Há uma correlação inesperada, que não chega a ser sutil, entre a condenação de réus do mensalão e a “redescoberta” da situação das prisões brasileiras. Agora que pessoas conhecidas vão em bloco cumprir pena, torna-se impossível ignorar o que acontece atrás dos muros de penitenciárias, centros de “detenção provisória”, cadeias públicas, delegacias policiais e quarteis da PM (alguns hospedam prisioneiros).
Pelo segundo dia consecutivo, na quinta-feira (15/11) os jornais reproduzem declarações do ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, sobre o caráter medieval de instituições que deveriam servir para tentar ressocializar condenados pela Justiça, mas funcionam como centros de violência, torturas, castigos cruéis impostos a presos e familiares, sem que, ao mesmo tempo, consigam impedir o frenético fluxo de informações entre criminosos encarcerados e em liberdade que passa por cima dos muros, nas frequências de telefones celulares, e pelos portões, via contato de visitantes e advogados com os presos.
Apesar de suas condições miseráveis – ou, talvez, por causa delas –, o sistema prisional brasileiro funciona também como escola de formação de quadros para diferentes funções criminais.
Na melhor das hipóteses, os quase 500 mil presos no país poderão no futuro próximo ser beneficiados pelas decisões dos ministros do STF: se isto implicar uma mobilização governamental para esvaziar cadeias (há muita gente presa em situação irregular), redução das penas de privação de liberdade e, mais importante, reforma das prisões (leia-se gastar mais dinheiro para dar condições humanas mínimas aos presos).
O partido do crime comanda
O PCC, Primeiro Comando da Capital, que na intimidade de seus integrantes é chamado partido do crime, poderia ser denominado, por suas origens, Partido da Condição Carcerária. Nasceu em 1993 após o massacre do Carandiru (1992, 111 mortos), numa penitenciária de Taubaté onde, segundo os fundadores da organização, os métodos de contenção dos prisioneiros eram ferozes.
Em seu mais recente livro-reportagem, Xeque-mate – O tribunal do crime e os letais boinas pretas. Guerra sem fim, o jornalista Josmar Jozino estabelece inequívoca relação entre a situação carcerária e o desenvolvimento do PCC. O livro foi resenhado por Bruno Paes Manso.
O PCC passou por significativas metamorfoses em seus 19 anos de existência. Era inicialmente uma espécie de sindicato de presos, criado para protestar contra violências. Mas, integrado por homens violentos, mudou de rumo. Primeiro, passou a comandar prisões. O mais eloquente sinal disso foi a megarrebelião de 2001 em 25 penitenciárias e quatro cadeias públicas paulistas.
A segunda mudança, cuja idealização e comando são atribuídos a Marcos Willians Herbas Camacho, Marcola, consistiu numa dupla mudança de perfil: menos ações espetaculares e foco no tráfico de drogas ilegais e em outras modalidades criminosas que se revelassem compensadoras. Um PCC mais discreto e mais azeitado como organização criminosa.
Quem garante os presos ilustres?
O controle pelo PCC de quase todas as prisões paulistas, e de muitas em vários outros estados, transforma a condenação dos réus do processo do mensalão num grave problema político. Como serão protegidas suas vidas? Qualquer atentado à integridade física ou psicológica dos apenados, de seus parentes e amigos seria um golpe contra a democracia, porque configuraria impossibilidade prática de aplicação da lei pela Justiça.
Um grande equívoco cometido por legisladores brasileiros foi endurecer as penas de privação de liberdade, principalmente depois do sequestro do empresário Roberto Medina, em 1990, e do assassinato da atriz Daniela Perez, em dezembro de 1992, quando se forjou a categoria de “crimes hediondos”.
A mudança da legislação penal não resolveu nenhum problema e criou vários. Se tivessem sido reinstituídas a pena de morte, a prisão perpétua, o banimento, o degredo, o açoite, que o império brasileiro herdara da colônia e a maioria da população apoiaria hoje, a situação não estaria melhor. Provavelmente estaria pior.
De todo modo, se não existe prisão perpétua, existe pena de morte, decretada e executada pelos dois lados em confronto: bandidos e policiais.
Tem razão o ministro Dias Toffoli quando defende penas pecuniárias como opção punitiva prioritária, em lugar de severas penas de encarceramento, nos casos em que os condenados não sejam indivíduos com histórico de violências físicas.
Mas essa sugestão enfrenta resistências de dois tipos. Primeiro, por partir de um juiz tido como mais simpático aos réus do que a maioria de seus colegas. Segundo, porque a aplicação de penas duras é uma tentativa, por parte do STF, de responder à sensação de impunidade que impregna a opinião pública.
Seria uma espécie de “erro inevitável”, fruto de uma sinuca de bico: ou arrochar, seguindo a legislação e aplicando castigo desmesurado, ou aliviar e passar a impressão de que poderosos nunca são punidos.
Rural, filho da Tratex
E aqui se pode passar à discussão da punição destinada à presidente do Banco Rural, Kátia Rabelo. O noticiário sobre eventuais repercussões das decisões do STF na atividade bancária faz sentido na medida em que se constata que os bancos deveriam de agora em diante tomar mais cuidado com as operações que aceitam fazer. Deveriam. Mas, como dinheiro não tem cheiro, só o farão “para inglês ver”.
O caso de Kátia, porém, não é exatamente o de um dirigente bancário convencional. Não porque ela tenha chegado ao cargo pela lógica de uma linha sucessória familiar. Isso acontece em grande número de empresas brasileiras, entre elas, talvez em maior proporção, grandes empresas, porque o país ainda tem um mercado acionário acanhado.
Mas cabe discutir se o Banco Rural é um banco como os outros. Remeto o leitor a tópicos escritos neste Observatório da Imprensa na época do escândalo do mensalão (a datação está errada, em decorrência de um problema técnico de migração do conteúdo do portal; os tópicos foram publicados no final de 2005/início de 2006): “Da Novacap ao valerioduto I”, “Da Novacap ao valerioduto II” e “Da Novacap ao valerioduto III”. Eles procuram mostrar que o Rural foi, na origem, subproduto da generosa remuneração da Construtora RAbelo, depois Tratex, por sua participação na construção de Brasília.
Por fim, advirta-se que, se o caso do Rural tem peculiaridades, é difícil encontrar no mundo das finanças uma história protagonizada por “figuras impolutas, de caráter sem jaça”.