Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Guerra e guerrilhas do Araguaia

Não havia, até meados de 2012 – quando foi lançado Mata!: o Major Curió e as guerrilhas no Araguaia, de Leonencio Nossa –, nenhum livro que desse à região, ao episódio político e ao agente da repressão Major Curió a importância que tiveram e têm na história do Brasil. Isso não obstante, o autor, sem subestimar sua própria obra, acredita que serão necessários pelo menos mais quinze anos até que essa história seja bem contada (ver entrevista em “História do Brasil no Araguaia“).

O trabalho de Nossa, parcialmente antecipado por reportagens que ele publicou no Estado de S.Paulo, é um exemplo para centenas, talvez milhares de jovens talentosos, bem preparados e empenhados em fazer jornalismo de primeira linha espalhados por redações de todo o país, ou fora delas.

Mas, atenção: terrenos como os de guerrilha e contraguerrilha são pantanosos. “Em tempo de guerra tem mentira como terra.” O jornalista precisa ter discernimento, ter medo de errar, de ser injusto, de comprar peixe podre. O repórter Leonencio Nossa atravessa incólume o terreno minado por meias verdades, versões e acusações falsas. Não confia cegamente em nenhum depoimento, de quem quer que seja. Checa e recheca. E não tem pressa.

É preciso ler os próprios colegas jornalistas com o filtro da desconfiança. Em Mata!, Nossa mostra como essa ferramenta é indispensável:

“O marketing de Curió convenceu repórteres de grandes jornais. O algoz da guerrilha foi descrito como ‘socialista’, por retirar do garimpo [de Serra Pelada] alguns donos de barrancos, ‘capitalistas’, que bamburravam a área, e entregar a blefados [fracassados no garimpo]. (…)

“Curió se animou com os resultados do marketing e disse a repórteres que faria a revolução popular na Amazônia que os comunistas não tinham conseguido” (pág. 280).

Dos relatos de participantes militares do conflito, por mais verossimilhantes que pareçam – a vida não tem nenhum compromisso com a verossimilhança –, é necessário manter distância, porque na maior parte do tempo mentem. Mentem para encobrir a participação de cada um. Escondem informações. Não se trata de jogar fora esses relatos, mas de destorcê-los.

Narrativas recônditas

Ou de esperar que uma parte substancial da narrativa recôndita emerja, como fez Nossa com Curió. Após sofrer derrotas políticas e uma embolia pulmonar, internado no Instituto do Coração de Brasília, o agente, ex-deputado e ex-prefeito fala ao repórter.

“Curió demonstra preocupação em ser visto como traidor pelos colegas da reserva – homens que após silêncio de três décadas surgiram em blogs e correntes de e-mails para combater o movimento comunista, numa estranha e tardia ofensiva. Os adversários deles, os comunistas, se descolaram da bandeira de defesa do oprimido desde o dia em que apoiaram o Exército e os grileiros na luta contra ingaricós e macuxis na Amazônia, quando se revelou o velho ranço desenvolvimentista. O PC do B tinha a face do caricato deputado Aldo Rebelo, que adotou um discurso em defesa da destruição da floresta.

“–Você pode escrever uma coisa na sua caderneta? A ordem dos escalões superiores era exterminar a guerrilha. Muita gente aguarda a minha versão. Não tenho o direito de mostrar uma visão mentirosa. Não sou traidor. (…) Por favor, escreva: ‘Eu participei. Participei e conto o que vivi. Eu estou dizendo que participei’” (págs. 384-5).

Há uma informação de Curió que pode ajudar a esclarecer o que ocorreu em 1º de novembro de 2012 com o coronel reformado do Exército Júlio Miguel Molinas Dias. Ele foi morto a tiros por desconhecidos em Porto Alegre, onde morava. Comandava o DOI-Codi do Rio de Janeiro na época do atentado do Riocentro, em 1981. Guardava papéis que sua família decidiu entregar à Comissão da Verdade do governo federal.

Curió disse a Nossa:

“– Uma parte das Forças Armadas está comigo, outra não aceita falar. É muito complicado. Tenho pacto com algumas pessoas. Depois que acabou tudo, eu disse: ‘Vamos fazer um pacto. Quem contar o que ocorreu morre. Se eu contar, vocês me dão um tiro’” (pág. 19).

Ninguém comenta

Em nova entrevista ao Observatório da Imprensa, Leonencio Nossa aponta a razão do silêncio de pessoas e instituições que, em seu texto – que se lê muito agradavelmente, mas condensa tanta informação que merece ser estudado –, aparecem com má imagem, como o PC do B, as forças armadas e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

– É um relato forte. Desde que publiquei o trabalho há seis meses, os grupos políticos citados na história não conseguiram rebater. Procurei contar a história a partir de uma visão humanista, levando em conta a análise de documentos e os relatos dos ribeirinhos. Uma pesquisa bem fundamentada é o que se espera do jornalismo, especialmente num momento em que a visão reacionária parece predominar não apenas nas correntes políticas conservadoras como naquelas que se dizem progressistas. [Os militares] sabem que fiz um relato baseado em documentos. Agora, é um processo histórico. A decisão das Forças Armadas e de agentes da reserva de não reagirem à denúncia de que a tropa cometeu crimes de guerra é um avanço significativo. Antes, os militares negavam inclusive os combates. Minha pesquisa mostra a fragilidade da versão – que começou a ser montada – de que o tempo da ditadura poderia ser entendido como a história de uma disputa entre o Exército e a esquerda armada. É uma leitura simplista, quase uma fraude. O que existiu foi um Estado que eliminava adversários armados ou moderados.

Informação falsa do PC do B

Curió, diz Nossa, não recebeu o livro com surpresa, preparado pelos questionamentos do autor durante as entrevistas: “Foi uma relação transparente”.

O PC do B, dissidência do velho PCB criada em 1962 por dirigentes comunistas que não aceitaram as críticas ao stalinismo, mostra uma face sombria no relato de Nossa:

“A guerrilha tinha o apoio de 194 moradores – 26 pegaram em armas ou tinham funções estratégicas. O PC do B, no entanto, apresentou um número menor de apoios. João Amazonas disse que foram quarenta e [Ângelo] Arroyo, seis. A conta para baixo, manipulada ou fruto da falta de informação, serviu para reforçar o heroísmo dos quadros do partido que foram para a mata, e para ocultar outra guerra, a de posseiros contra grileiros e militares pela posse da terra” (pág. 132).

“Não existiam mais guerrilheiros vivos quando o jornal Araguaia, do PC do B, divulgou informativo para sustentar a versão de que a guerrilha estava consolidada. A notícia falsa foi enviada por João Amazonas, que vivia exilado na Europa” (pág. 216).

“A mineira Walquíria era uma das poucas sobreviventes da guerrilha no Araguaia. Enquanto ela cambaleava na mata, os dirigentes que restaram do PC do B nas cidades propagavam a vitória” (pág. 215).

“Sob tortura, ele [Pedro Albuquerque, preso em Fortaleza com sua mulher, Tereza] contou que Tereza tinha engravidado e o casal resolvera sair da guerrilha. Ele estava de volta ao Araguaia para identificar pontos do grupo armado. Os militares usaram a prisão deles como referência para a descoberta do foco. A cúpula do PC do B sentenciou que Pedro e Tereza eram traidores. Os militares estavam à caça da guerrilha havia três anos, chegariam aos integrantes do movimento com ou sem o depoimento deles” (pág. 108).

O partido também permaneceu em silêncio após a publicação de Mata!. Diz o autor:

– No livro, questiono uma versão sempre divulgada que aponta o Pedro e a Tereza como traidores. O Exército estava no Araguaia desde o final da Guerra do Paraguai. Semanas antes da prisão dos dois guerrilheiros, a rede de informantes do regime já tinha repassado dados sobre o Osvaldão [Osvaldo Orlando da Costa], um nome importante da guerrilha. É lamentável que ex-guerrilheiros pagaram e pagam até hoje um preço por terem saído com vida da selva. À exceção do [José] Genoíno, os sobreviventes da guerrilha não foram aceitos mais tarde pela política, alvos de fogo-amigo. Quanto aos camponeses que atuaram na guerrilha, foi fácil perceber que eles não tiveram espaço na história construída pelos líderes comunistas e pelos militares. O resgate da memória dos brasileiros simples é mais uma bandeira do jornalismo que uma preocupação de grupos políticos. Esses grupos têm consciência de que, em algum momento, terão de discutir, de forma honesta, com as famílias de guerrilheiros e camponeses as decisões tomadas no passado por suas lideranças. É preciso, no entanto, ponderar que os formatos das legendas mudaram muito, em alguns casos apenas os nomes dos partidos permaneceram.

A Igreja omissa

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que teve importante papel na resistência ao regime militar, não reagiu ao relato de Mata!:

“O bispo de Marabá, d. Estevão Cardoso de Avelar, pediu aos militares que soltassem os presos. Ele não teve permissão de entrar nas bases. Avelar foi a São Paulo informar e denunciar à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil a prisão dos agricultores. Os agentes [da repressão] avaliaram que o bispo fazia propaganda a favor dos ‘terroristas’. Dividida, a CNBB silenciou no momento mais trágico do conflito. A entidade era considerada ‘progressista’, mas valia a força do cardeal d. Agnello Rossi, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, no Vaticano. Nenhuma ação foi tomada pela CNBB” (pág. 166).

Comenta Nossa:

– A CNBB silenciou. No tempo dos militares, os líderes religiosos de expressão nacional limitaram sua atuação em defesa dos direitos humanos às cidades, em causas envolvendo perseguidos da classe média e da intelectualidade. É fato que os líderes católicos fecharam os olhos para as vítimas pobres da ditadura e para representantes da própria igreja que atuavam nos rincões do país. Essa omissão continuou na democracia. Quando foi informado da morte da irmã Adelaide Molinari, em Eldorado do Carajás, nos anos 1980, o Vaticano apenas lamentou a morte da religiosa.

Na prisão de Genoíno estão presentes várias das instituições e grupos que atuaram em conjunto durante a ditadura: a polícia civil, na pessoa do delegado de Xambioá Carlos Teixeira Marra, soldados, pistoleiros, a empresa americana United States Steel (que forneceu um helicóptero para a operação) e um agente dos órgãos de repressão, Lício Augusto Maciel (págs. 112-3).

– Em certo momento da repressão no Araguaia, a Steel tinha mais importância logística que a Força Aérea Brasileira – enfatiza Nossa.

Voz no deserto

A história de Genoíno é dolorosamente cruel. Foi levado da região conflagrada para Brasília.

“Na capital, a tortura deixava de ser ‘selvagem’, como ele mesmo costuma dizer, para se tornar ‘científica’. Foi aí que os militares descobriram que Geraldo era José Genoíno Neto, um líder do movimento estudantil.

“Danilo [Carneiro, guerrilheiro que desertara e fora preso na Transamazônica] e Genoíno conheceram o inferno da tortura. Brasília ainda mantinha os presos vivos. Genoíno evitaria entrar sozinho em elevador. Danilo passaria por 36 cirurgias de reparação” (pág. 113).

Depois de ser solto, em 1977, “Genoíno procura jornais e revistas de grande circulação para contar a história da guerrilha. Empresários e editores o acusaram de querer atrapalhar a abertura política” (pág. 221). Em 1972, o Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde haviam publicado, solitários, uma série de reportagens sobre a guerrilha ainda em curso. Em 1979, o Jornal da Tarde estampou entrevista de Genoíno ao repórter Fernando Portela, autor de uma série de matérias baseadas também em informações repassadas pelo general Hugo Abreu.

“No governo Lula, a [então] senadora do PT Heloísa Helena, de Alagoas, disse aos gritos, no plenário, que Genoíno havia delatado companheiros. A tortura era banalizada pelo debate político. Heloísa desrespeitava a história. Quando Genoíno depôs, o Exército já tinha álbum de fotos de guerrilheiros” (pág. 298).

Heloísa Helena, posteriormente fundadora do PSOL, foi outra personalidade política que não comentou o livro de Nossa.

Imprensa continua surda

Pergunto se assuntos como a tortura infligida pelos militares a caboclos, sob a alegação de que tinham envolvimento com a guerrilha, receberam da mídia jornalística a cobertura devida, na época em que ocorreram ou após a publicação do livro, que os escancarou publicamente. A resposta é negativa. E não contempla só a imprensa:

– Os livros costumam citar os moradores do Araguaia na condição de testemunhas, nunca como participantes da história. Essa tradição começou nos relatórios dos líderes comunistas e dos comandantes militares. A academia costuma dar atenção ao papel da população pobre nos fatos históricos, mas o leitor não encontra trabalhos universitários que expõem pontos de vistas dessa parte da sociedade. A receita é sempre falar pelo anônimo, carregar na análise e citar frases da “vítima” para respaldar uma posição acadêmica. Mata! é um mosaico de depoimentos longos de protagonistas improváveis. O ideal é que tivéssemos livros escritos integralmente por barqueiros, prostitutas, garimpeiros e quebradeiras de coco. Quanto mais livros forem escritos, melhor será a compreensão da história. É inadmissível que um episódio da dimensão da Guerra de Perdidos, revolta camponesa ocorrida no Araguaia logo após a guerrilha, não tenha sido contado antes em livros. Não havia partido ou entidade nacional por trás dessa revolta genuína da terra. Um autor não pode se limitar à história dos excluídos. É preciso resgatar as memórias dos excluídos dos excluídos, perceber protagonistas em camadas mais profundas de uma realidade trágica. A vida do barqueiro Otacílio Alves de Miranda, o Baiano, e sua mulher, Felicidade [págs. 107-8], por exemplo, é uma história de superação e, também, de um Estado que busca soluções bélicas para resolver conflitos no interior.

Ciclos amazônicos

No título do livro, Nossa usou “guerrilhas”, no plural. A do PC do B foi uma delas. Se, como quer o autor de Mata!, a narrativa mais “definitiva” da Guerrilha do Araguaia ainda levará algum tempo para surgir, o livro de Nossa basta para se ter ideia de como a aventura do PC do B se inscreveu numa sucessão secular de conflitos no Bico do Papagaio, nome dado à região do encontro dos rios Araguaia e Tocantins, que desenha no mapa político a tríplice fronteira de Pará, Tocantins (na época, Goiás) e Maranhão. Num dos textos que compõem o Apêndice do volume, o autor sintetiza os ciclos econômicos que provocaram êxodo de nordestinos – e disputas sangrentas – para a região de Marabá:

1. O da borracha, iniciado em 1890.

2. O da castanha, 1920.

3. O de cristais de quartzo, exportados para a indústria bélica americana, em especial durante a Segunda Guerra Mundial, e o de diamantes, a partir de 1940.

4. O de “grandes obras I”, iniciado em 1960, ao se inaugurar a Belém-Brasília, ciclo que se prolonga no início da construção da Transamazônica (1971) e da hidrelétrica de Tucuruí (1973), e contém o início e o fim da guerrilha do PC do B (1966 e 1974).

5. O da pecuária e madeira, iniciado em 1970, quando “os donos de castanhais perdem influência política e ateiam fogo em suas matas para formar pastos (…). Posseiros vindos do Maranhão são expulsos de sítios abertos em terras devolutas.”

6. O do ouro.

“Em 1976, Curió assenta, na região da estrada OP-3, em Brejo Grande do Araguaia, famílias de mateiros que ajudaram o Exército a combater a guerrilha. Após a enchente que destruiu Marabá em 1980, garimpeiros encontram ouro em Serra Pelada, antiga área do castanhal Macaxeira, na época município de Marabá”.

7. O da mineração industrial, nos anos 1980.

“A companhia estatal Vale do Rio Doce, mais tarde privatizada, torna-se um poder paralelo no Bico do Papagaio. Em 1984, é inaugurada a ferrovia Carajás, ligando Parauapebas ao litoral do Maranhão. (…)

“A irmã americana Dorothy Stang, que organizava uma comunidade de ex-garimpeiros de Serra Pelada em Anapu, região do Rio Xingu, é assassinada, em 2005, a mando de fazendeiros. A Vale abre, nesse período, mina de cobre em Canaã de Carajás.

“Depois de sete anos no cargo de prefeito de Curionópolis, Curió é afastado da função pela Justiça Eleitoral. O grupo do senador Edison Lobão, ministro de Minas e Energia dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, invade a área do garimpo de Serra Pelada. Uma empresa aliada do grupo retoma a exploração da mina, após assassinatos suspeitos de lideranças populares (…).”

8. O de “grandes obras II”, este tendo como palco não especificamente o Bico do Papagaio, mas a Amazônia.

“Os ‘formigas’ [migrantes nordestinos] tentam conseguir trabalho nas obras das usinas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, e nas eclusas de Tucuruí. A vida nos acampamentos das obras da Era Lula-Dilma, no oitavo ciclo econômico da Amazônia, se assemelha à do tempo do ‘Brasil Grande’ do regime militar. Em 2011, os operários de Jirau, muitos remanescentes de Serra Pelada, põem fogo nos alojamentos, num protesto contra maus-tratos (…)” (págs. 406-9).

Sobre o papel da Vale, Nossa diz, nesta segunda entrevista ao Observatório:

Procurei mostrar um Araguaia sem divisões de tempo. A violência que marcou a atuação do Exército nos anos 1970 passou a ser visível na atuação do setor da mineração. O modelo de extração mineral no Pará influencia a representação política e, de certa forma, alimenta uma rede de políticos distantes da realidade dos moradores.

A longa guerra

Na maior parte do tempo, o repórter-historiador é seco: relata fatos que apurou e pesquisou durante dez anos. Estilo ágil e elegante, Nossa trouxe para o público de 2012 episódios de quarenta anos antes, mas não só. Para ele, a Guerrilha do Araguaia foi uma batalha da guerra “pelo controle das armas do país” iniciada com a proclamação da Independência, em 1822. E deixou consequências que marcam a situação da (in)segurança pública nas cidades brasileiras: os métodos levados para as secretarias de Segurança foram os do combate à luta armada (e desarmada) da esquerda.

A periodização, sabemos, é recurso usado para organizar a narrativa de processos e fatos que não se deixam amarrar pelos limites cronológicos. Em Mata!, Nossa constrói um relato nada linear. Compatível com a maneira como recolheu informação, conhecimento e reflexão enquanto esperava, paciente, o dia em que Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, lhe franquearia o essencial de seus arquivos.

Há no livro doses generosas de contextualização, abertura de horizontes e visão em perspectiva. O autor, treinado na escola do jornalismo político cotidiano, passa longe do panfletarismo e não chega a explicitar opiniões, mas elas estão inscritas na rede de lugares, pessoas e acontecimentos escolhidos para compor a narrativa.

“Os dirigentes da guerrilha chamavam os agricultores que pegaram em armas de ‘elementos da massa’, nunca combatentes. (…) Dos vinte camponeses que pegaram em armas, apenas Alfredo e Pedro Carretel mereceram citação nas listas de guerrilheiros feita pelo PC do B – outros 158 deram apoio à guerrilha. Foi o mesmo tratamento dado pelos militares, que os citam apenas como ‘apoios’ ou ‘adeptos’” (pág. 120).

Nossa, ao contrário, traz à cena, com nome, sobrenome e apelido, os derrotados de sempre na história do Brasil: guerrilheiros executados após captura, lavradores recrutados em regime de intimidação pelos dois lados e pelos dois lados desdenhados, garimpeiros, barqueiros, prostitutas, todo um povo miúdo tangido por uma miséria que os governos durante muito tempo não se preocuparam sequer em atenuar.

Mineração, ontem e hoje

Não que o país ostente agora padrões sociais dignos para todos. Melhorou muito, mas principalmente porque o ponto de partida era tão ruim que quase não poderia ficar pior. O escritor avalia:

“Os executivos e funcionários da Vale ocuparam [na região do Pará próxima ao Bico do Papagaio] o espaço de poder e influência dos militares. A pujança proporcionada pelo minério de ferro de Carajás é acompanhada por baixos índices de qualidade de vida. Repetem-se aqui abusos sexuais contra mulheres e crianças ocorridos em Minas Gerais no século 18. Num tempo e no outro, a violência doméstica acontece, entre outras razões, porque as casas são pequenas. A tecnologia da frente de extração dispensa contratações em massa. Não existe o ‘furão’, o sujeito que entra no garimpo de madrugada e pode subir na estrutura de castas. O ‘formiga’, que chega agora pelo trem da Vale, do Mearim e do Pindaré [regiões do Maranhão], não vai bamburrar. Conseguirá, no máximo, emprego nas empresas que prestam serviço para a mineradora. Sem instrução, cai no grupo dos ‘homens de fora’, enfrentando xenofobia no seu próprio país. O ‘estrangeiro’ não pode reclamar das filas do posto de saúde ou da distribuição de vagas na escola” (págs. 357-8).

A sucinta descrição do trabalho em Serra Pelada quando o garimpo estava no apogeu retrata a vocação brasileira para transformar pessoas em coisas:

“Os garimpeiros que tinham o rosto e os braços tomados pela lama vermelha eram chamados de ‘cutias’. Os ‘porcões’ eram os que se impregnavam da lama do fundo, a preta. Havia ainda os ‘requeiros’, o pessoal que fazia reque, gente sem força nos braços, desnutrida, com idade avançada ou problema físico, que se molhava na água das dragas para ficar com o resto da garimpagem.

(…)

“Com sacos de cascalho nas costas, os ‘formigas’ se movimentavam nos precipícios, desciam e subiam pelas cordas e escadas de bambu, que balançavam com o vento. Não usavam documentos nem diziam o nome. Formavam filas indianas. A visão era de um canteiro de obras de uma pirâmide, escreveu o repórter Domingos Meirelles, do Jornal da Tarde.

“Homens de pequena estatura, magros, tímidos num primeiro momento, em passos rápidos ou lentos, sempre caminhando com cargas, na velocidade constante. Eram tantos que as mortes nas avalanchas de terra causavam pouco impacto. A fileira voltava a se formar e a se movimentar. O retrato era semelhante ao das Minas Gerais do século 18. O Brasil assistiu pela TV às cenas de homens que moravam e comiam mal e trabalhavam como escravos. E do tempo da Colônia viria ainda o modelo de controle. Os generais deram aval a Curió para reagrupar os homens numa grande aldeia, onde prevaleceria o sistema de tutela, com o controle de armas e saídas, como na época em que se aprisionavam carajás ao longo do Araguaia.” (págs. 256-7).

Esqueçam ideologias

Máscaras ideológicas são rasgadas por Nossa: “O Planalto não esperou o fim dos combates aos guerrilheiros de inspiração maoísta no Araguaia [outubro de 1974] para reatar relações diplomáticas com os chineses. Estava em jogo o mercado de ferro no país asiático (…)” (pág. 128).

A posição do governo chinês mostra como o nacionalismo esmagou a concepção de um socialismo de caráter internacional. Tanto mais que o PC do B, quando foi criado, em 1962, adotou a “linha chinesa” porque a liderança maoísta pregava a luta armada como único caminho para o socialismo. Os chineses, entretanto, não acreditavam no foco guerrilheiro à la cubana que, na prática, os liderados por João Amazonas praticaram no Araguaia, embora os dirigentes, então maoístas, tenham criticado e vetado essa modalidade de ação.

Outro personagem, distante daqueles tempos e lugares, entra na história de maneira inglória, precursor do conceito de “ditabranda”, que a Folha de S.Paulo em má hora inventaria num editorial:

“No governo Lula, os combatentes da guerrilha rural não tiveram espaço. Três guerrilheiros urbanos viraram ministros – Dilma Rousseff (Polop e Var-Palmares), José Dirceu (Molipo) e Franklin Martins (MR-8). A esquerda que despontou após a ditadura, reagrupada em torno da imagem de Lula, optou por uma relação cordial com as Forças Armadas. O presidente recorreu três vezes da decisão da juíza Solange Salgado de abrir os arquivos militares.

“No dia 15 de dezembro de 2006, Lula disse, numa entrevista no Clube do Exército, que ‘a ditadura no Brasil não foi tão violenta como no Chile’, repetindo uma frase comum de setores conservadores. Ao lado dele estava o general Francisco Albuquerque, comandante do Exército” (pág. 338).

Lula permitiu que Curió, promovido a tenente-coronel quando deixou a ativa, em 1982, recebesse a partir de 2004 soldo de general de brigada, com o argumento de que tinha uma doença grave, doença cujos sintomas ele só passaria a apresentar em meados de 2008. Escreveu Nossa:

“Quando seu pedido [de promoção a general, feito dez anos antes] foi finalmente atendido, vi o então prefeito e candidato à reeleição distribuir santinhos e contar nas bodegas de Curionópolis, sem esconder a ironia, que era ‘um general de Lula’” (pág. 339).

Arquivos fechados

A narrativa dos embates da juíza Solange Salgado com Curió e com o Executivo para abrir arquivos (págs. 389-92) revela o comportamento da força terrestre um quarto de século depois da promulgação da Constituição de 1988:

“O comandante do Exército, general Enzo Peri, mandou dois coronéis prestarem assistência a Curió. Por ordem de Peri, o Exército deu um porte especial de armas ao ex-agente. Era uma resposta imediata do discreto comandante à Justiça [que fez a Polícia do Exército prendê-lo depois que a Polícia Federal encontrou em sua casa uma pistola que não estava autorizado a portar; a prisão durou três horas, mas abalou emocionalmente Curió]. O Exército deu a Curió um relógio com o símbolo da instituição. O Exército estava novamente unido” (pág. 392).

Nesta entrevista, Nossa comenta a subestimação do papel de Lula na contemporização com torturadores e assassinos, isto é, militares e policiais que entenderam como parte de seu dever funcional cometer as piores ilegalidades:

– A frase do ex-presidente está num discurso oficial divulgado pelo Planalto, que não teve destaque na época. Eu soube que o general Francisco Albuquerque era da mesma turma de Curió na Academia de Agulhas Negras ao analisar a lista de formandos. A informação sobre a patente de general concedida a Curió, divulgada no livro, não causou repercussão. É possível que, na questão do Araguaia, a suposta disputa interna no governo Lula entre as áreas militar e de direitos humanos não tenha ocorrido. O conjunto do governo não demonstrou interesse em avançar na busca da memória do período militar. Era uma política que alternava nos discursos: “temos de abrir” e “não vamos abrir”. Foi preciso que a Justiça determinasse que restos mortais retirados do Araguaia nos anos 1990 fossem transferidos do Ministério da Justiça para um espaço mais apropriado num laboratório da Universidade de Brasília.

Armas artesanais

Nossa questiona a própria designação dada aos militantes do PC do B no Araguaia:

– No caso Araguaia, as famílias não têm um tratamento correto por parte do Estado. Numa leitura do presente, os guerrilheiros não poderiam ter sido acusados nem mesmo de formar uma guerrilha, pelo menos no momento da chegada do Exército, em 1972. Uma boa parte dos executados em prisões do Estado no Araguaia ajudava camponeses na roça, distribuía panfletos e portava uma ponto 20, arma de caça comum na zona rural. Muitos não tinham um 38 à disposição. Na fase final, quando homens de elite do Exército apareceram com [fuzis] FAL na mão, os guerrilheiros usavam armas fabricadas por um jovem ferreiro do Espírito Santo. Em outra esfera, na repressão a criminosos comuns, o Estado hoje permite, por exemplo, que a família recolha o corpo, enterre seu parente e saiba, no mínimo, o local e a hora da morte, ainda que a circunstância do falecimento não seja divulgada. As autoridades não demonstram interesse na história da esquerda. O Araguaia, porém, é uma história, antes de tudo, de pessoas, de brasileiros.

Conservadorismo de esquerda

O autor fala da obsessão que o levou a trabalhar dez anos, guardar milhares de documentos e fazer dezenas de viagens:

– Tentei apresentar uma obra aberta, apontar para a importância de personagens e incentivar a produção de novos livros. A pesquisa no Araguaia depende de novos esforços. A minha obsessão foi expandir os limites da reportagem, num questionamento constante do tempo histórico. Ao mesmo tempo, quis produzir um livro interessante para o leitor, permitir uma leitura envolvente. Mata! terá uma terceira tiragem. Os relatos das aventuras de uma geração são as bases do trabalho.

O jornalista lamenta o conservadorismo da antiga esquerda:

– Numa conversa por telefone, uma importante ativista política ensaiou uma crítica. Ela avaliou que eu retratei uma guerrilheira como “ingênua”. Isso porque, no livro, um mateiro relata que a guerrilheira disse que foi para o Araguaia por amar o companheiro. A fraqueza do ser humano está na dificuldade de enfrentar seus sentimentos. Eu vejo assim. No olhar dos nossos dias, a moça seria ingênua se tivesse ido para a mata com a certeza de que mudaria o mundo. Outros ativistas reclamaram, em conversas reservadas, de um relato sobre a doença venérea de um guerrilheiro. Eu respondi para eles que o rapaz era “pegador”. Os comportamentos dos jovens do Rio e de São Paulo que foram fazer a luta armada na Amazônia ou dos ribeirinhos envolvidos no movimento rebelde humanizam quem o Estado tratou como perigoso. As histórias fascinantes da estudante de física Áurea Eliza Pereira, do médico João Carlos Haas, do economista Paulo Roberto Marques e do estudante de farmácia Antônio Teodoro de Castro, por exemplo, rendem filmes. Mas, à exceção das iniciativas de suas famílias em preservar a memória, eles ainda não ganharam biografia. É incrível que a experiência de Maurício Grabois, único político que esteve à frente de uma guerrilha estruturada, ainda não tenha um bom biógrafo. Ex-deputado federal e líder de uma bancada comunista lendária, Grabois morreu em plena selva amazônica, num ataque de paraquedistas.

Tecnologia da brutalidade

No livro do repórter Nossa, muitas informações subsidiárias são costuradas para enriquecer a percepção do assunto dominante. No cotidiano da cobertura jornalística, acontece o contrário: transforma-se um fiapo de informação, não infrequentemente mera insinuação, em matéria.

Mata!traz, entre outras, duas revelações dignas de ser utilizadas como ponto de partida para reportagens ou pesquisas específicas: a participação inócua de Curió na tentativa de extirpar o que seria a raiz do MST, na Encruzilhada Natalino, entre Ronda Alta e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em 1981, e o papel de um oficial do Exército famoso por sua folha corrida de policial, o então major Nilton Cerqueira, no Araguaia.

Cerqueira executou Carlos Lamarca no sertão baiano, em 1971, e foi figura de proa no governo de Marcello Alencar (1995-1999), no Rio de Janeiro, historicamente um advogado que combateu a ditadura. Quando secretário estadual de Segurança, Cerqueira criou no Rio a “gratificação-faroeste”, ou seja, prêmios para policiais que matassem mais bandidos. Esclarece Nossa:

– A presença de Cerqueira no episódio do Lamarca foi divulgada na época, em 1971. O jornalista Luiz Maklouf Carvalho foi o primeiro a escrever, em 2005, que o general esteve no Araguaia. A experiência de Cerqueira na Secretaria de Segurança do Rio e os índices de violência no período foram estudados pela academia. Cerqueira nunca tinha falado sobre o Araguaia. Apontei um elo entre o Araguaia e a política da “gratificação faroeste”, algo que não tinha sido feito. Para mim, as atuais políticas de segurança pública das grandes cidades têm relação com a experiência militar no Araguaia (págs. 108, 181 e 375).

Um dos atributos de Mata! é afirmar e reiterar e insistir que os acontecimentos da década de 1970 no Araguaia tinham antecedentes remotos e tiveram continuidade na história do Brasil. Na página em que descreve a execução de Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, Peri, Leonencio Nossa contrapõe o silêncio do tenente-coronel Léo Frederico Cinelli, que “tudo anotava naqueles dias finais de combate” e “nada publicou sobre a morte do jovem de 27 anos”, ao zelo do visconde do Araguaia, secretário de Luís Alves de Lima e Silva durante a repressão à Balaiada, no Maranhão, no século 19, ao anotar que “o ‘temível’ guerrilheiro balaio Pedro Alexandrino morrera de ‘apoplexia’” (pág. 212).

Desrespeito às famílias

Nossa desmonta a tese de militares segundo a qual durante a terceira campanha do Araguaia (maio de 1973 até fins de 1974) “as regras internacionais da guerra foram trocadas por normas criadas numa atmosfera de desgaste emocional e físico, de ódio e rancor, sentimentos exacerbados pela vegetação luxuriante”.

As execuções sumárias dos guerrilheiros Carlito, Kléber Lemos da Silva, pela Marinha, em julho de 1972, e Helenira [Resende de Souza Nazareth], pela Aeronáutica, em setembro de 1972, ocorreram cinco meses após o início da guerra. O repórter-historiador narra decapitações. Argumenta:

“Foi dentro das bases de Marabá, Xambioá e da Bacaba, sem a lama do igapó e a picada da formiga-de-fogo, que oficiais torturaram e escolheram o dia da execução de prisioneiros. A Lei da Selva não foi posta em prática no Araguaia. A imagem de um sertão que animaliza e força os homens a inventar normas de guerra, onde vale a regra do ‘dente por dente’, foi no caso do Araguaia uma construção posterior, feita por filhos de militares que tentaram seguir carreira na academia recorrendo a arquivos dos pais e amigos da família” (pág. 212).

Neste depoimento ao Observatório, Nossa afina seu ponto de vista:

– Qualquer pessoa tem direito de apresentar seu ponto de vista. Fico apenas incomodado com relatos que desrespeitam as famílias das vítimas da repressão. Não pode haver desrespeito a uma família, seja de guerrilheiro, seja de militar. É bom para o debate a divulgação das versões dos dois lados. O que não vale é a propagação de versões sem bases científica ou histórica. É estranho que instituições como a Universidade de Brasília aprovem monografias acadêmicas que tentam explicar o corte de cabeças no Araguaia pela tradição dos índios suruís e defendem que a barbárie contra a guerrilha foi obra de um grupo restrito de oficiais. O suruí sempre teve pavor do desmembramento de um corpo, seja o corpo de um parente ou de um inimigo. Avalio que a matança no Araguaia foi uma política de Estado.

Grabois: doente e só

A descrição dos últimos dias de Maurício Grabois, que havia liderado a bancada comunista na Constituinte de 1946 e era agora o chefe da Comissão Militar, é um atestado da indigência político-operacional a que havia chegado a aventura.

“O Natal [de 1973] se aproximava. Grabois escreveu que a doença nos olhos tinha piorado. Na manhã do dia 25, ele e outros quinze guerrilheiros se reuniram num morro do Grotão dos Caboclos, nas terras de Almir Moraes, próximo a Palestina. Na ceia da guerrilha havia quatro latas de farinha de mandioca. (…) Na manhã chuvosa de Natal, os militares se aproximaram do acampamento no alto do morro. Um dos soldados se assustou ao deparar, na trilha, com uma cobra surucucu-bico-de-jaca. Raul [Antônio Teodoro de Castro] e os demais guerrilheiros, que estavam na parte baixa, ouviram seu grito e fugiram. A patrulha prosseguiu a marcha atabalhoada e chegou ao acampamento. Não encontrou a Comissão Militar, mas um grupo de homens praticamente inertes. Um chefe sem força e sem visão, combatentes com febre, fome e dificuldade para se locomover. Joca [Líbero Giancarlo Castiglia], Tuca [Luiza Augusta Garlippe] e Dina [Dinalva Oliveira Teixeira], os únicos em condições de andar ligeiro, conseguiram escapar. Grabois levou um tiro no braço, que se deslocou. Paulo [Mendes Rodrigues], Pedro Gil [Gilberto Olímpio Maria] e Luís [Guilherme Gomes Lund] morreram na hora. Nas suas memórias, Jorge Amado observou que Grabois ‘morreu comunista’” (págs. 182-3).

Uma lista dá os nomes de 68 guerrilheiros mortos, dos quais 41 teriam sido executados e 26 mortos em combate (pág. 411).

Retrato sem retoque

Curió sai coberto de ignomínia do perfil implacável traçado por Nossa. Mas um “Organograma dos comandantes do Araguaia” (pág. 410) se encarrega de explicitar toda a cadeia de responsabilidades:

 

      

Agente de informações durante a guerrilha do PC do B, Curió,

“que tinha conquistado a confiança do general Antônio Bandeira, tornou-se a cara do modelo de guerra de guerrilha que o regime se dispôs a fazer na Amazônia. Ele chegou a Araguaína, na época estado de Goiás, usando a identidade de Marco Antônio Luchini, engenheiro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, órgão responsável por resolver conflitos de terra” (pág. 148).

Curió era homem de múltipla serventia.

“Após quase um ano sem função em Brasília, Curió foi designado para trabalhar no Serviço Nacional de Informações, na época comandado por João Baptista Figueiredo. (…) Uma onda de golpes derrubou governos no continente. O órgão brasileiro de inteligência passou a ensinar a los hermanos técnicas de interrogatório, sequestro e espionagem. Depois do Araguaia, Curió adotou o nome de Sérgio Mauro Ladário, que viajava para a Argentina, Uruguai, Paraguai e Peru.

“– O Brasil estava muito mais especializado em conhecimentos e práticas do que os argentinos. O Paraguai nem se diz. O general Stroessner era meu amigo. Eu ajudei muito lá. Ainda trabalhei três meses em Montevidéu como taxista, fazendo levantamentos. Nessa missão, era subordinado ao general Viana Moog. Seria uma ocupação a pedido do governo uruguaio. Recomendamos aos argentinos que não trabalhassem fardados. Perguntaram por que combatíamos à paisana. Eles fizeram questão de dizer que só combatiam de farda. Deu no que deu. O que tem de general preso na Argentina. Eu dizia para eles: ‘Vocês vão dar com os burros n’água’” (págs. 238-9).

O major, narra o livro,

“sempre assumiu em entrevistas o papel de matador de todos os guerrilheiros. Assim a imprensa e a esquerda o trataram. (…) Militares, a princípio, nunca se queixaram do suposto protagonismo de Curió. Era uma época em que estava valendo o acordo de silêncio. Para o Exército era cômodo que o debate sobre crimes de guerra no Araguaia estivesse focado num único agente. Os militares passaram a dizer que Curió era um caso isolado. A corporação e toda uma geração de oficiais estavam livres para seguir seu caminho” (pág. 343).

Falso jornalista

Curió usou o nome Marco Antônio Luchini numa carteira funcional da TV Globo, reproduzida no segundo caderno de fotos de Mata!. Nossa esclarece:

– Trata-se de uma carteirinha falsa, criada dentro do extinto Serviço Nacional de Informações. O SNI produzia carteirinhas funcionais ou de vínculos de diversas empresas e entidades. O órgão produzia, por exemplo, carteirinhas de sindicatos e partidos adversários do regime. É preciso ressaltar que os profissionais da Globo que estiveram em Serra Pelada fizeram um trabalho correto, rico.

No livro, Nossa critica o irresistível vezo do sensacionalismo que levou à promoção de um Curió mitológico:

“É Deus no Céu e Curió na Terra, destacavam os jornais. Repórteres que entravam no garimpo saíam de lá afirmando que o agente tinha virado ‘santo’, ‘pai dos garimpeiros’. Na descrição da imprensa, Serra Pelada era um cenário de filmes épicos de Hollywood” (pág. 293).

Pergunto que jornais e que jornalistas foram esses. O autor responde:

– Esse trecho é, na verdade, uma autocrítica. Nós, jornalistas, temos muitas dificuldades em entender questões regionais, fazer reportagens de Brasil, relatar a complexidade dos sertões. Apresentar nomes de repórteres e jornais seria limitar uma crítica que deve ser feita a todos que participamos da aventura da reportagem. Não se trata de um problema do passado. Ainda hoje apresentamos visões absurdas de Serra Pelada e outras feridas abertas na selva.

O livro descreve a filmagem de Os Trapalhões na Serra Pelada. “O personagem de Renato Aragão se chamava Curió, herói que combatia contrabandistas”. Pergunto se o filme glorificou o garimpo de Serra Pelada. Responde Nossa:

– Acho que é possível entender o filme como um elogio à política de desenvolvimento da Amazônia adotada pelo regime militar e da própria presença do Exército no Pará.

Lobão e a mina

É quase inacreditável que um personagem como Edison Lobão, à parte gozações da revista piauí, siga lépido e fagueiro em sua trajetória pública sem que a mídia jornalística questione fatos evidenciados no livro de Nossa (e em outras fontes).

“[Em 1983] A amizade entre Curió e o presidente [João] Figueiredo foi restabelecida. O deputado Edison Lobão e os senadores João Castelo e Alexandre Costa foram à casa de Curió, em Brasília, dizer que o presidente convidava para um jantar na Granja do Torto” (pág. 305).

“O assassinato de Josimar, rival do grupo do senador Edison Lobão, é um dos capítulos da história da chegada de uma nova empresa ao garimpo, a mineradora canadense Colossus, apoiada pelos aliados do senador maranhense. A empresa se propôs extrair com máquinas o ouro que os garimpeiros não conseguiam tirar de sob a terra.

(…)

“Tomba a castanheira sobrevivente de Curionópolis. O tronco está derrubado no pasto da margem esquerda da estrada para o garimpo. Zé da Rita me contou, numa viagem que fiz a Serra Pelada, que a árvore caiu numa noite de ventania.

“– Você tem certeza de que foi o vento? – me pergunta Curió.

“Um fazendeiro derrubou a castanheira. Ali, o grupo do senador Edison Lobão, político prestigiado por Lula e Dilma, planeja construir casas para abrigar moradores expulsos de Serra Pelada” (pág. 389).

Comenta Nossa:

– O livro retrata um Estado que, mesmo em tempo democrático, é violento. Em 2010, o repórter Rodrigo Rangel e eu publicamos uma reportagem no Estadão sobre o caso de Serra Pelada. Naquela época, como agora na divulgação do livro, não houve comentários sobre as denúncias. Havia dois caminhos a seguir na produção de uma narrativa sobre o Araguaia. Um dos caminhos, o mais tradicional, era revelar atrocidades do regime militar na região. Outro, que vi como uma nova trilha, era revelar a barbárie produzida pelo Estado, antes, durante e depois da guerrilha. O meu foco era o Estado. Isso me permitiu entender que o poder público manteve características do período militar no Araguaia. A violência continuou sendo uma marca de grupos econômicos ou políticos sintonizados com o poder federal. A violência contra os civis no Araguaia não terminou após o massacre dos guerrilheiros. A badalada retomada da extração de ouro de Serra Pelada é, simplesmente, a continuidade de uma história obscura envolvendo o patrimônio público.

A guinada de Greenhalgh

Outra pauta à espera de atenção jornalística diz respeito ao advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, ex-deputado federal petista e ex-vice-prefeito de São Paulo. Em 2008, ele pediu à Justiça a apreensão de documentos sobre o Araguaia que estavam na casa de Leonencio Nossa (ver “Greenhalgh pede busca na casa de repórter do ‘Estadão’“).

No livro, Nossa escreveu:

“A fazenda [Cedro] foi um dos quinze latifúndios comprados na região pelo banqueiro baiano Daniel Dantas. Ele é dono de um total de 600 mil hectares, calcula a Comissão Pastoral da Terra. Ocupou a terra e tomou dos ‘formigas’ e das famílias dos guerrilheiros seu advogado. Luiz Eduardo Greenhalgh deixou o papel de defensor dos direitos humanos para atuar como lobista do banqueiro. Dantas e Greenhalgh foram apontados pelo relatório da Operação Satiagraha da Polícia Federal como integrantes de uma quadrilha acusada de lavagem de dinheiro e corrupção” (págs. 347-8).

O jornalista denuncia:

– Com a procuração de defensor de famílias de guerrilheiros, o senhor Luiz Eduardo Greenhalgh pediu à Justiça os documentos que eu havia coletado durante a investigação, sob risco de busca e apreensão. A Justiça rejeitou o pedido, aceitando meu argumento de que o advogado era também assessor de Daniel Dantas, o maior latifundiário do Sul do Pará. Como eu investigava a concentração de terras e a matança de posseiros nas terras que seriam adquiridas por Dantas, não seria razoável que essa documentação fosse analisada em primeira mão pelo representante de um investigado, ainda que tivéssemos de respeitar a atuação de Greenhalgh em outro momento da história do Araguaia, o tempo em que ele defendia de fato líderes sociais e parentes de guerrilheiros, lá no passado.

O drama segue

Leonencio Nossa quis fazer, e fez, uma obra sintonizada com a vida brasileira dos períodos que descreveu, do tempo em que pesquisou e do momento em que publicou seu livro. É também um trabalho que olha para frente, porque o drama dos relegados da Amazônia, do Nordeste, das periferias dos grandes centros está em aberto. E assim permanecerá por longos anos ainda. Mas investigações exemplares como a de Mata! poderão contribuir para encurtar tanto sofrimento, se a mídia jornalística levar à opinião pública suas denúncias e reflexões.