Aclamado como um desenhista revolucionário na indústria dos quadrinhos, o canadense Todd McFarlane, que há 20 anos criou Spawn, resolveu celebrar as duas décadas de seu best-seller com um projeto fora dos gibis: virar cineasta. Ele vai dirigir um novo filme de seu anti-herói. Em entrevista ao Globo em Los Angeles, num intervalo da sessão de autógrafos do livro The art of Todd McFarlane, coletânea de desenhos que lança nos EUA, o artista de 51 anos expôs os planos audiovisuais para o Soldado do Inferno, tendo cults do terror com referência e a meta de filmar com até US$ 10 milhões. Indo de Batman a Hitchcock, McFarlane dimensiona o mercado em que virou uma lenda.
Neste momento em que lança a coletânea “The art of Todd McFarlane”, o senhor finaliza um roteiro para um novo filme do Spawn com a meta de dirigi-lo. Em que pé está esse projeto, de que forma ele se aproxima do longa anterior, de 1997?
Todd McFarlane – Spawn só volta para as telas se eu dirigir a adaptação dos quadrinhos. A condição é essa porque eu quero fazer uma produção muito pequena, cujo custo não chegue a US$ 10 milhões, para poder ter a liberdade de fazer um filme adulto, consistente. Robert Rodriguez conseguiu fazer “Sin City”, em parceria com Frank Miller, do jeito que o quadrinho merecia, porque filma barato, do jeito dele, com controle do corte final. Estou finalizando o roteiro com a certeza de que será algo sem ligação alguma com o filme de 1997. Nem falas Spawn terá, porque eu quero fazer com ele não uma aventura de super-herói e sim um filme de horror, sobre um vigilante que se move nas sombras. Na história que criei, Spawn veio do inferno. Nada mais adequado. De que maneira o senhor, um desenhista de formação, prepara-se para dirigir?
Spawn terá, porque eu quero fazer com ele não uma aventura de super-herói e sim um filme de horror, sobre um vigilante que se move nas sombras. Na história que criei, Spawn veio do inferno. Nada mais adequado. De que maneira o senhor, um desenhista de formação, prepara-se para dirigir?
T.McF. – Eu tenho Hitchcock como padrão estético: ele sugeria em vez de escancarar, fazia o medo a partir da música, de movimentos sutis de câmera. Quero isso. Cresci vendo filmes de terror de verve realista, como “A profecia” e “O exorcista” e queria repetir essa estrutura, abrindo mão de ter um supervilão. O medo viria da presença do Mal. O engenho cinematográfico viria das formas de apreensão desse Mal pela câmera. Spielberg matou todo mundo de susto com “Tubarão” sem mostrar o bicho, usando só os acordes da trilha sonora para indicar que ele se aproximava. E, até hoje, aquele filme, feito em 1975, assusta.
E o que falta para filmar?
T.McF. – Falta ter o sinal verde de um estúdio que banque a minha liberdade, o que não está longe, pois já estou conversando com alguns atores de peso que se interessam pelo personagem. Já procurei inclusive um ator ganhador do Oscar (McFarlane mantém o segredo por conta da negociação, mas os boatos em Los Angeles falam de Forest Whitaker e Cuba Gooding Jr.) para protagonizar o projeto. O que facilita a minha negociação é que tenho o projeto de uma nova série de animação para a TV com o personagem, diferente do que se fez no passado (em 1998, “Spawn” virou série animada na HBO) , o que interessa investidores e produtores.
Logo que surgiu, há 20 anos, Spawn entrou em enquetes das revistas “Empire” e “Wizard” para definir os personagens de HQ mais cultuados. A primeira edição vendeu 1,7 milhão de cópias fazendo dele um dos quadrinhos mais rentáveis da indústria. Como vão as vendas hoje?
T.McF. – Não só “Spawn” mas todas as outras séries de HQ sofreram uma retração enorme. Sabe qual foi a maior transformação nos quadrinhos de 1992 para cá? Naquela época, se um gibi vendesse cem mil exemplares, ele precisaria ser repensado editorialmente para não ser cancelado. Hoje, o quadrinho que vende cem mil cópias vira, na hora, um best-seller de se estourar rojão. Outro dia, ouvi que 800 lojas especializadas em HQs fecharam as portas. Se estamos aí, na edição de número 224, ainda vendendo, vencemos uma batalha (no Brasil, Spawn é publicado pela HQM editora, que compilou histórias inéditas no recente álbum “Herança maldita”) .
Foi surpresa ver a adesão do público e da crítica a um personagem tão fora dos padrões morais quanto Spawn? Na trama, seu alter ego, Al Simmons, é um militar negro que, morto em combate, vende a alma para poder rever a mulher e acaba envolvido numa conspiração entre a CIA e o Diabo. Isso chocou?
T.McF. – Existia uma coisa no Batman, talvez o mais genial dos heróis, que sempre me incomodou: por que raios o Homem-Morcego não mata logo o Coringa se sabe que seu inimigo vai continuar fugindo? Spawn surgiu para ser um Batman sem travas morais. Um Batman que mata. Quando Spawn apareceu, eu era um desenhista da Marvel Comics que fazia a arte para o gibi “Spider-Man”. Naquele momento, os ilustradores eram reféns do roteiro. Você era obrigado a resumir um painel que consumiria o espaço de cinco páginas a apenas duas. Eu cheguei às HQs propondo o contrário: vamos abrir espaço para o desenho, fazer um produto mais visual. A proposta da Image Comics, editora que eu e outros colegas de desenho (como Jim Lee, Marc Silvestri, Erik Larsen) criamos em 1992 para publicar nosso trabalho autoral independente das grandes corporações, era valorizar o desenho. Spawn nasceu nesse espírito e agradou não só por desafiar parâmetros de dramaturgia, mas por investir na forma.
Nesses 20 anos, o senhor resumiu seu trabalho a Spawn. Hoje, nem desenha mais. Só escreve. Não pensa em voltar à Marvel, onde construiu sua fama desenhando Homem-Aranha?
T.McF. – Não. Isso ficou no passado. Tenho muitos amigos na Marvel, recomendo a todo jovem desenhista que tente trabalhar lá ou na DC Comics, onde eu desenhei o Batman, mas a minha vida mudou. Dirijo uma empresa de bonecos (McFarlane Toys) , criei a HQ “Haunt”, hoje no número 28, tenho o projeto do filme e prefiro me concentrar em escrever. Reuni meu trabalho em “The art of Todd McFarlane” (ainda sem data para ser publicado no Brasil) para mostrar que o passado foi e é importante. Mas a vida foi além dele.
Como o senhor definiria seu traço?
T.McF. – Quando fui desenhar o Homem-Aranha, achava que ele estava mais “homem” que “aranha”, realista demais. Quis mudar isso, torná-lo mais “aranha”, mais animalesco nos movimentos. Era um modo de dar imaginação e colorido ao traço. Se eu trouxe uma contribuição, foi libertar a HQ do realismo.
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[Rodrigo Fonseca, de O Globo]