Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Google contra a ONU

Onde você estava quando o Google foi embora? Como você imaginaria um mundo com a internet fora do ar? Na segunda-feira (26/11), por volta das 16h20, o Google saiu do ar para um bom naco de brasileiros. Até o fechamento da coluna, ainda não estava claro se o problema técnico foi na empresa da Califórnia ou nas fornecedoras de acesso, aqui no país. Pois cá o colunista, ontem, estava à frente do computador. Fazendo uma busca, como qualquer outro ser humano normal. Primeira reação: a internet caiu. Não há de ter sido uma reação original. No Twitter, vários outros tiveram a mesma impressão inicial.

Quando tentamos entrar num site e ele não carrega, a primeira impressão é de que o site caiu. Com o Google, não. Parece que a internet saiu do ar. Não é apenas porque ele é um site popular. O Facebook recebe até mais visitantes. Inúmeros portais são frequentemente visitados. É que o Google se confunde com as funções da rede. Sem busca, de nada serve uma web farta. O Google é o elo que dá liga à internet. Mas é só na nossa cabeça. Nessas horas, seu principal concorrente, o Bing.com da Microsoft, funciona bem. Mas, se o Bing sair do ar, será que alguém repara?

Este contexto acidental entre uma internet fora do ar e o tamanho do Google serve bem a uma reflexão, pois o mesmo Google acaba de comprar uma briga com a Organização das Nações Unidas. É. A ONU, mesmo. No próximo dia 3 de dezembro, começa a reunião anual da União Internacional de Telecomunicações, UIT. A organização foi fundada em 1865 para dar um jeito nas interconexões telegráficas mundo afora. Hoje faz parte da ONU. Pois uma dupla de professores da Universidade George Mason, dos EUA, divulgou uma penca de documentos vazados segundo os quais, este ano, a UIT tentará assumir o controle da internet.

42 países filtram ou censuram conteúdo na internet

Em termos práticos, a internet é regida por um organismo que atende pelo nome ICANN. O ICANN responde ao Departamento de Comércio dos EUA. Se quisesse, o presidente americano poderia mexer na rede. Não o faz, mas poderia. O projeto da UIT não é novo. Seria a internacionalização da rede. E o Google é contra. No primeiro piscar de olhos, parece tudo muito coerente. Uma empresa privada americana, que talvez tenha poder demais sobre a internet, e o governo de um país poderoso à beça, estão de um lado e a UIT, ligada à ONU, do outro. Viva a liberdade da internet.

Mas não por isso. Os principais patrocinadores deste movimento são Rússia e China. E, aí, fica tudo bem mais claro. Na ONU, como não poderia deixar de ser, Rússia e China têm muito poder. Quem acompanha as árduas negociações no Conselho de Segurança, sabe. Por maiores que sejam os abusos de alguma ditadura, sempre estão lá um, outro, ou ambos, para se impor perante os EUA. E talvez não seja de todo mau. Evita iniciativas justiceiras.

Com a internet é diferente. Rússia e China não são países livres. Seus governos acreditam no controle de informação. Números coletados pelo Google: hoje, 42 países filtram ou censuram conteúdo na grande rede. Incluam-se na lista Rússia e China, mas também velhos conhecidos como Arábia Saudita, Irã, Paquistão.

Ônus da censura é de quem a deseja

Não é que, ao passar para o comando da UIT, a internet será imediatamente censurada. Em democracias, dificilmente algo mudará. Mas, lentamente, a pressão vai aumentar para que a arquitetura da rede seja modificada. E aí está o truque: tecnologia. Os inúmeros protocolos que regem a rede. Hoje, eles são cegos, surdos, mudos. Veem apenas bits, não sabem se carregam mensagens políticas, pornografia, desenhos animados. Poderia ser diferente.

Hoje, o ônus da censura é de quem a deseja. Da maneira como a rede é construída, é muito difícil fazer. E, não à toa, em países censores contumazes há muita gente esperta que sabe driblar os controles. Se, porém, a internet fosse adaptada, tudo seria diferente.

O Google tem provavelmente poder demais sobre a rede. E não é bom que um país apenas seja “dono” da internet. Mas, perante a alternativa proposta à mesa, como está é bem melhor do que uma rede sob controle internacional.

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[Pedro Doria, de O Globo]