Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Os especialistas em Língua Portuguesa são contados nos dedos’

Cláudio Moreno, professor universitário, ensaísta, doutor em Letras pela PUC/RS, é colunista regular do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, com uma seção sobre mitologia e outra sobre questões de nosso idioma. É o criador e responsável pelo site Sua Língua, página especializada sobre a Língua Portuguesa. Publicou vários livros sobre redação, gramática e etimologia. Além disso, é o autor do romance Tróia: o romance de uma guerra e do livro de crônicas sobre a Antiguidade Um rio que vem da Grécia, ambos lançados em 2004 (Porto Alegre, LPM).

Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, ele comenta os novos caminhos da palavra pelo ‘Amazonas’ que é a internet, a admiração que provocam no público as intervenções de parlamentares nas CPIs transmitidas pela televisão e o novo livro que acaba de lançar, em co-autoria com o jornalista e juiz aposentado Túlio Martins (Português para convencer, Editora Ática).

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Português para convencer é um daqueles livros dos quais se pode dizer: indispensável. Como nasceu o projeto e como os dois autores chegaram à Ática, editora de tradição em livros de apoio no ensino?

Cláudio Moreno – Era um velho projeto meu, mas saiu melhor do que eu imaginava. Há dois anos eu tinha apresentado à Ática o projeto de um livro sobre como redigir textos persuasivos; a editora ficou interessada, mas sugeriu que eu me voltasse mais para a área jurídica, pela própria natureza da atuação dos juízes, advogados e demais operadores do Direito. Foi muito bom, porque isso me levou a procurar um parceiro especializado, Túlio Martins, juiz e jornalista, que aderiu com entusiasmo à idéia. Nos pusemos a trabalhar a quatro mãos, com uma afinação difícil de conseguir entre dois autores. Sozinho, nenhum dos dois teria conseguido escrever este livro; juntos, produzimos um belo manual, modéstia à parte. Ele é inovador e diferente de tudo o que foi feito até agora, o que faz nossos editores apostarem muito em seu sucesso.

Desde há alguns anos, existem professores como que dando aulas de língua portuguesa na imprensa, com colunas semanais assinadas. Por que isso se tornou uma necessidade para os leitores?

C.M. – Eu acredito que todo ser humano tenha uma curiosidade natural pela língua que utiliza. No Brasil, tradicionalmente, esse interesse só podia ser saciado em gramáticas ou em artigos de revistas acadêmicas, fontes extremamente distantes do público em geral. De dez anos para cá, no entanto, a imprensa percebeu que o Português é um assunto que atrai sobremaneira o leitor ou o espectador, e o que já acontecia em países do Primeiro Mundo finalmente chegou a nossas praias: dezenas de jornais mantêm colunas sobre o Português, há programas de TV especializados no assunto, como o do Nogueira e o do Pasquale, há sites e blogs na internet – e até mesmo uma revista feminina de variedades, como é o caso de Caras, percebeu que deveria oferecer a seus leitores uma sofisticada coluna sobre etimologia, mantida há muito tempo pelo Deonísio da Silva. Já virou costume (e dos bons); as seções sobre Língua Portuguesa pouco a pouco vão se tornando quase obrigatórias, como as palavras cruzadas, a meteorologia e o horóscopo.

Outros fatores colaboram para esse aumento de prestígio de livros e artigos sobre nossa língua. A correspondência, hábito quase esquecido que o correio eletrônico veio reavivar de forma espetacular, aumentou muito a consciência da importância de escrever bem. São especialmente solenes aqueles últimos segundos que antecedem o clique final que vai enviar a mensagem. Qualquer um, a não ser que seja um alegre cretino, fará uma pequena pausa naquele instante decisivo, hesitando em liberar definitivamente um texto que ele assinou e que vai servir para que julguem sua educação e sua competência. Imagino quantos decidam, nesse exato momento, que está na hora de comprar uma boa gramática, de trocar o dicionário herdado do avô por uma edição mais completa ou de se matricular num curso de revisão de Português!

Além disso, vivemos nos últimos anos uma inusitada agitação no cenário político nacional, que teve, pela primeira vez, uma excepcional cobertura das mídias ditas populares, como o rádio e a TV. Os interrogatórios de Marcos Valério e os discursos acusatórios de Roberto Jefferson eram acompanhados como emocionantes lances esportivos; quem parou, como eu, diante de uma vitrine em que as TVs transmitiam os trabalhos da CPI do Mensalão, pôde colher a admiração que despertavam os parlamentares bem articulados, independentemente de seu partido ou de sua ideologia. Mesmo o homem mais simples pôde perceber a vantagem que traz o maior domínio do idioma. Foi uma verdadeira aula de política; em poucos meses – e de forma concreta, sem abstrações –, o Brasil inteiro tinha se dado conta do quanto a linguagem representa poder.

Quando a mídia não tinha o alcance que tem hoje e passava ao largo da universidade, sabia-se de grandes professores de Português, como Celso Pedro Luft, no Brasil meridional; Evanildo Bechara, no Rio. E ainda havia referências, não especificamente em Português, mas em suas literaturas, como Guilhermino César, na UFRGS; Antonio Cândido, na USP; Affonso Romano de Sant´Anna, na PUC/RJ, para citar alguns quadros. Os grandes professores de Língua Portuguesa em nossas universidades desapareceram? Ou existem outros que não conhecemos?

C.M. – Os especialistas em Língua Portuguesa são contados nos dedos, no Brasil de hoje. Alguém que domine a gramática tradicional, freqüente os dicionários, tenha familiaridade com os grandes textos da Lingüística moderna, mas, acima de tudo, seja leitor de Machado, de Vieira, de Eça, de Camões, de Manuel Bandeira, de Nelson Rodrigues – isso é bicho cada vez mais raro, em nossa Pindorama. Não vou tão longe a ponto de dizer que a espécie esteja em extinção, porque acredito que os professores mais jovens, da safra mais recente, começam a buscar esse equilíbrio verdadeiramente humanista. Sem medo de errar, posso afirmar que estão com os dias contados, esses sim, os que têm uma formação unilateral. Isso vale tanto para aqueles que dominam o emaranhado de teorias lingüísticas, mas lêem mal e escrevem pior ainda, como para aqueles que escrevem muito e lêem muito, mas não conhecem a teoria necessária para organizar os dados que essa experiência lhes traz.

Nas duas teses que você defendeu – a de mestrado, na UFRGS e a de doutoramento, na PUC – as salas estavam lotadas. Alunos interessadíssimos, semelhantes a micos-leões dourados, pois estavam em extinção, embora então não soubéssemos; dependuravam-se nos lustres para assistir ao grande concerto intelectual entre banca e candidato. Na platéia, nomes ilustres, como Sergius Gonzaga, Lya Luft, Voltaire Schilling, Donaldo Schüller, Guilhermino César etc. E bancas preparadíssimas. Os pobres candidatos hoje têm que recorrer a amigos e parentes, se quiserem público. Sabe-se que os ritos da defesa pública das teses surgiram na Idade Média e, então, parece que neste ponto regredimos. O que indica a nova situação: falta interesse da comunidade universitária ou falta interesse nos temas das teses? Ou é outra a falta?

C.M. – Nos últimos vinte anos houve um grande progresso no mundo acadêmico brasileiro, o que tirou muito do mistério inicial que envolvia a pós-graduação; os mestrados e doutorados, privilégio de alguns malucos obstinados, logo passaram a ser o destino natural de qualquer aluno da graduação. Eu fui o primeiro aluno a concluir a dissertação de mestrado, em 1977, num curso que já funcionava há três anos; era natural que minha defesa fosse concorridíssima, já que era grande a curiosidade. Vieram todos os outros mestrandos, mais de trinta, que queriam ver como é que acontecia na hora H; vieram os meus alunos da faculdade, os meus amigos e os meus inimigos, que não eram poucos; todo o corpo docente de Letras estava presente, além do pessoal administrativo e da secretaria. Os gestos, as palavras da banca, o ritual – tudo era soleníssimo; só faltava a toga e o barrete para igualar uma cerimônia de honoris causa. Depois disso, as defesas foram se amiudando e acabaram se tornando quase tão corriqueiras e desinteressantes quanto um trabalho de conclusão de curso. Há outro fator que também contribuiu para nossa atual indiferença por trabalhos desse tipo: as primeiras teses e dissertações eram sempre de cunho mais genérico, abrangente, que podiam interessar um número maior de ouvintes. Hoje eles ficaram especializados demais, e só uma grande amizade (ou um grau de parentesco muito próximo) vai me fazer sair de casa para assistir a uma discussão sobre ‘a omissão do S do plural por parte das crianças de 12 anos incompletos na encosta sul do Morro do Osso’. Como na literatura ou no cinema, trabalhos desinteressantes acabam conquistando o esquecimento que merecem.

Quem pode confiar em advogados e médicos que não sabem português? A diferença entre o veneno assassino e o remédio salvador pode ser apenas uma letrinha, concorda? E as próprias instâncias jurídicas, preocupadas com o português de advogados, já espalham na internet casos em que o defensor, por desconhecer estratégias de argumentação e equivocar-se na redação, inclusive no léxico, prejudicou o cliente que pagava por seus serviços. A universidade brasileira deixou de cuidar do ensino da língua portuguesa?

C.M. – Infelizmente, a educação em nosso país fica muito aquém de um mínimo satisfatório, por tristes razões que não cabe aqui discutir. Como as cidades falsas que o general Potemkin mostrou à imperatriz da Rússia, aqui quase tudo é cenário de isopor e papelão pintado. Há uma exigência de incluir a redação no vestibular – o que é bom –, mas nada se fala sobre o ensino do idioma durante o curso universitário – o que, como diz minha comadre, é o fim do resto. A universidade finge que não é problema seu: há faculdades de Direito que oferecem a seus alunos a ninharia de um semestre de Língua Portuguesa, e que lambam a unha! Talvez por isso mesmo o profissional recém-formado tenha essa avidez cada vez maior em ler sobre nosso idioma, em estudá-lo por conta própria.

Está escrito na apresentação de seu novo livro: ‘Além de conhecer e dominar os fundamentos do português, o advogado precisa também escrever de maneira clara, objetiva e precisa, expondo os fatos de forma organizada e, principalmente, com argumentos persuasivos, adequados a cada elemento da sua audiência – o juiz, o adversário, o cliente.’ Cláudio Moreno e Túlio Martins estão complementando um saber que a universidade não dá mais nessa área?

C.M. – A base do currículo das universidades do mundo antigo era a Retórica, encarada como a arte de persuadir e convencer pela linguagem. No Brasil, por uma série de equívocos, essa preocupação ficou completamente esquecida nos últimos cem anos. Aqui, uma universidade que tenha um bom ensino de Português dará a seu aluno, no máximo, o saber necessário para produzir textos corretos, claros e objetivos – o que, vamos convir, não é pouco; as faculdades brasileiras que conseguem fazer isso são muito poucas e deveriam ganhar um prêmio por sua contribuição à cidadania. Do ponto de vista de nosso livro, no entanto, isso não é o suficiente, pois é necessário, em muitas situações, que o texto, além disso, consiga persuadir nosso leitor a fazer o que queremos que ele faça ou a aderir às idéias que defendemos. É essa preocupação retórica, ausente de nossos programas de língua portuguesa, que está por trás de todas as páginas de nosso Português para Convencer.

Como você avalia a repercussão do que você escreve na internet? Já é possível avaliar a eficácia de caminho tão novo para autores e leitores na Galáxia Gutenberg?

C.M. – Não é fácil avaliar a repercussão de um trabalho na internet; são muitos os caminhos, são inúmeros os desvios e nunca sabemos ao certo até onde estamos chegando. Há, contudo, os contadores de acesso, que registram o número de leitores que vieram bicar o milho que espalhamos a esmo por este ciberespaço; é um parâmetro limitado, é verdade, mas ao menos é concreto e nos ajuda a ter uma idéia dos números quase inimagináveis desse novo universo. No caso do Sua Língua, site que mantenho – sozinho – há mais de seis anos, venho registrando uma média de 2.000 leitores diferentes por dia, o que vai resultar na cifra escandalosa de mais de 700.000 leitores diferentes por ano! Quando, no mais louco devaneio, eu imaginaria que um artigo sobre a língua portuguesa poderia atingir tamanha multidão? Nem quero pensar nas cifras futuras, pois, ao contrário do jornal, o texto continuará lá por quanto tempo eu quiser, disponível para a multidão de leitores do ano que vem, e do outro e assim por diante. Para os que estão acostumados com o riacho da distribuição em papel – livros, revistas e jornais –, a internet aparece com a dimensão de um Amazonas. Além disso, o mundo todo comparece na minha página, para ver o que ando publicando. Quando McLuhan falou da ‘aldeia global’, não imaginava que em breve seria criada a internet para comprovar sua profecia. Tenho leitores de todos os cantos do planeta – inclusive de lugares que jamais visitarei, como a Estônia, a Sérvia, a Eslovênia, a Namíbia ou o Qatar.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br