“Eu me lembro de um sujeito, encostado num lampião lendo à luz de gás o jornal do Irineu Marinho. Estou certo de que se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor”, escreveu Nelson Rodrigues na crônica “Memórias”. Nascido em 1911 pelas mãos de Irineu Marinho, o vespertino consolidou uma nova forma de jornalismo no Brasil do início do século XX. Sua história e a de seu fundador são os fios condutores do livro Irineu Marinho – Imprensa e cidade (Globo Livros/Memória Globo), da socióloga e professora da PUC-Rio Maria Alice Rezende de Carvalho, lançado na quinta-feira (29/11), na Livraria da Travessa do Shopping Leblon.
Um aliado do novo leitor
A autora não considera a obra uma biografia – embora também evidencie aspectos mais pessoais, como as relações familiares, principalmente o papel da mulher, Dona Chica, na vida de Irineu Marinho – e sim uma história das transformações passadas pela sociedade e pela imprensa brasileiras nas primeiras décadas do século XX. O Império tinha sido sucedido por uma jovem República, mas continuava o controle das oligarquias. A urbanização avançava, assim como a concentração da população nas cidades. Segundo Maria Alice, Marinho compreendeu as mudanças e criou “A Noite” como um aliado do novo leitor que emergia.
– Ele definiu que o jornal sobreviveria sem subvenção estatal e para isso precisaria vender muito. Irineu tinha a compreensão de que o jornal deveria ser um negócio voltado para um público que tinha mudado. Um público urbano, trabalhadores da cidade que estavam interessados em notícia e informação. O jornal tinha dois focos: a política nacional e a cidade do Rio de Janeiro – explica a socióloga.
Em A Noite, saem de cena os chamados “artigos de fundo”, longos textos assinados por escritores e políticos, comuns à época, e ganha relevo a figura do repórter, responsável por contar, numa linguagem acessível, as histórias das ruas. O Rio fervilhava com as transformações urbanísticas e também culturais. E o repórter, de acordo com Maria Alice, era um dos responsáveis pela mediação entre as casas pobres da Cidade Nova e os salões da elite.
O vespertino logo se notabilizou pelas reportagens de denúncia, especialmente as de polícia, e campanhas como a luta contra o charlatanismo. O destaque das imagens, em especial as caricaturas, é outra de suas marcas. Marialva Barbosa, professora titular de jornalismo da UFRJ, ressalta que o jornal reforçou um movimento iniciado nos primórdios do século XX no Brasil, e observado nos Estados Unidos e na Inglaterra.
– A Noite reforça, aprimora e destaca algo que começou a ser feito pelo Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã. Cria essa faceta mais popular, com uma redação mais próxima do cotidiano e a inclusão de temas de interesse de um público mais amplo – afirma Marialva.
Maria Alice aponta no estilo do jornal a defesa, por Marinho, de um modelo de nação mais inclusivo e menos oligárquico, com os olhos no futuro. Um exemplo dessa visão foi a diversificação dos seus negócios, com a criação de uma produtora cinematográfica, a Veritas Filmes, e uma editora, a Empresa de Romances Populares.
Contudo, a postura combativa e independente de A Noite renderia conflitos com diferentes governos. Como nota o historiador José Murilo de Carvalho, no prefácio do livro, “Irineu Marinho, para seu mérito, não conseguiu se manter alheio à política”. No dia 5 de julho de 1922, ocasião da revolta dos 18 do Forte, o jornalista foi preso.
Dono de uma saúde frágil, os quatro meses na cadeia foram duros. Dois anos depois, Marinho passou por uma cirurgia no pulmão, alvo de problemas crônicos. Com as complicações de saúde, a deterioração do ambiente político sob a presidência de Artur Bernardes e a possibilidade de uma nova prisão, decidiu partir para a Europa com a família. Antes de viajar, o fundador de A Noite cedeu o controle acionário do vespertino para Geraldo Rocha. Os termos da operação são nebulosos, mas, segundo Maria Alice, é provável que o acordo previsse a retomada das ações na volta. No entanto, nos nove meses de viagem, mudanças no comando do jornal e de sua linha editorial o preocuparam. O jornalista não queria que seu nome fosse associado a posições estranhas às suas.
Sua saída de A Noite foi oficializada em março de 1925, dias após chegar ao Brasil. Quatro meses depois, em 29 de julho, circulava pela primeira vez o então vespertino O Globo. O esforço para montar uma redação em espaço tão curto de tempo lhe custou a vida. Morto 20 dias depois, de um enfarte, aos 49 anos, Irineu Marinho não teve a chance de ver sua nova empresa florescer.
As reportagens feitas pelo jornal A Noite mobilizavam os leitores, lembra a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, autora de Irineu Marinho – Imprensa e cidade. O vespertino captava angústias, anseios, medos e problemas da população do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX e os levava para suas páginas. Em um dos casos mais célebres, o jornal se levantou contra a massa de videntes, quiromantes e curandeiros que se aproveitavam da fé alheia.
Na famosa campanha contra o charlatanismo, o repórter Eustáquio Alves assumiu o papel do faquir Djogui Harad para demonstrar como os cariocas eram enganados. Em novembro de 1915, o jornal alugou uma casa na Rua Evaristo da Veiga e lá instalou o consultório. Caracterizado, Alves tinha criado, intérprete e um porteiro. Em um mês, foram atendidos 385 clientes.
No dia 14 de dezembro, a polícia, informada por repórteres de A Noite, invadiu o consultório e levou todos para a delegacia. Tudo foi acompanhado por jornalistas e ainda filmado pelos operadores do Cine Palais, que depois a exibiram no cinema com grande sucesso. Na reportagem publicada pelo vespertino, todos os detalhes do caso eram revelados, desde o aluguel da casa até a prisão.
– Eram comuns as matérias com acento de denúncia ou crítica. Por exemplo, foram denunciados os maus tratos que os pacientes estavam sofrendo no Hospital Nacional de Alienados, a maioria pobres que entregaram ao álcool. Algumas campanhas colavam fortemente na opinião pública – afirma Maria Alice.
Força no imaginário carioca
Dois anos antes, outro caso já exemplificava a forte ligação entre A Noite e a cidade. Em 2 de maio de 1913, os repórteres Castellar de Carvalho e o mesmo Eustáquio Alves instalaram uma roleta no Largo da Carioca, no Centro, com o cartaz: “Jogo franco! Roleta com 32 números – só ganha o freguês”. A ideia era ridicularizar o chefe de polícia, que, dias antes, declarara que a jogatina estava liberada até que o governo decidisse o contrário.
Rapidamente, formou-se uma grande confusão. A polícia tentou desmontar o “cassino”, mas foi impedida pela população. Depois de idas e vindas, foram todos para a delegacia. A reportagem, publicada no dia seguinte, encerrava com uma provocação: “E cá está (na redação de A Noite) a roleta para uma nova 'fezinha', se o dr. chefe de polícia continuar a fazer declarações tão patetas”.
O episódio é citado na letra do primeiro samba gravado no Brasil, “Pelo telefone”, de Donga, no trecho que diz “O chefe da polícia, pelo telefone, manda avisar, que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. A música, composta quatro anos depois da reportagem, mostra a força de A Noite no imaginário popular carioca.
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[Leonardo Cazes, de O Globo]