes dois argumentos (o da não censura e o da liberdade de expressão) são pertinentes. O que não é pertinente é o uso que se faz deles. A defesa irrestrita da liberdade de expressão, caso esta pudesse ser levada às suas últimas conseqüências, seria condição necessária e suficiente para eliminar os problemas advindos da mediação imposta pelos meios de comunicação de massa desde o seu advento. Há aqui uma ‘falha de mercado’; logo necessitamos de regulamentação.

Evidentemente, qualquer pessoa na rua pode expor suas idéias sem ser encarcerado por isto. Os grupos antagônicos da sociedade podem até expor suas idéias em seus sítios na Internet. Contudo, a liberdade de expressão está associada à amplitude do discurso de quem a detém. Ter liberdade de expressão às 20h em rede nacional de televisão, é muito diferente de ter liberdade de expressão subindo no banco da praça.

Assim, aos senhores proprietários dos meios de comunicação, gostaríamos de dizer que no momento em que a liberdade de expressão for garantida a todos, através dos meios de comunicação de massa, nenhuma regulamentação adicional será necessária.

Ah?! Mas, isto não é possível. Então nesse caso há a necessidade de se discutir, democraticamente, uma regulamentação apropriada para o sistema de comunicação de massa. O que, desde logo, nem de longe passa por medidas ao arrepio da ordem constitucional como a adotada pela Presidência da República.

Liberdade de expressão e outros direitos

Já verificamos que há uma ‘falha de mercado’ na garantia constitucional da liberdade de expressão. Com a introdução dos meios de comunicação de massa a utilização deste direito passa a se dar de maneira desigual.

Dito nua e cruamente: alguns têm mais liberdade de expressão do que outros, ou alguns são mais iguais do que os outros. Resolver esta questão é tarefa central de qualquer regulamentação.

Diversas saídas estão no horizonte dos legisladores para o equacionamento deste complexo problema: 1) Garantir a pluralidade de vozes nos meios de comunicação (começando pela garantia de uma propriedade plural dos meios); 2) Delinear como o direito à liberdade de expressão se coloca diante de outros direitos (por exemplo, em nome da liberdade de expressão um canal de televisão pode se declarar e se comportar de maneira anti-semita?); 3) Deixar que os tribunais superiores definam os limites da liberdade de expressão, como tem ocorrido em diversos países; 4) Garantir este equilíbrio de vozes com um empoderamento dos meios públicos de comunicação.

O ponto 1 já foi foco de discussão em diversos momentos neste texto. O ponto 3 é especialmente importante: se tudo é liberdade de expressão, nada é. Logo, o Supremo Tribunal Federal poderia interpretar de maneira mais clara quais são os limites deste preceito constitucional no Brasil. Até o momento, a egrégia corte parece ter ido por caminhos meio díspares: ora, parece indicar que a liberdade de expressão é irrestrita, ora parece favorecer outros direitos. A ver.

O segundo ponto é especialmente interessante dada a experiência internacional. Os órgãos reguladores de alguns países têm sido enfáticos em considerar que a proteção a outros direitos deve entrar na balança (para além da liberdade de expressão) quando os meios de comunicação estão no olho do furacão das discussões.

Neste sentido, nos parecem mais do que perfeitas as palavras encontradas no Novo Código de Conduta para Radiodifusores preparados pela autoridade reguladora independente da África do Sul (ICASA), citado por Gallagher (pp. 26 e 24):

The outcome of disputes turning on the guarantee of freedom of expression will depend upon the value the courts are prepared to place on that freedom and the extent to which they will be inclined to subordinate other rights and interests to free expression. Rights of free expression will have to be weighed up against many other rights, including the right to equality, dignity, privacy, political campaigning, fair trial, economic activity, workplace democracy, property and most significantly the rights of children and women. (ICASA, New Code of Conduct for Broadcasters, para. 7, emphasis added; see www.icasa.org.za) [Itálico no original].

In this minefield it is, however, important to work towards frameworks that encourage reflection on the potential conflicts between human rights, freedoms and responsibilities, and which acknowledge that ‘rights’ have a different legal basis from ‘freedoms’ (see McIver, 2000).

Conclusões

Cremos que as principais conclusões ainda necessitam ser estabelecidas, dado que ainda contamos com um debate muito tímido em relação a todos os dilemas e questionamentos que estão ao redor da macro questão da liberdade de expressão.

Procuramos defender três grandes idéias neste artigo: 1) Os episódios recentes são fonte proveitosa para iniciarmos e aprofundarmos este tão necessário debate; 2) Os arranhões à liberdade de expressão são arranhões à democracia e precisam ser observados com cuidado; 3) Debater sobre a liberdade de expressão implica adentrar na discussão ampla de uma regulamentação para o sistema de comunicação social, a qual necessita, urgentemente, entrar na agenda da sociedade brasileira.

Ao final, entre mortos e feridos, temos a impressão de que todos perderão. Tal perda não poderá ser revertida fingindo-se que nada aconteceu, e a reversão só se dará quando conseguirmos assumir que há problemas estruturais graves como pano de fundo para tudo o que ocorreu na última semana.

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Pesquisador-associado do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP/CEAM) da Universidade de Brasília