Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Hollywood na crise Bush vs. Chávez

Estranhas coincidências. A vida copia a arte ou será que é a arte que inspira a vida? Vejamos um caso curioso.

** Paris, 4 de março de 2007 – Os telespectadores do canal France 2 assistem aos detalhes de um frustrado complô para assassinar o presidente da Venezuela. Numa insuspeita tarde de domingo, a tela do canal público francês mostrou a história de uma missão humanitária organizada por uma ONG norte-americana para prestar serviços de saúde às populações da Amazônia sul-americana. Por motivos desconhecidos, os profissionais adentram sem autorização o território venezuelano. Em Caracas, o serviço secreto nacional descobre que, entre os integrantes da missão humanitária, havia dois assassinos de aluguel. Os mercenários foram contratados para matar o mandatário da Venezuela.

** Caracas, 4 de março de 2007 – O presidente venezuelano, Hugo Chávez, em entrevista ao programa José Vicente Hoy, denuncia que a CIA trabalha para tirá-lo da cena política. Duas opções estariam sendo analisadas para assassiná-lo: um atentado com carro-bomba ou o uso de um míssil para derrubar o avião presidencial. A CIA estaria se valendo da ajuda do Departamento Administrativo de Segurança (DAS) colombiano para ajudar na tarefa.

** Washington, 5 de março de 2007 – Às vésperas de uma viagem à América Latina, o presidente dos EUA, George W. Bush, promete enviar em junho o navio militar médico USS Comfort para atender 85 mil pacientes latino-americanos. Parte da ação humanitária se daria em terras do Peru, Equador, Colômbia, Guiana e Suriname, países que circundam a Venezuela – coincidentemente, o mesmo espaço visitado pela ONG apresentada pelo canal France 2.

Entre estes três cenários, o primeiro constitui uma obra de ficção da série norte-americana intitulada, em francês, DOS – Division de Opérations Spéciales (não confundir com DAS – Departamento Administrativo de Segurança, que, segundo Chávez tenta matá-lo) –, e que retrata as operações de espionagem organizadas pelo Pentágono sob o comando de uma mulher secretária de Estado. O segundo revela um forte temor do governante venezuelano em ser derrubado pela força e, o terceiro, uma proposta de política internacional que certamente irá se contrapor aos milhares de médicos cubanos que atendem pelos rincões latino-americanos. É novamente aquela história de Uncle Sam contra o Comandante Fidel.

Série sintomática

Em DOS, pelo script de Larry Moskovitz, a idéia do atentado ao presidente venezuelano – cujo nome nunca é mencionado – é dos grandes empresários norte-americanos do petróleo, descontentes com a nacionalização da exploração das reservas. O roteiro data de 2005, mas, coincidentemente, as últimas nacionalizações ocorreram há poucas semanas. O seriado denuncia que as ‘expropriações’ são fruto de uma ação planejada pelos chineses. O governo de Pequim estaria pagando propina ao presidente venezuelano – em contas numeradas na Suíça – para que fosse decretada a nacionalização e, em seguida, a realização de novos contratos numa parceria entre China e Venezuela. Assim, Washington ficaria desprovido de um dos seus principais fornecedores de óleo e Pequim não só reforçaria o atendimento de suas necessidades, como também infligiria um golpe à economia dos EUA.

Para que Chávez, digo, para que o não-revelado chefe de Estado da Venezuela não seja assassinado, um comando criado pelo Pentágono é enviado às matas amazonenses para localizar a missão de saúde da ONG. O espaço aéreo da Amazônia, incluindo o brasileiro, é alvo de uma ação eletrônica: todos os radares deixam de funcionar – não se sabe se algum avião caiu nesse meio tempo – para que os marines do Uncle Sam localizem e neutralizem os falsos missionários e, como polícia do mundo, evitem mais um atentado a um chefe de Estado de uma nação do Terceiro mundo. No rastro dessa ação, eles deixam mortos na selva alguns soldados venezuelanos que também buscavam os mercenários. Por que será que não foi pensada uma ação conjunta das duas forças?

Que explicações existiriam para que o episódio de DOS fosse exibido na TV francesa no mesmo dia em que Chávez anuncia que querem matá-lo e às vésperas do anúncio do envio de uma missão médica à região? Talvez nenhuma, mas o fato de um seriado trabalhar o imaginário dos telespectadores de que um presidente pode ser assassinado porque teoricamente ele não atende aos interesses do grande capital internacional, ou prejudica os projetos dos Estados Unidos, é bastante sintomático. A vinculação entre a China, ainda vista aos olhos norte-americanos como a terra de comunistas que comem criancinhas, e o herdeiro de Fidel nas selvas amazônicas deve, efetivamente, incitar o imaginário dos telespectadores.

Nostradamus da pós-modernidade

Situações como essa nos remetem à forma como a mídia apresenta alguns povos. Na ficção, árabes são terroristas, asiáticos são mafiosos, colombianos são sinônimo de narcotraficantes, europeus do Leste, de corruptos ex-comunistas. Os brasileiros, não fugimos à regra: além da imagem de turismo sexual, exploração infantil e desmatadores da Amazônia, há os já conhecidos casos, talvez menos complexos, do episódio da série Simpsons no Brasil ou do filme Turistas, no Rio de Janeiro.

Que papel deve desempenhar a mídia, mesmo nos casos de séries de ficção, em prol da integração dos povos? Como se sentem árabes, europeus do Leste, asiáticos, latinos etc. diante do estereótipo que a poderosa tela de televisão transmite mundo afora?

Fica lançada a questão, bem como a esperança de que a vida não copie a ficção e que Hollywood não se transforme num Nostradamus da pós-modernidade.

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Jornalista e documentarista, é pesquisador associado ao Núcleo de Estudos de Mídia e Política da UnB, doutorando em Ciências da Informação e Comunicação Centre de Recherches sur l’action Politique en Europe (Universidade de Rennes 1)