Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As duas implosões de Manchete -2

Apesar do desabamento do Império Assis Chateaubriand, os Diários Associados estão aí: é o sexto maior grupo de mídia do país, responsável por 50 veículos, donos dos dois mais antigos jornais brasileiros e latino-americanos (Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio do Rio), do mais importante diário do Distrito Federal (Correio Braziliense) e de Minas, Estado de Minas. Mantém onze rádios e nove emissoras de TV.

Do Grupo Manchete nada sobrou. Monumental massa falida, espólio que só existe nas demandas judiciais (salvo uma pequena rádio em Niterói constantemente acionada pelos credores). Seu valioso arquivo fotográfico, abocanhado num leilão, entregue a comerciantes, corre o risco de desaparecer.

Uma história de sucessos convertida numa montanha de escombros. Um incrível e prolongado saque – autoinfligido, endógeno, regado a champanhe francesa, servido com caviar russo, em porcelana Rosenthal e cristais da Boêmia. Adolfo Bloch deu o exemplo: roubava e deixava roubar.

Os grupos não disputavam o poder – irmanados, disputavam o botim. Alimentavam os delírios do gráfico semianalfabeto que se tornou um dos homens mais importantes do país. Quanto mais arrojados os saltos da empresa, mais rentáveis seriam os assaltos aos seus cofres. Os contadores roubavam, os interventores roubavam, os consultores roubavam e, para evitar qualquer esperneio, todos se locupletavam. O empreendedorismo em estado natural.

Rumo à imortalidade

Uma das histórias mais patéticas aconteceu logo depois da morte do fundador: Pedro Jack Kapeller, seu sobrinho favorito, herdeiro e sucessor, informado dos saques que ocorriam de madrugada no suntuoso palacete onde funcionava a sede da filial paulistana, resolveu demitir o seu diretor. Não conseguiu: horas antes, o espertalhão havia arrancado de Paulo Maluf um decreto batizando uma praça da cidade com o nome de Adolfo Bloch.

Arnaldo Niskier tem curso de sobrevivência em qualquer situação: no início do romance de Adolfo Bloch com Juscelino Kubitscheck conseguiu que “titio” obtivesse sua nomeação para secretário de Ciência e Tecnologia da Guanabara. O governador Negrão de Lima, amigo íntimo e parceiro político do ex-presidente, não lhe poderia negar um pedido, nem JK negaria um apelo do seu hospedeiro-mecenas.

A “eleição” de Niskier para a Academia Brasileira de Letras obedece aos mesmos paradigmas: candidatou-se à Casa de Machado de Assis ostentando no currículo apenas uma coletânea de livros didáticos de aritmética cuja autoria fora contestada publicamente. Desta vez, “titio” obteve o apoio do editor Abrahão Koogan, que desde os anos 1940 e 50 gozava de grande estima entre os acadêmicos.

Sentiu-se só naquele venerável ambiente e levou para o cenáculo das belas-letras brasileiras seu parceiro na empresa, o ex-repórter político da Tribuna da Imprensa Murilo Melo Filho, autor das reportagens pagas pela governo militar à Manchete para propagandear o “milagre brasileiro” e, a reboque, seus artífices, os ministros Antonio Delfim Netto e Mario David Andreazza. Este último, coronel do Exército, acalentava o sonho de chegar à Presidência da República com a ajuda dos grandes empreiteiros beneficiados em licitações para grandes obras.

As reportagens transformaram-se em livro com edições inteiras vendidas ao governo. Montado neste incomparável best-seller, Murilo Melo Filho chegou à ABL.

Vida boa

A ilusão do milagre foi justamente a responsável pela débâcle do Império Manchete. O governo militar precisava de um concorrente para a TV Globo; precisava, sobretudo, barrar o caminho de um grupo de São Paulo que fazia um jornalismo de qualidade e conquistava o país, a Editora Abril. Convenceram Adolfo Bloch a candidatar-se a dois canais de TV disponíveis. Garantiram ao pobre empresário (que continuava pagando as despesas com “cheques voadores”) que, doravante, não lhe faltariam recursos para montar uma rede de televisão de alta qualidade. Nenhum dos comensais, cúmplices, confidentes e ghost-writers de Adolfo Bloch teve a coragem e a decência de aconselhá-lo a não meter-se naquela aventura.

O homem tinha sorte – diziam e o homem acreditava –, valia a pena segui-lo, associar-se ao desvario. Sobraria grana para todos.

Não sobrou nada, Manchete soçobrou. Título furado, não se confirmou, apesar de alguns êxitos iniciais da rede de TV. Os que deixaram o barco antes do naufrágio, conhecidos roedores da família dos murídeos e agora intitulados de sobreviventes, estão bem de vida: respeitados, titulados e engajados na tarefa de impor sua versão de uma tragédia cujos ingredientes são a cobiça e a canalhice.

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