Sem Orçamento aprovado, a presidente Dilma Rousseff decidiu liberar por Medida Provisória (MP) R$ 42,5 bilhões para investimentos a partir do começo do ano. Deputados e senadores haviam combinado votar só no início de fevereiro o projeto da lei orçamentária. O governo concordou com esse adiamento, disse a presidente a jornalistas num encontro na quinta-feira (27/12), horas antes de serem divulgados os detalhes da MP. No dia seguinte, o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo chamaram a atenção, em retrancas especiais, para um problema geralmente levado a sério quando se vive no chamado Estado de Direito: a presidente poderia tomar aquela iniciativa sem violar normas constitucionais?
O artigo 62 da Constituição proíbe a edição de MPs sobre matérias relativas a planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamentos e verbas suplementares ou complementares. O artigo 167 abre uma brecha para os créditos extraordinários para “atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”.
Qual a imprevisibilidade, se a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) já fixa regras para a eventualidade de atraso na votação do Orçamento? E como falar de imprevisto, se o Executivo, como afirmou a presidente aos jornalistas, concordou com a votação em fevereiro? Em 2008, segundo artigo do professor Roberto Dias, da PUC-SP, publicado no Estadão, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por maioria contra uma iniciativa semelhante do governo.
Um precedente
Os dois jornais citaram a Constituição e o texto da Folha, assinado por Gustavo Patu, acrescentou: “Na prática, o Planalto está testando os limites políticos e jurídicos de seu poder de formular, alterar e executar o Orçamento sem interferência real do Congresso”. Outros grandes jornais mencionaram a hipótese de contestação, citando fonte parlamentar, mas ficaram nisso, sem apresentar diretamente os dispositivos constitucionais.
Todos, de fato, demoraram a enfrentar o problema da legalidade. A solução escolhida pela presidente já havia sido antecipada por outras fontes, recomendada pelo relator da proposta de Orçamento, senador Romero Jucá, e noticiada em jornais e TVs. Até a edição de sexta-feira (28), no entanto, em nenhuma reportagem havia aparecido a pergunta simples e fundamental: o governo pode, nesse caso, recorrer legalmente a uma MP?
Só o Estado de S.Paulo havia citado, na quinta-feira, a “ameaça” do líder do PSDB na Câmara, deputado Bruno Araújo (PE), de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) se o Executivo tentasse aquela solução. Mas o assunto foi apenas mencionado numa pequena retranca, sem referência a qualquer texto legal. Nenhum repórter, pauteiro ou editor parecia haver-se preocupado, pelo menos até a quarta-feira (26), com esse detalhe. Se já se previa o recurso do governo a uma MP, por que ninguém procurou saber como seriam contornadas as limitações constitucionais?
No Executivo, no entanto, talvez nem ocorresse uma preocupação desse tipo, já que os congressistas costumam aceitar MPs mesmo quando as normas constitucionais foram evidentemente violadas. Na presidência do Congresso, há alguns anos, o senador Garibaldi Alves devolveu uma MP, mas esse foi um gesto absolutamente excepcional.
No contexto
Jornalistas raramente demonstram interesse pelas questões legais. Só um jornal, o Valor, mantém uma cobertura ampla e regular dessa área, noticiando a edição de normas economicamente importantes, acompanhando a tramitação de processos e publicando opiniões de especialistas.
Na maior parte dos meios de comunicação, notícias sobre decisões judiciais são raramente acompanhadas de explicações. A Justiça manda a empresa X readmitir os funcionários recém-dispensados, informam os jornais e outros meios, mas qual foi a base da ordem judicial? O juiz resolveu agir como justiceiro por sua conta ou tomou como referência uma promessa da empresa, um contrato ou um dispositivo da Consolidação das Leis do Trabalho?
Às vezes alguma explicação aparece, mas quase sempre incompleta. A ação de empresa Y feriu a dignidade humana e desrespeitou, segundo o juiz, um dos direitos básicos incluídos na Constituição. E aí? Não dá para citar o texto? Só o artigo 5º tem 78 incisos e alguns destes são subdivididos. Não se trata de fazer trabalho de jurista, mas de fornecer ao leitor a informação necessária para entender e avaliar o fato relatado.
Se o assunto for polêmico, ou tecnicamente complicado, por que não consultar um especialista? Não se faz isso, afinal, quando se trata de explicar ou de enriquecer uma notícia financeira? Juristas e profissionais de escritórios de advocacia são procurados de vez em quando até para assinar pequenos textos técnicos. Mas os jornalistas poderiam fornecer muitas informações básicas por sua conta, sem depender de ajuda especializada, se dessem mais atenção, normalmente, aos aspectos legais dos assuntos cobertos no dia a dia. A guerra fiscal entre os estados, o papel do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e as MPs de conteúdo financeiro são bons exemplos.
Afinal, se a informação é um componente importante da vida democrática, um pouco mais de preocupação com os aspectos legais dos fatos noticiados combina muito bem com a atividade jornalística.
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[Rolf Kuntz é jornalista]