“Entre várias mensagens de crítica ao jornal que me chegaram nos últimos dias encontro um denominador comum: os erros que os leitores apontam poderiam em geral ter sido evitados com uma receita simples — menos precipitação e mais reflexão. Menos frenesim na divulgação de notícias na edição electrónica, menos decisões editoriais apressadas pelo jogo de concorrência no universo da informação online ou influenciadas por surtos de excitação nas redes sociais. Numa palavra, mais profissionalismo.
Por muito exigentes que sejam os ritmos de publicação de um jornal diário ou de actualização do seu sitena Internet, por mais que uma estrutura redactorial afectada por cortes sucessivos se torne vulnerável a falhas, não há jornalismo de qualidade — como o que o PÚBLICO promete aos seus leitores — sem uma disciplina de verificação e ponderação cuidada da informação a publicar. Omitir uma notícia ou adiar a sua publicação é sempre menos mau do que publicar informações erróneas e textos que se afastam das boas práticas profissionais. Deixando para outra ocasião várias queixas relacionadas com deficiências de edição, passo a referir dois casos recentes em que a precipitação terá prevalecido sobre a necessária reflexão.
1. Uma notícia publicada anteontem, sob o título Isabel Jonet acusada de usar a fome como arma política, relata o que é descrito como 'uma onda de protesto e de indignação' que teria sido gerada por declarações da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome durante um debate televisivo, dois dias antes, na Sic Notícias. Segundo este jornal, as reacções que '[se] multiplicaram logo nas redes sociais' — outros foram mais longe e falaram de uma 'onda de indignação no país' — ficaram principalmente a dever-se a duas ideias defendidas pela conhecida activista social: os portugueses 'vivem muito acima das suas possibilidades' e vão 'ter que reaprender a viver mais pobres'.
A peça suscita várias perplexidades. Antes de mais, sobre a sua relevância. Se é certo que as posições assumidas por Isabel Jonet vieram dar nova visibilidade a um velho debate sobre os méritos das acções de caridade, não é menos verdade que as suas frases citadas na notícia em nada diferem do que tem sido repetido até à exaustão, nos últimos meses, por numerosos políticos, economistas e analistas. São certamente polémicas, no sentido em que exprimem uma das posições antagónicas que hoje se confrontam no país sobre as causas da crise económica e os modos de a combater. O debate argumentado dessas posições merece todo o espaço, mas o destaque que lhe foi dado no plano noticioso parece ignorar que a presidente do Banco Alimentar não é uma decisora política.
Depois, o conteúdo. Quase todo o espaço da notícia foi ocupado pelos ataques dirigidos a Isabel Jonet, com destaque para uma 'carta aberta' publicada na Internet. Trata-se de um texto panfletário que, como bem nota o autor da peça do PÚBLICO, José Augusto Moreira, assume 'um tom de violento ataque pessoal' à dirigente do Banco Alimentar. Note-se que a autoria desse texto foi atribuída por erro, corrigido ontem pelo jornal, à historiadora Raquel Varela, que redigira um outro documento crítico, de teor diferente, às declarações de Isabel Jonet. De onde se conclui que o 'violento ataque pessoal' que o PÚBLICO achou por bem transcrever não tem, para já, rosto conhecido. É assinado, na rede, por 'O Movimento Sem Emprego'.
As extensas acusações contidas na peça não são acompanhadas de qualquer contraditório. O jornalista esclarece no texto que Isabel Jonet foi convidada a pronunciar-se (com insistência, segundo me explicou), mas não quis fazê-lo. No entanto, existem outras formas de procurar o contraditório, objectivo de que o jornalismo isento nunca deve desistir. É aliás forçoso registar que, sendo a notícia justificada com as 'reacções de indignação' encontradas na Internet, nela se ignora totalmente o facto de que nas redes sociais e na blogosfera se 'multiplicaram' também as manifestações de apoio à líder do Banco Alimentar.
Este foi, na minha opinião, um exemplo de uma notícia claramente desequilibrada e incompleta no plano informativo, em que o jornal se portou como pouco mais do que um amplificador, aliás selectivo, do que encontrou nas redes sociais. O próprio autor o reconhece de algum modo, ao comentar que 'a forma como hoje se produz informação torna difícil fazer jornalismo'. É aos jornalistas, no entanto, que cabe em primeiro lugar enfrentar essas dificuldades e defender a integridade e as boas práticas da profissão.
O PÚBLICO prestaria um bom serviço aos seus leitores se procurasse, através do inquérito jornalístico, a resposta a uma questão — essa, sim, relevante — suscitada na sequência das declarações de Isabel Jonet, nomeadamente por voluntários do Banco Alimentar. Irá a sua intervenção televisiva, com as reacções a que deu lugar, prejudicar a organização a que preside (e outras similares), na sua capacidade de mobilização, agora que se prepara uma nova campanha de recolha de alimentos?
2.Um caso típico de deficiente observação das regras profissionais na corrida precipitada à publicação de informações online foi, quanto a mim, o da notícia divulgada na noite da última terça-feira no site doPÚBLICO, segundo a qual 'um jornalista residente na Costa da Caparica' teria 'tentado agredir', num hotel da cidade da Horta, o ministro Miguel Relvas, que se deslocara aos Açores para participar na tomada de posse do novo governo regional. O jornal viu-se depois obrigado a desmentir (e fê-lo com um atraso considerável) essa informação que se verificou ser falsa e já não se encontra em linha, mas o caso, caricato sob vários aspectos, chama a atenção para a necessidade de serem repensados os procedimentos de validação das notícias colocadas na Internet.
O PÚBLICO não foi o primeiro nem o único meio de comunicação (longe disso) a disseminar a falsidade, no que parece ter sido um típico episódio de deliberada intoxicação informativa. Nessa mesma noite houve quem fosse ao ponto de publicar que o cidadão em questão — só em notícias posteriores identificado como sendo o jornalista Nuno Ferreira, que por sinal pertenceu durante longos anos aos quadros redactoriais deste jornal… — procurara forçar a entrada no quarto do ministro ou, numa versão ainda mais delirante, o seguira até ao Faial, instalando-se no mesmo hotel com intuitos certamente inconfessáveis.
Resumam-se os factos entretanto apurados pela generalidade da imprensa. Autor da obra 'Portugal a pé', Nuno Ferreira encontrava-se nos Açores a preparar um novo livro, agora dedicado a caminhadas pelo arquipélago. Cruzou-se com Relvas, à hora do almoço, no hotel em que pernoitara, dirigiu-lhe um comentário hostil (ter-lhe-á perguntado se 'não tinha vergonha de continuar a andar por aí'), e o governante virou-lhe as costas. À tarde, decidiu ir esperá-lo à saída da cerimónia da posse do governo, munido de um cartaz em que se lia 'Bem-vindo exº sr. dr. Miguel Relvas, Angola gosta muito do sr. Doutor'. Ao fim do dia regressou ao hotel, tendo sido barrado, no corredor a caminho do seu quarto, por três seguranças do ministro. A partir daqui, há duas versões contrárias do que se passou. Os seguranças acusam-no de ter tentado agredi-los, enquanto o jornalista garante que foi ele a vítima de agressão, tendo sido detido e algemado, num lance que, por coincidência ou não, foi fotografado por um repórter de televisão. Um inquérito judicial entretanto aberto irá eventualmente apreciar esta divergência.
Procurei obter, junto dos responsáveis editoriais, uma explicação para a notícia falsa inicial, que referia uma tentativa de agressão ao ministro. A reconstituição dos factos indica que tudo começou pela visualização, na edição online do Expresso, de uma primeira notícia sobre o caso, que relacionava a detenção de Nuno Ferreira com uma tentativa de este 'se aproximar do quarto do ministro'. Ao jornalista Tolentino da Nóbrega, que se encontrava nos Açores, foi pedido que confirmasse essas informações, o que este terá feito junto de fontes políticas e policiais, aparecendo por isso a assinar a primeira peça saída noPÚBLICO. Nuno Ferreira não foi ouvido porque 'não atendeu o telefone' (no entanto, ainda nessa noite prestou declarações a uma televisão). Em Lisboa, o editor Luciano Alvarez (co-autor do texto) contactou o gabinete do ministro, de onde recebeu, segundo afirma, a garantia de que '[se] confirma na íntegra a notícia do Expresso'.
E assim se partiu para a lamentável divulgação de uma história inventada. Resta perguntar desde quando um jornal independente pode satisfazer-se com fontes oficiais e versões policiais, para mais quando estas resistem com dificuldade a um juízo de verosimilhança. Por que é que avança com a divulgação de uma notícia destas antes de garantir o contraditório, o que nem seria difícil. Por que é que não se esforça mais por verificar os factos e buscar a verdade. Que credibilidade isenta de dúvidas lhe merece, enfim, um gabinete governamental cuja relação peculiar com a verdade já pôde experimentar.”