Na sala de espera de um consultório dentário me caiu nas mãos uma edição velhíssima de uma revista semanal. Recuso-me a citá-la. Como leio tudo que me cai nas mãos, acabei lendo uma resenha de um suposto crítico de cinema. Estava ele expondo a sua inconformidade com o que ele considerava excessos da mídia ao descrever a importância da obra cinematográfica de Antonioni e Bergman, recém-falecidos. Para ele, os filmes de ambos eram chatíssimos e incompreensíveis. Bom mesmo, no seu entendimento, era um filme de Jim Carrey cujo nome me escapa, que ele já tinha assistido quase 20 vezes.
Confesso que, também, hoje tenho certa dificuldade em assistir a filmes desses dois diretores. Independente disso, tenho o maior respeito por eles. Muito assisti filmes deles quando jovem. Imperativo para minha geração era curtir o chamado cinema-cabeça. Cinema era mais do que entretenimento, era um canal de cultura. Hoje estou, em termos de cinema, mais infantilizado, por força da convivência com meus filhos. Menos culto, mais humano. Prefiro ver filmes que todos curtam. Ao mesmo tempo em que vejo alguns blockbuster com prazer, sem problema, eles veem comigo clássicos e bons filmes com igual interesse. Partilhar o gosto com a família pode tanto ser encarado como um aviltamento cultural como um ganho civilizatório resultado da abdicação do egoísmo em beneficio da interação, do diálogo familiar. Prefiro isto a cada um no seu quarto, ligado com a sua tribo, com dificuldade para estabelecer relação com pai, mãe, filho ou irmão. Não me sinto mais burro por isto, ao contrário. Concorreu, também, e bastante, para o abandono deste tipo de estética cinematográfica a fuga de obras com abordagem antivitalista, depressiva, niilista, típica de europeus entediados que mais parecem aquelas civilizações cansadas de viver, termos usado por Nietzsche para denominar os ensinamentos budistas que influenciaram o ceticismo e niilismo filosófico de Schopenhauer.
Limites da ética e da decência
Não creio que as minhas razões para deixar de assistir sejam as mesmas deste “crítico de cinema” que me motivou a escrever estas impressões. Mais parece que as razões que o movem são de outra ordem. Estão elas assentadas na pura ignorância. No entendimento de que o cinema nada mais é do que entretenimento barato. Nada que exija codificação, exercício intelectual. Não é pelo lado tedioso, depressivo, niilista que as obras destes dois diretores não são apreciadas. É porque elas exigem reflexão, termo abominável e banido do dicionário do referido sujeito. Pior é que ele não está só neste quase analfabetismo funcional. Pior ainda que ele não só tem a audácia de expor a sua ignorância como parece ter orgulho dela.
Sou de uma época que a ignorância tinha medo de se expor. Hoje, quem está acossado e sem espaço na grande mídia são os que, realmente, têm algo a dizer, seja na área do cinema, da literatura ou da música. Estamos no limiar de uma nova época. A era da hegemonia da idiotia. Alguns diriam que estamos no auge dela. Quando é que se acreditaria ser possível ler uma resenha, sobre qualquer linguagem culta, escrita por um idiota em uma revista de tiragem semanal com certa ambição de seriedade e circunspeção?
É bem verdade que a referida revista tem como foco mais o lucro do que outra coisa, mas até então havia uma fronteira tácita estabelecendo que mesmo os parcos e pobres espaços para a crítica cultural deveriam ser reservados àqueles com um mínimo de formação. Nada capaz de assustar a massa. O que se requer de um crítico é, pelo menos, um conhecimento e um domínio capaz de acusar familiaridade com a tradição cultural do material com o qual irá, como resenhista, orientar os leitores. Colocar um ignorante, orgulhoso de desfilar sua ignorância, como condutor cultural cinematográfico (a voz da revista na área cinematográfica) ultrapassa os limites mínimos da ética e decência jornalística. E do suportável.
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[Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS]