No Brasil, conversas trocadas entre usuários de redes sociais e informações publicadas em blogs têm sido encaradas por governantes e políticos como ataques capazes de abalar não só suas imagens públicas, mas também suas gestões administrativas ou suas atuações parlamentares. Assim, o debate político está sendo judiciado de modo vertical, o que não é saudável para a democracia brasileira porque a incriminação de cidadãos envereda sempre à criminalização ideológica, eliminando da sociedade a expectativa do exercício do pluralismo político. A face mais cruel deste comportamento, que visa a transformar opiniões em crime, é o surgimento da ameaça de censura e o terror da autocensura, em pleno século 21, extirpando da sociedade brasileira a possibilidade de livre manifestação do pensamento.
Por meio da imprensa e de informações publicadas na internet, pode-se ter conhecimento que não só jornalistas, mas qualquer cidadão que tenha opinião veiculada na internet pode gerar de outro lado uma pretensa leitura de ofensa pessoal, curiosamente, como se uma carapuça fosse colocada lá para que um político “vitimado” leve essa “ofensa” às raias do Poder Judiciário. Em determinados centros, o volume de processos com base em crimes de opinião tem crescido exponencialmente. A situação se torna ainda mais grave a partir do reconhecimento de que servidores públicos são posicionados na blogosfera como espiões e alcaguetes, imprimindo textos, frases, parágrafos, e até 140 caracteres permitidos pelo sistema do Twitter, em busca de “evidências” de subversão.
Uma atitude totalmente desproporcional
A atuação de um regime de governo contra a liberdade de expressão e livre manifestação do pensamento, em pleno Estado Democrático de Direito, traz ao debate jurídico e da sociedade as questões da necessidade e da legitimidade de se valer do Código Penal para incriminar cidadãos comuns. Não parece fundamental que o Estado busque a norma penal para evitar críticas sobre a gestão pública. Também não pode ser considerado apropriado que homens públicos busquem a lei penal para impedir que cidadãos se manifestem contrariamente a eles em espaços públicos ou privados. A resposta a essas preocupações talvez tenha a ver com a conceituação de “bem jurídico” e sua teorização, que redunda também na questão da “objetividade jurídica”.
Segundo a estudiosa Sirlene Nunes Arêdes, em O conceito material de bem jurídico penal, citando Claus Roxin [A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006],”[…] podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos”. A partir desta definição, aceita no ordenamento jurídico brasileiro, presumivelmente, tendo em vista que possuímos uma “Constituição Cidadã”, verifica-se que a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento são bens jurídicos essenciais, descritos com ênfase na seção de Direitos e Garantias Fundamentais dos Cidadãos. Além disso, a liberdade de opinião é prevista ainda em todos os tratados de Direitos Humanos em que o Brasil e a maioria das nações civilizadas do mundo são signatários.
A honra pessoal também não deixa de ser um bem jurídico, mas para o conjunto da sociedade é melhor que o cidadão se manifeste democraticamente do que pavimentar caminhos tergiversáveis por onde políticos desfrutem de imunidade contra qualquer crítica que eles próprios considerem ofensivas. A esse propósito, alçar a mira no cidadão comum como poderoso adversário a ser esmagado pela vendeta de políticos eleitos é uma atitude totalmente desproporcional com a racionalidade da democracia representativa. É o Estado dando tiro de canhão em indivíduos.
Lógica da civilização
O cidadão que citado pela Justiça se torna réu por ser incriminado pela vontade de autoridade pública precisa doravante lutar e despender recursos financeiros para provar que sua opinião visou apenas moralizar a ação política, jogar luzes na gestão da coisa pública ou priorizar a aplicação de recursos públicos em áreas essenciais como educação, saúde, emprego e moradia. Se no Brasil Colônia o rei mandava prender, enforcar e até esquartejar, agora cidadãos defensores do interesse público são estigmatizados como inimigos do governo e se lançam ao desterro.
A alegação de quem se diz ofendido nesses casos não raro é sempre a de que o “réu” não está apenas a manifestar sua opinião, mas sim estaria disposto a atacar políticos e ou governantes e, ao fim, ultrapassar as limitações penais e prejudicar o desempenho da própria democracia. Comentários postados em redes sociais de computadores podem ser constrangedores para qualquer cidadão, mas daí a serem combatidos pela via da criação de uma indústria da criminalização de opiniões é um gesto para lá de autocrático. Para que se impeça o conhecimento público dessas informações ou proíbe-se o uso da internet, ou proíbe-se o cidadão de se manifestar em sociedade, ou alicia-se a imprensa.
A eficácia dessas medidas teria toda característica de pura repressão ao direito de manifestação do cidadão, comprometendo a liberdade de imprensa e causando um retrocesso na inclusão digital. São medidas contrárias à lógica da civilização contemporânea. Seriam medidas de uma cartilha antidemocrática e da cátedra do autoritarismo e revelariam atitude desproporcional à norma penal, no que diz respeito à proteção dos bens jurídicos, pelo menos na teoria, inadmissível na modernidade.
Duas perguntas para o debate
Numa democracia, diálogo gera aperfeiçoamento. Intolerância cria injustiças e estas últimas regimes de exceção. Institucionalizar o crime de opinião pode ser considerado um atentado à democracia. Nas redes sociais, a indignação já tem chegado. Professores, jornalistas, profissionais liberais, servidores públicos e demais cidadãos que estão sendo alvo ou não de processos de criminalização da opinião estão multiplicando insatisfação sobre esse novo fator negativo à democracia.
No dia 19 de setembro, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, esteve em Goiânia para chefiar reunião extraordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), quando afirmou que não há dúvidas de que denúncias de abusos policiais militares goianos ao longo dos últimos tempos são indicadoras de violência policial e violência institucional. Maria do Rosário se referia com extrema preocupação ao povo de estado de Goiás, cuja capital já tem o maior número de homicídios de sua história: mais de 500 registrados, de janeiro ao início de novembro deste ano.
A sociedade precisa se indignar e fazer esse sentimento chegar às manchetes dos jornais locais, regionais e do país. A luta é desigual demais, mas o alto índice de rejeição a candidatos e governos autocráticos, a ocorrência de manifestações populares e a mobilização de sindicatos de categorias profissionais de trabalhadores, reunindo milhares de cidadãos, são um sinal de que esse tipo de opressão não foge do entendimento do povo.
De acordo com Aline Bianchini [BIANCHINI, Aline; MOLINA, Antônio García-Pablos de; Gomes, Luiz Flávio. Direito Penal: Introdução e princípios fundamentais. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. (Citado por Odon Dantas Pinto, in http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8887#_ftn8)], “a política criminal de um Estado Constitucional de Direito fundado nos valores essenciais, tais como, dignidade humana, liberdade e justiça, deve obedecer às seguintes proposições: estar obrigado a assegurar as condições essenciais para o desenvolvimento da personalidade e para vida em sociedade; não promover, defender ou impor qualquer ideologia ou ordem moral ou religiosa; tolerar e incentivar o modelo pluralista e democrático de convivência, devendo intervir o menos possível na liberdade humana e jamais castigar meras imoralidades”. Ficam aqui duas perguntas abertas ao debate democrático: Por que a política criminal de um Estado se voltaria para valorizar o enquadramento de cidadãos, cerceando sua liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, ao passo que a segurança pública deixa de ser um bem jurídico prioritário para o Estado? O cidadão comum, sob ameaça político-institucional, poderia se autocensurar, mas isso não significaria o mesmo que revogar princípios da Constituição da República Federativa do Brasil e também o abandono da própria cidadania já não mais garantida pelo Estado Democrático de Direito?
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[Fernando Fagundes é escritor e jornalista com especialização em Política]