Antes mesmo de ser reconhecida como grande escritora, Clarice Lispector colaborou ativamente na imprensa, atuando como jornalista, estudante de Direito, colunista feminina, ensaísta e até mãe. Era uma forma de complementar a renda mensal. Ao longo da carreira, Clarice escreveu cerca de 5 mil textos, entre fragmentos de ficção, crônicas e colunas femininas, para diversos jornais e revistas, além de realizar mais de 100 entrevistas, a primeira delas, em 1940, com o poeta Tasso da Silveira. Uma boa amostragem desse material está em Clarice na Cabeceira – Jornalismo, lançado agora pela Rocco.
“Clarice tinha estilo próprio para seus textos para a imprensa. Mas procurava aprender e apreender a técnica de alguns gêneros jornalísticos”, comenta a jornalista e professora universitária Aparecida Maria Nunes, responsável pela coletânea, que traz também textos inéditos em livro. “Quanto à crônica, chegou a conversar sobre como escrever com vários escritores, inclusive com Rubem Braga. Nas páginas femininas, quando assinou sob pseudônimos, o texto clariciano se torna acessível e adquire o tom da receita e do conselho. A Clarice jornalista consegue falar e se fazer entender para o leitor heterogêneo, pouco acostumado a reflexões de ordem existencial.”
Segundo a pesquisadora, ao longo dos quase 40 anos de trabalho na imprensa brasileira, a Clarice jornalista não alterou seus interesses, temas, linguagem. Aparentemente só se adaptou a cada gênero jornalístico, pois imperava seu estilo único. “A entrevista com o escritor Tasso da Silveira nos anos 1940 comprova isso”, explica. “Lá, Clarice era iniciante no jornalismo e desconhecida escritora. Ainda não havia lançado Perto do Coração Selvagem. Mas o modo de entrevistar, de escrever o texto da entrevista e de questionar o interlocutor são os mesmos da Clarice jornalista décadas depois para as revistas da Bloch Editores.”
Ela era, antes de tudo, profissional. Dedicada. E procurava realizar o trabalho de entrevistar da melhor forma. Foram feitas, para a Bloch, 87 entrevistas e muitos dos interlocutores eram amigos da escritora ou pessoas próximas a ela por conta do período em que morou no exterior, acompanhando o marido diplomata, ou por serem artistas ou escritores. “Com Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, por exemplo, o encontro marcado para a entrevista era aproveitado para jogar conversa fora em algum restaurante. A intimidade entre Clarice e eles chegava a ponto de a entrevista propriamente dita não ocorrer frente a frente”, comenta Aparecida. “Para ajudarem a amiga nesse trabalho, muitas vezes, o questionário, elaborado por Clarice sempre de antemão, era entregue e respondido em casa pelos entrevistados. E a ocasião da entrevista era transformada em pretexto para conversa informal entre amigos.”
Clima cáustico
Em outros casos, a escritora marcava entrevista em seu apartamento, no Rio. E, como observa a pesquisadora Aparecida, ela se sentia lisonjeada em receber Bibi Ferreira e Elke Maravilha. Em meio à conversa, Geny, a cozinheira, servia um café e a descontração acontecia de fato. “Há ainda a célebre entrevista com o primeiro-ministro de Portugal Mário Soares, no Palácio de São Clemente, no Rio”, conta. “Clarice havia sido convidada para a recepção, mas aproveita o momento e solicita entrevista, que lhe é concedida meia hora antes da solenidade. Para surpresa dela, Mário diz ser leitor de Clarice e apreciar a profundidade dos textos. Então, o ofício de entrevistar, podemos concluir, nem sempre foi enfadonho.”
A escritora buscava deixar o entrevistado sempre à vontade – acreditava que deveria se expor para captar a confiança e conseguir mostrar o lado bom do interlocutor. “O leitor toma simultaneamente conhecimento de particularidades dos entrevistados de Clarice e da própria Clarice. Nós ganhamos com isso”, afirma. “Clarice comenta, por exemplo, passagens de sua vida. Com o escritor Nelson Rodrigues, fala do período em que esteve hospitalizada por causa do incêndio que sofreu. Ou então preocupações com o ofício de escrever ficção e fazer jornalismo. Com o cronista Henrique Pongetti, ela conversa sobre como não deixar o jornalismo interferir na literatura e do desgaste de escrever crônicas semanalmente, correndo o risco da autorrevelação, à sua revelia.”
O livro evidencia também como o contato com os entrevistados provocava, na maioria das vezes, boas surpresas. É o caso do momento em que Clarice garante não ser aquele o melhor dia para fazer qualquer entrevista por estar gripada. Ou ainda a inusitada conversa com o cronista Carlinhos Oliveira, no restaurante carioca Antonio's: nenhuma palavra foi pronunciada. “Clarice e Carlinhos trocavam bilhetes. Havia cumplicidade entre os dois e o texto da entrevista é delicioso. Clarice coloca reticências nos palavrões escritos por ele. Em outra passagem, ele pede a ela que deixe de 'frescura'. Até Clarice confidenciar que vai dar outra oportunidade a Carlinhos porque ele não se mostrou de corpo inteiro e, aí, temos um viés seguido pela Clarice jornalista”, diverte-se Aparecida. Segundo ela, a escritora gostava de fazer entrevistas porque era curiosa. “Mas detestava dar entrevistas, porque a deformavam. Com isso, fica implícito o pensamento de que procurava, enfim, traçar um perfil o mais verdadeiro de seus interlocutores.”
Clarice preocupava-se ainda com a preparação de suas colunas femininas, buscando detalhes em todas as fontes de pesquisa. Ela contava com o auxílio de uma amiga chamada Lothe, que fornecia revistas como Paris Match, Jude France e Bunte. Com isso, não apenas escrevia o texto como também recortava fotos com modelos de roupas que eram sugeridas como opção de ilustração. A moda também era um caminho para Clarice exercitar seu lado contestador – é o caso da entrevista com Teresa Souza Campos, uma das mulheres mais elegantes da época. Na abertura do texto, escrito em 1968, Clarice confessa que desejou falar com ela justamente porque não simpatizava com a socialite. E pretendia inquirir “a mulher mais elegante” não para tratar de moda e beleza, mas para conversar sobre outros assuntos que considerava urgentes, como “o que você é?” ou “por quem você torce na Guerra do Vietnã?”.
“Ao longo do texto, Clarice, no entanto, deixa transparecer certa frustração pelo fato de Tereza ser mais simpática e inteligente do que o esperado. Ela soube como responder às provocações e irreverências da escritora, conquistando sua confiança.” Aparecida considera notável a entrevista que Clarice fez, pouco antes de morrer, em dezembro de 1977, com a artista plástica Flora Morgan Snell. Do ponto de vista jornalístico, foi um fiasco. “O diálogo não se estabelece. As respostas de Flora são lacônicas”, observa. “Mas, para se conhecer alguns dos princípios pelos quais Clarice se pautava para entrevistar, o texto é sintomático. Ela não esconde a perplexidade diante do suntuoso apartamento na Vieira Souto (residência da artista e local da entrevista) e do mordomo fardado que a recebe. A própria entrevistada a surpreende, pela maneira como estava vestida e maquiada (toda em tom lilás) e, sobretudo, pelo penteado altíssimo, em forma de 'bolo'. A empatia não acontece, não temos uma entrevista nos moldes jornalísticos, o diálogo não se efetiva, o clima entre entrevistadora e entrevistada é cáustico, mas há uma Clarice que procura ser honesta e sincera com seu leitor.”
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Além dos limites do texto
Moacir Amâncio *
Clarice de Cabeceira – Jornalismo, organizado por Aparecida Maria Nunes, recupera uma espécie de fazer jornal que só pertence a Clarice Lispector. É jornalismo de autor. Coloca-se em xeque a chamada “linguagem jornalística”, do senso comum e da instrumentalização ideológica. Mesmo ao buscar parâmetros, tentando encontrar um ponto de equilíbrio entre o “jornal” e o “público de jornal”, a redatora atinge simplesmente o leitor, aquele que lê literatura e depara com ela nas corriqueiras páginas dos periódicos. Mineirinho está presente, obra-prima da crônica brasileira. Fala de um marginal, a linguagem da escritora se impõe e nós temos não uma especulação oca sobre a personagem e sim um movimento investigativo da própria realidade, ou das muitas realidades humanas.
Em outro instante, quando ela redigia a coluna destinada às mulheres, sobre cosméticos, se delineia um delicado retrato de Sarah Bernhardt, muito além das exigências dos patrocinadores daquele espaço. Uma pequena peça literária sobre a beleza produzida e a visada pessoal através das mãos da atriz ao se maquiar. Sara, dessa maneira, permanece inatingível, além do consumo, uma ilusão capaz de revelar o ilusionismo de mercado oferecido pela marca de cosméticos. Se Clarice viola os supostos padrões da linguagem jornalística, ela reconfere ao texto publicado em jornal a experiência de conhecimento que a move, ao redigir, por exemplo, uma nota sobre o método eficaz de matar baratas, quando ela inocula o texto com o poder aterrador que o inseto exerce sobre tanta gente. Quer dizer, eliminar baratas seria como tentar eliminar aquelas bolinhas que perseguem o solteirão Blomfield, de Kafka. Baratas, enfim, não são exatamente baratas. Esse poder revelador da linguagem de Clarice sempre intrigou. Melhor e mais difícil do que atribuí-lo a algum desajuste do “estrangeiro” (maneira mesquinha, preconceituosa) é encarar o estranhamento universal que ela provoca.
Com base nas pesquisas de Aparecida Maria Nunes, Clarice esteve longe de ser uma amadora em jornalismo. Publicou ao redor de 450 colunas para as mulheres, sobre moda, beleza, feminilidade, culinária, educação, etc. Só aí, cinco mil textos. No meio aparecem trechos ficcionais – por si uma clara contestação dos limites impostos ao texto jornalístico, enriquecendo-o pela subversão. Artigos, contos, notas, confissões fictícias ou não, vêm classificados conforme o veículo onde saíram. Excelente material para os cursos de jornalismo e profissionais.
Deve-se atentar para a coletânea de entrevistas feitas pela escritora. Ela conversou com Nelson Rodrigues, Elke Maravilha, Antônio Callado, Tasso da Silveira, Alzira Vargas, etc. Personagens menos e mais interessantes, porém conta o modo Clarice e sua compulsão em abrir uma brecha nos universos particulares. Observa-se nelas o diálogo não de pergunta e resposta apenas, mas entre duas interrogações, uma diante da outra: entrevistador e entrevistado. Sem teorias, na prática rasa, o que conta. No final é o leitor diante de si mesmo. Por isso, as entrevistas e outros textos do volume merecem ser retirados das catacumbas e recolocados em circulação. Linhas aparentemente inúteis, isto é, “competentes”, obedientes às normas, confrontam-se com os questionamentos implícitos e explícitos, o lirismo que vem à tona, a exposição dos absurdos. Leitura urgente, sobretudo hoje, com o mundo dominado pela superstição da competência. [*Moacir Amâncio é professor de Literatura Hebraica da USP, autor de Ata (poemas reunidos (Record), Yona, o andrógino – Notas sobre poesia e cabala (Nankin/EDUSP)]
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[Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo]