A internet, essa maravilha sem dono, há tempos atiça a cobiça de governos, sempre dispostos a tentar controlar o fluxo das ideias, e de empresas de telecomunicação, interessadas em impor à rede mundial regras que lhes confiram receitas adicionais. Esse espectro paira sobre a conferência da União Internacional de Telecomunicações (UIT), que vai até 14 de dezembro em Dubai e que tratará dos ITRs (regulamentos internacionais de telecomunicação, na sigla em inglês). A última reunião para revisar os ITRs foi em 1988, quando a web, criada fora do mundo tradicional das telecomunicações, apenas engatinhava. De lá para cá, ela ameaça condenar os velhos modelos de negócio e de comunicação à obsolescência, razão pela qual é provável que surjam propostas para que se dê à UIT o poder de impor uma regulação que acabe por manietar a internet, situação que merece enfático repúdio.
A UIT, órgão da ONU que conta com a participação dos governos e das grandes teles, define padrões de modulação e coordena recursos de telefonia e de uso do espectro de radiofrequência. Sobre a estrutura de telecomunicações, mas indo muito além dela, roda a internet. Hoje, tudo acaba sendo transportado pela rede das redes, seja a antiga telefonia, seja o correio, seja a comunicação entre indivíduos, gerando novas formas de ganhos.
De certa maneira, a UIT vê sua atuação sendo reduzida nos novos tempos e vê os modelos tradicionais de receita das teles assediados por formas muito competitivas e baratas, capazes de implementar os mesmos serviços, mas de forma melhor. Assim, certamente haverá em Dubai quem defenda o aumento do espectro de atuação da UIT, tentando domar a internet, bem como haverá propostas de geração adicional de receitas sobre serviços de rede, que já pagam pelo que usam, mas que, pelo fato de gerarem ganhos em abundância, atraem a atenção das teles.
Se bem-sucedidas, essas propostas trarão múltiplos riscos à internet. Por um lado, pode ser quebrada a neutralidade da rede, em que a infraestrutura se encarrega apenas de levar a informação do gerador ao consumidor, sem distinção, garantindo uma rede em que todos podem ter acesso a tudo, dentro do plano de velocidade de conexão contratado. Se essa neutralidade for quebrada, não será de espantar que passemos a ter de assinar serviços específicos, como voz ou dados. Seria como voltar aos tempos antigos da telefonia a longa distância. O Parlamento Europeu e as entidades reguladoras de comunicações eletrônicas do continente já se posicionaram contra essa proposta. Ademais, taxas extras seriam um obstáculo à criatividade e ao empreendedorismo, que são as marcas da internet, onde ninguém precisa de licença ou contrato para testar ideias.
Outro valor em risco é o que se refere à abertura e à liberdade da rede. Através da UIT, governos tentam introduzir mecanismos de controle de conteúdo e comportamento na rede, ignorando o fato de que nela não há, nem pode haver, fronteiras claras. Quem deve escolher que sítios visita é o próprio indivíduo.
Finalmente, é importante notar que a internet usa infraestrutura de telecomunicações, mas com ela não se confunde. Não há porque a UIT arvorar-se em órgão regulador da internet. O Brasil é um bom exemplo nessa área porque aqui, desde 1995, a internet é considerada “serviço de valor adicionado” e, portanto, não submetida à Lei Geral de Telecomunicações de 1997 ou ao órgão regulador de telecomunicações. O Marco Civil da Internet, hoje em trâmite no Congresso, garantirá valores como os da neutralidade e do respeito à privacidade dos usuários, para que as conquistas que a web potencializou e que já fazem parte do nosso dia a dia não se percam.
A internet, por definição, é um ambiente livre. Quantidades imensas de informação tornaram-se disponíveis a todos, transações passaram a estar ao alcance dos dedos, opiniões puderam ser exprimidas facilmente gerando e articulando grupos de interesse e de ação. O mundo mudou muito desde a criação da internet e, cremos, para muito melhor. Esperemos que esses valores, tão caros a todos, não sejam ameaçados em Dubai.