Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O funeral midiático

Começo este artigo me apoiando em dois argumentos contidos, respectivamente na tese sexta e sétima do ensaio de Walter Benjamin Sobre o conceito de História, escrito no ano de sua morte, em 1940. Na sexta tese me deterei no seguinte trecho: “O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela.”

Da sétima tese, por sua vez, considerarei o seguinte argumento: “Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.”

Em diálogo com a supracitada sexta tese de Sobre o conceito de história, defendo que os meios de comunicação devem ser compreendidos literalmente como os instrumentos tecnológico-comunicativos das classes dominantes, na atualidade, razão por que se constituem como o próprio conformismo apoderado, apoderando-nos. Nesse contexto, o que usualmente é chamado de liberdade de expressão nada mais é do que a liberdade sem fim de se conformar, como instrumentos comunicativos, às classes dominantes. Qualquer outra forma de liberdade expressiva, nesse contexto, será considerada automaticamente como censura à função instrumental-conformista da e na sociedade do espetáculo em que vivemos, a qual poderia também ser chamada de sociedade do conformismo.

Lei democratizante

Não existe, pois, contradição alguma na concepção de liberdade de expressão das corporações midiáticas. Para elas, liberdade de expressão é pura e simplesmente liberdade de usar as tecnologias midiáticas como instrumentos das classes dominantes, fazendo proliferar conformismos. Qualquer dispositivo jurídico que bloqueie ou limite minimamente a função instrumental-conformista dos meios de comunicação será denunciado previsivelmente como censura, autoritarismo, populismo, anacronismo, ditadura ou qualquer outro nome pejorativo.

O DNA das corporações midiáticas é a sua função literalmente instrumental-conformista em relação às classes dominantes planetárias, principalmente às mais dominantes delas, entre elas: a estadunidense, em primeira instância; e as ocidentais, de modo geral, em segunda. Embora admita que o fim do monopólio, ou do oligopólio, na área das comunicações, seja um democrático extraordinário avanço, tais fins não significam por si sós uma verdadeira democracia midiática.

Só existe uma saída para esse imbróglio: a política, entendida como o lugar do inconformismo, num contexto em que este (e aqui entro na sétima tese de Walter Benjamin) deve ser claramente entendido como litígio em relação aos vencedores de hoje e de ontem. Uma lei dos médios, pois, realmente democratizante, deve facultar a existência de canais de televisão, de rádio, portais de internet, imprensa escrita de DNAs assumidamente inconformistas, em relação às classes dominantes locais e planetárias, recusando sem cessar a apresentar-se como herdeira dos vencedores de ontem e de hoje.

Cortejo triunfal

A sétima tese de Walter Benjamin, como é possível observar, é de uma atualidade incisiva, constituindo-se como uma decisiva encruzilhada comportamental, ética, estética, social, cultural, econômica, razão por que sem cessar nos coloca, em todos os planos da vida, a seguinte questão político-esfíngica: ou encarnamos o cortejo dos vencedores e espezinhamos os vencidos, mesmo que estes sejam nós mesmos; ou recusamos, no presente que nos cabe viver, não apenas a pose, o estilo, o lugar dos vencedores, mas também o desejo de ser um vencedor.

Não se trata, bem entendido, de defender a derrota ou de conformar-se com o vencido, posicionando-nos como um paradoxal conformismo às avessas: o conformismo com o derrotado, o fracassado, explorado, o vencido. Para se contrapor ao cortejo triunfal dos vencedores de ontem e de hoje, é preciso não apenas recusar ou trair a herança civilizacional dos vencedores, mas também não ser seu instrumento, seja como vencedor, seja como vencido, das classes dominantes, razão pela qual o inconformismo deve constituir-se, num mundo de cortejos triunfais, como um princípio de criação, de produção crítica, de pensamento, de aprendizagem e de ensino; de relações interpessoais, de felicidade, de vida, de ação – o princípio dos princípios, o qual não apenas deveríamos defender e praticar, mas também reverenciar e apoiar, em outrem, quando age, pensa, cria, ama, vive, como inconformista.

Por sua vez, o inconformismo, como princípio existencial, ético, estético, deve constituir-se, não menos literalmente como uma posição e ao mesmo tempo uma oposição clara em relação a todo e qualquer cortejo triunfal, venha de onde vier, como os cortejos triunfais da arte de prestígio (o da literatura, por exemplo), dos saberes considerados rigorosos, desejáveis, das relações econômicas fundadas na relação de compra e venda – os cortejos triunfais, enfim, do conjunto de nossa civilização burguesa, ela mesma o cortejo triunfal por excelência, a espezinhar a vida na Terra.

Monumento à barbárie

E é precisamente porque os meios de comunicação se constituem como os conformistas instrumentos dos cortejos triunfais da informação, da criação, da política, da economia, do amor, das subjetividades, da vida, enfim, que nada lhes dá mais prazer tétrico-funeral que a comunicação espetacular da morte de um inconformista famoso, não obstante eles mesmos, os conformistas meios de comunicação, tudo tenham feito e fazem para que tal ou qual famoso inconformista se tornasse ou se torne um morto enquanto vivo, através simplesmente do silêncio absoluto em relação ao seu vivo inconformismo, quando era vivo e quando morre.

Eis aí, pois, o que se tornou o espetáculo midiático em torno da morte do arquiteto Oscar Niemeyer: um cortejo triunfal conformista sobre a morte antes de tudo de seu vivo, quando era vivo, inconformismo comunista. Se, portanto, como vivo inconformista, Oscar Niemeyer simplesmente não existia para os vencedores meios de comunicação do Brasil – e mesmo do mundo –, agora que morreu a marcha triunfal-funerária das conformistas mídias brasileiras festejou instrumentalmente sua morte, espezinhando no vivo inconformismo de tudo que ele foi e fez.

Espezinhando, pois, o inconformismo de todos os vencidos, de ontem e de hoje, razão por que as dominantes mídias devem ser definidas como, para citar novamente Walter Benjamin, o planetário monumento à barbárie de nossa vencida vendida época.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]