Há diversas maneiras de falar (ou escrever) qualquer língua. Normalmente (até popularmente, porque os ‘saberes’ se disseminam), línguas são avaliadas segundo os critérios de certo e errado. Mas especialistas não se aferram a tal tratamento. As análises exigem novas categorias. Por exemplo, as de língua e dialeto (ou variedade).
Usualmente, faz-se equivaler língua a ‘língua certa’ (ou padrão ou norma culta) e considera-se que as variedades seriam ‘derivadas’ dessa língua. Assim, haveria uma língua e suas variedades, decorrentes dos erros, simplificações, corrupções.
Mas de onde essa língua viria? Dos clássicos, acredita-se. Supõe-se, mais ou menos miticamente, que teria havido uma língua perfeita em algum momento do passado. A prova seriam certas construções gramaticais tidas por exemplares. No entanto, mesmo os clássicos escreveram variavelmente, empregaram formas que não servem como exemplos de norma culta (Camões escreveu “frecha” e “alevanta”; Machado, que a velha estava “meia cansada” etc.).
É mais adequado, por isso, em termos históricos, empíricos, considerar que uma língua é o conjunto das variedades, e não apenas uma delas (a considerada certa). Segundo esse ponto de vista, a norma culta (ou padrão etc.) passa a ser vista como uma das variedades, com espaços mais ou menos definidos de emprego. Assim, todos falamos português (em nosso caso) em todas as circunstâncias, seja dizendo “nós fomos”, “a gente foi”, “a gente fomos” ou “nós foi”.
A diferença entre essas construções não se estabelece em termos de ‘certo/errado’ ou ‘é português/não é português’ ou mesmo ‘isto se diz/isto não se diz’, mas em termos de ‘escreve-se em editoriais/textos acadêmicos’ (ou não), ‘diz-se em situações informais/formais’, ‘esta construção é arcaica e comum em regiões rurais do Brasil’ etc. Analisam-se fatos linguísticos em correlação com contextos de uso.
Ou seja, uma língua é um conjunto de variedades (eventualmente chamadas de dialetos) e não uma variedade correta, acompanhada de desvios ou corruptelas.
Estudar assim uma língua é aceder a um estágio pelo menos baconiano. Os fatos linguísticos seriam considerados sem preconceito. A primeira decorrência dessa atitude é uma distinção crucial: uma coisa é uma construção agramatical, isto é, que não ocorre em nenhum dialeto da língua (como ‘eu vamos’, ‘o pedra é grossamente’), e outra é uma construção avaliada como imprópria por razões de ordem social (sejam de etiqueta, sejam de moralidade, sejam políticas), como palavrões, estrangeirismos ou construções como “cê vai/ocê fica”.
Sugerir que uma língua seja estudada tal como é não tem nada a ver com propor que não haja ensino da norma culta na escola. Isso equivale a imaginar que estudar o Egito antigo implica propor a volta dos faraós…
Para que seja conhecida, uma língua deve ser estudada não só em todas as suas variedades, regionais ou sociais e nas diversas épocas (como era o português no século 15?), mas também nos diversos estágios da vida dos falantes (de que tipo são as primeiras manifestações linguísticas das crianças? Por que elas regularizam formas irregulares?) e em contextos que provocam questões sobre quais são as interferências de uma língua em outra em sociedades bilíngues.
As funções da norma culta e de outras normas em uma sociedade são definidas pelas forças que nela atuam. Como se vai escrever em um jornal é definido pelo jornal. Como se escrevem anúncios é da alçada dos publicitários e dos órgãos em que serão publicados. Como se escreve teatro e literatura é definido no interior desses campos (a crítica receberá bem ou mal determinadas opções).
Regras variáveis
Estudar línguas como conjuntos de variedades significa aceitar que as regras são variáveis (e não categóricas). Os fatos mostram que há diversas pronúncias dos mesmos fonemas, diversas formas de flexionar palavras (como os verbos), diversas formas de construir determinadas estruturas sintáticas.
Trata-se de regras, porque tais variações não ocorrem livremente. Por exemplo, certas vogais têm pronúncias alternativas, mas só em determinadas posições – ‘e’ e ‘o’ nunca variam em posição tônica (você, boba), mas variam em posição átona (mininu/meninu/menino) –, ‘l’ nunca varia no início de sílabas, mas varia em outras posições (dentau/framengo), terceiras pessoas do plural têm pronúncias variáveis (vierãw/viero), e ora há concordância com o sujeito (eles vieram/viero), ora não (eles veio).
As regras variáveis são formuladas explicitando-se o contexto. Por exemplo: ‘vieram’ ocorre mais frequentemente na escrita e na fala de pessoas escolarizadas; ‘viero’ é rara na escrita e mais comum na fala de pessoas pouco escolarizadas (ou da zona rural); ‘menino’ é mais comum em regiões do sul do país do que em outras, onde ocorre mais ‘mininu’ etc.
As regras aplicam-se ou não segundo contextos estruturais (posição na sílaba, por exemplo) ou contextos sociais (região, escolaridade, ruralidade, idade dos falantes etc.).
Mapas linguísticos tentam registrar tais fatos nas diferentes regiões. Registram pronúncias, formas verbais, construções sintáticas e também léxico típico (como os clássicos ‘mandioca/aipim/macaxeira’, ‘abóbora/jerimum’ e ‘bergamota/mexerica’).
O que se descobre é uma enorme gama de variedades da língua, embora em cada região ou grupo ela possa ser quase uniforme. A utilidade de tais estudos é múltipla. Servem, por exemplo, para confirmar ou infirmar hipóteses sobre a universalidade de certas características das línguas humanas, e também para compreender mais adequadamente determinados fenômenos históricos. Por exemplo, é um fato comum que formas populares (inovadoras), eventualmente condenadas em determinada época, venham a ser consideradas cultas no futuro (ou são cultas atualmente, embora tenham sido estigmatizadas no passado).
É possível fazer até mesmo previsões. Por exemplo, é cada vez mais rara a construção representada por “vendem-se flores”, o que permite prever que um dia desaparecerá, ou que seu eventual emprego pareça antigo. A não ser que as forças que a mantêm conscientemente hoje sejam mais fortes do que as que promovem inconscientemente a mudança.
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[Sírio Possenti é professor no Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]