Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A desconexão jornalística entre a realidade e o mundo

Qual a função essencial do jornalista para a sociedade que justifica o motivo de sua existência? Levar a informação correta ao leitor ou levar suas assombrações e crenças pessoais no irracional? Enquanto em política esta verdade é impossível de conseguir, pois não existe um parâmetro certo fora da ideologia e da filosofia de cada um, isto é completamente falso em ciência! No entanto, vemos jornalistas se mantendo neste dolce fare niente da divulgação de coisas falsas! Aquele embate contraditório entre jornalistas políticos e de economia não existe na área de divulgação científica. A tese falsa e desmascarada de ontem, pode muito bem ser trazida novamente, contando com a ‘impunidade’ da ausência de crítica. Coisas que já caíram na descrença no século 18 voltam como se fossem novidades e grandes descobertas.

Assim é com o criacionismo ou o desenho inteligente. Uma roupa nova para o primeiro é despejada no público como se fosse uma tese científica alternativa e recém-descoberta. Tratamentos religiosos primitivos retornam como grandes descobertas, ignorando completamente seu abandono há mais de 2.300 anos por serem falsas e inúteis as razões pelas quais Hipócrates é considerado o pai da medicina. Justamente por ter enunciado pela primeira vez que as doenças se deviam a causas naturais e que, se descobertos seus mecanismos, poderiam ser racionalmente entendidas e tratadas. Mesmo assim, assistimos a médicos tentando se passar por sacerdotes para ganhar dinheiro fazendo terapias de vidas passadas, como se estivéssemos ainda na época pré-hipocrática! Fazendo curandeirismo com diploma de médico.

Embusteiros e místicos

Sabemos que isto se deve à completa falta de preparo científico com que o jornalista se forma na faculdade. Não domina as bases da ciência natural e fica preso, como qualquer leitor não acostumado a pensar nesta área, deslumbrado pelo que ‘descobre’ desse mundo que desconhecia, como os leitores, para trazer teses refutadas como grandes novidades. Não possui formação para testar a plausibilidade do que descobriu e a acaba levando ao leitor como coisa mais do que certa.

Um programa do Discovery Channel reproduz a história das personalidades corruptas da história, destacando sua total impunidade justamente por não existirem jornalistas, fotógrafos, comentaristas para denunciar as barbaridades que faziam em seus palácios naquela época. O que ocorre hoje em dia no mundo do embuste. O jornalista virou parceiro dos curandeiros, praticantes do exercício ilegal da medicina, embusteiros, místicos, novas religiões que proliferam na periferia cobrando o dízimo dos iludidos e prometendo felicidades e vagas no céu para quem mantiver a ‘poupança’ em dia. Não questiona as instituições porque no Brasil se reconhecem coisas desacreditadas no resto do mundo médico ou científico.

Ineficácia terapêutica

Após a Revolução Francesa ter desmascarado as falsas formas de conseguir emancipação e obter a verdadeira libertação pelo conhecimento, voltamos rapidamente à estaca zero da crítica aos enganadores. Aos vendedores de ilusão, ou iludidos, vendendo impunemente coisas tolas e falsas por meio de um jornalismo deslumbrado e jornalistas vendendo suas crenças irracionais.

O jornal Zero Hora, no seu caderno ‘Vida’, mais uma vez brinda os seus leitores com aquela desinformação na medida do gosto daquele que pratica estas coisas que só ocorrem no Brasil. Como o espiritismo kardecista e, no caso em pauta, seu paralelo, a homeopatia. ‘A um passo do reconhecimento – Homeopatas lutam por desfazer mitos que colocam em dúvida o poder terapêutico das soluções ultradiluídas.’ Já o título é uma falsidade. Não existe dívida alguma sobre a inércia das soluções ultradiluídas. A homeopatia foi desvendada desde o início de sua criação, razão pela qual Hahnemann utilizou praticantes não médicos na sua maioria, na mais das vezes, advogados que acreditavam no sobrenatural. E a matéria aprofunda a desinformação: ‘Apesar de ser reconhecida como especialidade médica – ao lado das tradicionais cardiologia e neurologia, por exemplo – pelo Conselho Federal de Medicina desde a década de 80’ (…). Isto só ocorre no Brasil, pois no mundo ela não é especialidade, nem reconhecida pelas organizações de saúde. Não existe a relação com as bases – como existe em todas as outras especialidades médico-científicas (reconhecidas no exterior) com exceção da acupuntura –, que são evoluções do conhecimento da ciência médica. Não existe relação da homeopatia com a química e a física, nem mesmo com a medicina. Tanto por suas bases falsas, que contrariam desde o nascedouro os elementares princípios das ciências, como pela exaustiva demonstração de sua completa ineficácia terapêutica.

Apego ao lucro

Apesar do presidente da Sociedade Gaúcha de Homeopatia, Érico Dorneles, dizer ‘que a especialidade está a um passo de obter o tão desejado reconhecimento da classe médica’ e da médica homeopata Liliane Schuck Azambuja afirmar que ‘as homeopatias, quando bem indicadas, podem controlar crises de febre, inflamações e dores abdominais em poucos minutos’ e que a técnica ‘também tem se mostrado eficaz no tratamento de alergias, infecções e efeitos da tensão pré-menstrual e da menopausa’, as provas científicas têm sido exaustivamente repetidas no que se refere a essas falsas afirmações e têm demonstrado sua repetida ação placebo. Coisa que já foram divulgadas aqui e na literatura médica através do mundo. No artigo ‘Paralogismos do jornalismo cientifíco‘, publicado neste Observatório, o autor enganou-se ao confundir a intoxicação afirmada pela Associação Americana do Centro de Controle de Envenenamentos com baixas diluições pelas altas, para mostrar que elas intoxicavam. Se não havia provas científicas de que elas curavam, pelo menos isso, já que para quem possui provas da efetividade curativa, não buscaria esta do dano da mesma ainda presente. Um tiro no pé, em termos de argumentação, eu diria. Uma demonstração de que é mais perigosa do que benéfica, pois seria apenas uma prova de alguma ação. Mesmo que falsa, como apontamos pelo erro de leitura. Continuando a matéria em defesa do que não é verdade, o texto afirma: ‘Profissionais da área acreditam que a espera esteja chegando ao fim.’ Parece que nossos jornalistas acreditam que o Brasil está desconectado do mundo. Que a realidade científica aqui é independente do conhecimento do resto do mundo médico.

O que acontece é que os homeopatas, como com os jornalistas do caderno ‘Vida’, só consideram os raros trabalhos, que por serem mal feitos, dão algum resultado (justamente por isso). Os milhares que comprovam a ineficácia são sempre ignorados. O problema da auto-sugestão é que as pessoas que padecem de doenças reais, estão perdendo tempo e dinheiro, enquanto sua saúde deteriora. Apenas isso. É justamente por isto que as pessoas deveriam ser honestas para com os que sofrem e só empregar terapias que realmente funcionem e no que funcione, e não as que gostariam que assim fosse, ou só se apegarem ao lucro, sem retorno algum para o paciente real.

Não funciona mesmo

Foi este o sentido do recente editorial ‘The end of homoeopathy’, da publicação Lancet, 2005;366:690: ‘que os médicos devem ser corajosos e honestos sobre a falta de benefícios’. Mostrando que a medicina séria, a que existe na maioria dos países desenvolvidos, não está nem um pouco impressionada com as afirmações gratuitas feitas por jornalistas despreparados para fazer descobertas verdadeiras.

Claro que para o que não funciona, a explicação é que seja placebo mesmo. Não precisa nenhuma descoberta mirabolante para saber como os placebos, dos mais diversos tipos, agem sobre seu alvo, o ser humano. O que não ocorre no tratamento racional das doenças jamais será descoberto, pelo motivo de que não funciona mesmo.

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Médico, Porto Alegre, RS