Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Na minha cró­nica do pas­sado dia 11 de Novem­bro, cri­ti­quei a publi­ca­ção apres­sada na edi­ção online doPÚBLICO, na noite do pas­sado dia 6, de uma notí­cia que se veri­fi­cou não ser ver­da­deira, e que por isso foi cor­ri­gida no dia seguinte. Afirmava-se, nesse texto entre­tanto reti­rado do site do jor­nal, que ‘um jor­na­lista’ (pos­te­ri­or­mente iden­ti­fi­cado como sendo o ex-redactor do PÚBLICO Nuno Fer­reira) ‘terá ten­tado agre­dir o minis­tro Miguel Rel­vas’, na cidade da Horta, nos Aço­res. Essa falsa infor­ma­ção foi cor­ri­gida, depois de apu­ra­dos os fac­tos (ou uma parte deles), quer por este jor­nal, quer por outros meios que se tinham pres­tado a publi­car essa e outras inven­ções, como a de que Nuno Fer­reira ‘ten­tou entrar no quarto de hotel do minis­tro’, quando na ver­dade, como já foi escla­re­cido, se diri­gia para o seu pró­prio quarto no mesmo estabelecimento.

Defendi nesse texto, mais uma vez, ‘a neces­si­dade de serem repen­sa­dos os pro­ce­di­men­tos de vali­da­ção das notí­cias colo­ca­das na Inter­net’. Insisti na impor­tân­cia de se pro­cu­rar ‘garan­tir o con­tra­di­tó­rio’, ‘veri­fi­car os fac­tos e bus­car a ver­dade’ — regras ele­men­ta­res do jor­na­lismo digno desse nome —, para que seja evi­tada a dis­se­mi­na­ção de erros infor­ma­ti­vos e fal­si­da­des. A pro­pó­sito do facto de a pri­meira peça doPÚBLICO sobre o caso ter tido por ponto de par­tida uma notí­cia da edi­ção online do Expresso, que o edi­tor Luci­ano Alva­rez me expli­cou ter sido con­fir­mada pelo gabi­nete do minis­tro Rel­vas, ques­ti­o­nei ainda qual ‘a cre­di­bi­li­dade isenta de dúvi­das’ que deverá mere­cer a este jor­nal ‘um gabi­nete gover­na­men­tal cuja rela­ção pecu­liar com a ver­dade já pôde experimentar’.

Esta obser­va­ção — na ver­dade uma inter­ro­ga­ção retó­rica, em que o termo ‘pecu­liar’ deve ser visto como um eufe­mismo — foi con­si­de­rada ‘grave’ pelo gabi­nete do ministro-adjunto e dos Assun­tos Par­la­men­ta­res, que me diri­giu uma carta em que mani­festa ‘sur­presa’ pelo con­teúdo do texto que assi­nei há uma semana e soli­cita que aborde ‘numa futura coluna do PÚBLICO’ as ques­tões que nela são levan­ta­das. Passo a trans­cre­ver na ínte­gra esse docu­mento, que me foi reme­tido na pas­sada terça-feira, 13 de Novem­bro, pelo chefe do gabi­nete minis­te­rial, Vítor Sereno, seguindo-se a minha res­posta às pas­sa­gens desse texto que julgo rele­van­tes ou mere­ce­do­ras de escla­re­ci­mento aos leitores.

 J.Q.

Carta do Gabi­nete do Ministro-Adjunto e dos Assun­tos Parlamentares

Foi este Gabi­nete sur­pre­en­dido com as con­si­de­ra­ções que faz, na sua mais recente coluna sema­nal noPúblico, a pro­pó­sito de uma notí­cia sur­gida na edi­ção elec­tró­nica do jor­nal a pro­pó­sito da deten­ção de um ex-jornalista desse diá­rio na cidade da Horta, acu­sado de ten­ta­tiva de agres­são a um agente da auto­ri­dade num esta­be­le­ci­mento hote­leiro da cidade onde se encon­trava tam­bém alo­jado o Ministro-Adjunto e dos Assun­tos Par­la­men­ta­res, Miguel Relvas.

A sur­presa foi-nos sus­ci­tada pelo facto de o Senhor Pro­ve­dor aco­lher como boa, exclu­si­va­mente, a ver­são divul­gada pelo refe­rido ex-jornalista do Público, que chega a ser citado em dis­curso direto na sua coluna, sem nunca ter havido o cui­dado, da sua parte, de pro­ce­der a qual­quer con­tacto junto deste Gabi­nete no sen­tido de apu­rar uma ver­são rigo­rosa e sem gra­ves lacu­nas dos acon­te­ci­men­tos, pre­sen­ci­a­dos pelo menos por dois mem­bros da comi­tiva do Minis­tro e por dois ele­men­tos da PSP da cidade da Horta.

A sur­presa acentua-se pelo facto de, na mesma coluna de opi­nião, o Senhor Pro­ve­dor cha­mar – e muito bem – a aten­ção dos jor­na­lis­tas para a neces­si­dade de evi­tar a ‘dis­se­mi­na­ção de fal­si­da­des’ atra­vés da ‘garan­tia do con­tra­di­tó­rio’ e da ‘veri­fi­ca­ção dos factos’.

Ao acei­tar por boa a ver­são de um jor­na­lista que per­ten­ceu durante lon­gos anos aos qua­dros reda­to­ri­ais do jor­nal, sem curar da veri­fi­ca­ção dos fac­tos junto de fon­tes alter­na­ti­vas e pre­vi­si­vel­mente con­tra­di­tó­rias, o Senhor Pro­ve­dor des­mente afi­nal os salu­ta­res prin­cí­pios que pro­clama, caindo no defeito do velho Frei Tomás: ‘Faz o que ele diz, não faças o que ele faz’.

Pior do que isso, o Senhor Pro­ve­dor parece incen­ti­var os jor­na­lis­tas do Público a não pro­cu­rar a ver­são dos acon­te­ci­men­tos, des­tes ou de quais­quer outros, que envol­vam o Minis­tro Miguel Rel­vas, ao con­cluir o seu texto desta forma que con­si­de­ra­mos pro­fun­da­mente repro­vá­vel, por ser mais pró­pria de um vul­gar ana­lista polí­tico do que de alguém inves­tido de auto­ri­dade espe­cí­fica para ana­li­sar sem pre­con­ceito o con­teúdo do jor­nal: ‘Que cre­di­bi­li­dade isenta de dúvi­das merece, enfim, um gabi­nete gover­na­men­tal cuja rela­ção pecu­liar com a ver­dade já pôde experimentar[?]’

É espe­ci­al­mente grave esta refle­xão final, na medida em que parece auto­ri­zar a ine­xis­tên­cia futura de con­tac­tos de jor­na­lis­tas do jor­nal Público junto deste Gabi­nete, des­con­si­de­rado de modo ina­cei­tá­vel pelo Senhor Pro­ve­dor por moti­vos que só podem redun­dar de grave pre­con­ceito polí­tico ou ide­o­ló­gico e não são de todo reco­men­dá­veis na prá­tica pro­fis­si­o­nal do jornalismo.

Refere o Senhor Pro­ve­dor que um jor­nal inde­pen­dente não deve ‘satisfazer-se com fon­tes ofi­ci­ais e ver­sões poli­ci­ais’. A per­gunta que lhe diri­gi­mos é a inversa: deve um jor­nal divul­gar uma notí­cia em que são visa­das auto­ri­da­des polí­ti­cas e mem­bros de cor­po­ra­ções poli­ci­ais des­cu­rando os con­tac­tos com estas enti­da­des pelo sim­ples facto de exer­ce­rem fun­ções públicas?

Pela con­si­de­ra­ção pes­soal que nos merece, e pela rele­vân­cia que atri­buí­mos às con­si­de­ra­ções do foro téc­nico e deon­to­ló­gico que sema­nal­mente explana na sua coluna do jor­nal de que é Pro­ve­dor, muito gra­tos lhe fica­ría­mos se dig­nasse abor­dar esta ques­tão numa futura coluna do Público.

Gabi­nete do Ministro-Adjunto e dos Assun­tos Parlamentares

Res­posta ao Gabi­nete do Ministro-Adjunto e dos Assun­tos Parlamentares

1. Não é ver­dade que tenha aco­lhido como ‘boa, exclu­si­va­mente’, uma ver­são. Resumi os fac­tos que oPÚBLICO e outros órgãos de comu­ni­ca­ção repor­ta­ram, cor­ri­gindo o teor de infor­ma­ções (erra­das) ini­ci­al­mente divul­ga­das. Cri­ti­quei, isso sim, o facto de a pri­meira notí­cia do PÚBLICO, na linha de uma notí­cia do Expresso que terá sido con­fir­mada por esse gabi­nete, aco­lher como ‘boa, exclu­si­va­mente’ uma ver­são dos acon­te­ci­men­tos que não fora sujeita a con­tra­di­tó­rio nem a veri­fi­ca­ção. Ver­são essa que, pelo que se depre­ende desta carta, será, nome­a­da­mente, a de ‘dois mem­bros da comi­tiva do ministro’.

2. Pelo con­trá­rio, expli­quei cla­ra­mente que ‘há duas ver­sões con­trá­rias do que se pas­sou’ em rela­ção ao inci­dente ocor­rido no hotel da Horta, que resul­tou na deten­ção do jor­na­lista. Escrevi que ‘os segu­ran­ças acusam-no [a Nuno Fer­reira] de ter ten­tado agredi-los, enquanto o jor­na­lista garante que foi ele a vítima de agres­são’, e sali­en­tei que essa diver­gên­cia não foi ainda devi­da­mente clarificada.

3. Não é ver­dade que o ex-jornalista do PÚBLICO tenha sido citado em dis­curso directo na minha coluna. Aliás, não o contactei.

4. Tam­bém não con­tac­tei, nem tinha de con­tac­tar, esse gabi­nete. Não redigi uma notí­cia sobre os acon­te­ci­men­tos. Ava­liei e cen­su­rei os pro­ce­di­men­tos que con­du­zi­ram à deci­são de publi­car uma peça noti­ci­osa que se reve­lou falsa e teve de ser cor­ri­gida. Expli­quei, no entanto, aos lei­to­res que um dos moti­vos invo­ca­dos para essa deci­são, a meu ver errada, foi a de que o texto em causa fora ela­bo­rado a par­tir de infor­ma­ções divul­ga­das pouco antes pelo Expresso, numa notí­cia cujo teor, con­forme me garan­tiu o edi­tor doPÚBLICO Luci­ano Alva­rez, lhe fora entre­tanto con­fir­mado ‘na ínte­gra’ por esse gabinete.

5. Nessa notí­cia do Expresso escreveu-se, por exem­plo, que ‘o homem [Nuno Fer­reira] ten­tou che­gar junto do quarto do minis­tro’. A Sic Notí­cias deu a mesma infor­ma­ção. Num des­pa­cho da Lusa, foi-se um pouco mais longe e disse-se que ‘um homem [Nuno Fer­reira] ten­tou entrar no quarto’. E por aí adi­ante. Nada disto foi dado como con­fir­mado, tudo isto foi depois cor­ri­gido. Por isso admiti na minha cró­nica que este terá sido um epi­só­dio de ‘into­xi­ca­ção informativa’.

6. De acordo com a pri­meira peça do PÚBLICO — e foi sobre essa que me pro­nun­ciei — ‘um jor­na­lista, resi­dente da Costa da Capa­rica [sic], terá ten­tado agre­dir o minis­tro Miguel Rel­vas’. Essa infor­ma­ção foi des­men­tida e não consta da acu­sa­ção feita a Nuno Fer­reira. Por isso escrevi tam­bém que se tra­tava de ‘uma his­tó­ria inventada’.

7. A ideia de que o que escrevi ‘parece incen­ti­var os jor­na­lis­tas do Público a não pro­cu­rar a ver­são dos acon­te­ci­men­tos, des­tes ou de quais­quer outros, que envol­vam o Minis­tro Miguel Rel­vas’ e ‘parece auto­ri­zar a ine­xis­tên­cia futura de con­tac­tos de jor­na­lis­tas do jor­nal Público junto deste Gabi­nete’ não tem qual­quer fun­da­mento. Pro­cu­rei, sim, como deve­ria ser evi­dente para quem tenha lido o que escrevi, incen­ti­var os jor­na­lis­tas a bus­ca­rem sem­pre o con­tra­di­tó­rio, a informarem-se das ver­sões dife­ren­tes ou con­tra­di­tó­rias sobre os fac­tos. Devo notar que, neste caso, não foi o gabi­nete do minis­tro que não foi ouvido.

8. Estou certo de que, se tivesse feito uma reco­men­da­ção tão dis­pa­ra­tada como essa que me é atri­buída nesta carta, nenhum jor­na­lista sério a segui­ria. O minis­tro Rel­vas e o seu gabi­nete devem evi­den­te­mente ser sem­pre ouvi­dos sobre qual­quer tema que lhes diga res­peito e acerca de qual­quer maté­ria que este­jam qua­li­fi­ca­dos para escla­re­cer. Têm, aliás, o dever de pres­tar as infor­ma­ções de inte­resse público que lhes sejam solicitadas.

9. Tendo eu ques­ti­o­nado, a pro­pó­sito deste caso, que um jor­nal inde­pen­dente possa ‘satisfazer-se com fon­tes ofi­ci­ais e ver­sões poli­ci­ais’, pergunta-se-me nesta carta se ‘deve um jor­nal divul­gar uma notí­cia em que são visa­das auto­ri­da­des polí­ti­cas e mem­bros de cor­po­ra­ções poli­ci­ais des­cu­rando os con­tac­tos com estas enti­da­des’. A res­posta é obvi­a­mente nega­tiva, mas a per­gunta vem pouco a pro­pó­sito num caso em que não são essas enti­da­des as visa­das, nem foram elas que não foram ouvidas.

10. Que o jor­na­lismo inde­pen­dente não deve ‘satisfazer-se com fon­tes ofi­ci­ais’ ou ‘ver­sões poli­ci­ais’ é um pre­ceito tão essen­cial ao cum­pri­mento da sua mis­são que nem merece dis­cus­são. Mas eu acres­cen­tei, no que se refere às ver­sões poli­ci­ais: ‘para mais quando estas resis­tem com difi­cul­dade a um juízo de vero­si­mi­lhança’. Um juízo desse tipo não é uma afir­ma­ção taxa­tiva sobre a ver­dade de fac­tos ainda por apu­rar face a ver­sões con­tra­di­tó­rias. É um juízo de pro­ba­bi­li­dade que acon­se­lha cau­tela e dili­gên­cia acres­ci­das no relato de fac­tos sobre os quais per­sis­tem nar­ra­ções divergentes.

11. Neste caso, não me parece difí­cil arris­car uma opi­nião sobre qual de dois cená­rios em con­fronto é à par­tida mais vero­sí­mil. O jor­na­lista Nuno Fer­reira deci­diu agre­dir um agente de segu­rança que o impe­dia de ‘ace­der ao quarto onde se encon­trava o senhor minis­tro’ (como se escre­veu num comu­ni­cado da PSPcitado no PÚBLICO de 8 de Novem­bro), ou, como ele sus­tenta, foi blo­que­ado, detido e alge­mado por três ele­men­tos pre­su­mi­vel­mente liga­dos à segu­rança de Rel­vas quando per­cor­ria o cami­nho para o seu pró­prio alo­ja­mento? A hipó­tese de que tenha pre­ten­dido inva­dir vio­len­ta­mente o quarto pro­te­gido do gover­nante é mais pro­vá­vel do que a de ter sido vítima de inti­mi­da­ção por parte de agen­tes de segu­rança que o tinham visto ante­ri­or­mente, como ele pró­prio reco­nhece e foi noti­ci­ado, a diri­gir um comen­tá­rio hos­til ao minis­tro e a empu­nhar mais tarde, paci­fi­ca­mente, um car­taz iró­nico que o tinha tam­bém por alvo?

12. Final­mente, a frase con­si­de­rada ‘espe­ci­al­mente grave’ pelo gabi­nete do minis­tro. Ques­ti­o­nei que oPÚBLICO con­fe­risse uma ‘cre­di­bi­li­dade isenta de dúvi­das [a um] gabi­nete gover­na­men­tal cuja rela­ção pecu­liar com a ver­dade já pôde expe­ri­men­tar’. Não o fiz movido por qual­quer pre­con­ceito, mas pelas lições da expe­ri­ên­cia. As fon­tes ofi­ci­ais não são todas iguais: se em rela­ção a todas elas os jor­na­lis­tas devem evi­tar uma posi­ção acrí­tica, será natu­ral que enca­rem com mais dúvi­das ou des­con­fi­ança as que no pas­sado deram moti­vos para ver dimi­nuída a sua fia­bi­li­dade. Na minha opi­nião — que par­ti­lhei com os lei­to­res aquando das ina­cei­tá­veis pres­sões deste minis­tro sobre uma jor­na­lista do PÚBLICO —, há razões de sobra para incluir nessa cate­go­ria Miguel Rel­vas e o seu gabinete.”