Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O balanço do julgamento. Na praia

Entre agosto e dezembro de 2012, ao longo das 53 sessões do julgamento da Ação Penal 470, a Justiça virou coqueluche no Brasil. Além de mobilizar jornalistas, intelectuais e juristas na tentativa de vislumbrar o mundo do direito pós-mensalão, o caso também animou conversas da população em geral nos botequins, nas corridas de táxi, na fila do banco, no cotidiano. De uma hora para outra, oito homens e duas mulheres que falam difícil e vestem capa preta passaram a povoar o imaginário de milhões de brasileiros.

Para especialistas, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixa legados relevantes – mas ainda desconhecidos – para a prática jurídica no país. Mas tão emblemática quanto isso foi a superexposição midiática do julgamento e dos ministros-juízes, uma verdadeira “tragédia grega”, associa o jurista e filósofo Tercio Sampaio Ferraz Junior, um dos maiores especialistas do Brasil em direito concorrencial e professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

No fim de semana anterior à conclusão do julgamento, nos dias 15 e 16 de dezembro, Ferraz Junior e sua mulher, Sônia Macedo de Mendonça Sampaio Ferraz, convidaram amigos advogados, jornalistas, alunos de direito e até um psicanalista para discutir a “teatralização” do julgamento do mensalão e o papel do Supremo em uma sociedade midiática. Foi a sexta edição do que passou a ser chamado “Seminário da Feiticeira”, uma referência à praia homônima de Ilhabela, litoral norte de São Paulo, onde está localizada a casa do casal de advogados.

Discursos desnecessários

Foi um encontro informal. Os participantes só não podiam esquecer de se besuntar com repelente antiborrachudos. “Abrir minha casa para amigos e gente nova é um prazer muito pessoal e sempre lucro muito com essas conversas, aprendo demais”, conta Sônia.

Com esse espírito, a discussão começou com o anfitrião pontuando a afinidade entre o direito e o teatro de Ésquilo, conhecido como o pai da tragédia grega por explorar o conflito e suas mediações. “Queríamos discutir esse tema desde os casos Nardoni e o do goleiro Bruno. A TV Justiça e a cobertura midiática criaram um ambiente diferente para o trabalho do juiz. A mídia funciona como um coro repercutindo as decisões do tribunal; os juízes se moldam a esse coro, produzindo um discurso performático”, comenta Ferraz Junior.

O advogado Thiago Brito, que conduz pesquisa de doutorado sobre direito e teatro, aproveita a deixa do anfitrião para citar versos de Shakespeare, que se relacionam com a ocasião: “O mundo é um palco e todos os homens e mulheres são atores, têm suas saídas e suas entradas. Cada homem na sua vida representa vários papéis.”

Segundo Ferraz Junior, a estratégia de “fatiar” as decisões do julgamento do mensalão é outro aspecto que dá contornos de dramaticidade ao processo. “Vira uma novela. A Globo mostra os melhores momentos do julgamento com os ministros defendendo a democracia e repete várias vezes, do mesmo jeito que os melhores lances do Neymar. Até que ponto a repercussão precipitada de uma decisão interlocutória não afeta as decisões seguintes?”, questiona o jurista, sugerindo uma subversão ao princípio jurídico da publicidade, teoria dos anos 1960 sobre transparência elaborada pelo pensador alemão Niklas Luhmann (1927-1998).

“Na Inglaterra não se permite fotógrafo na Corte Suprema, câmeras de televisão nem pensar. A mais alta corte americana se reúne a portas fechadas e só torna pública a decisão final dos ministros. Até que ponto ter o princípio da publicidade, que é constitucional, transformado em show influencia o papel de quem julga?”, complementa Ferraz Junior.

Conservador em relação à superexposição de juízes, o anfitrião acha esquisito o presidente do STF, Joaquim Barbosa, ter sua imagem mitificada, ser visto como herói pela população. A performance de guitarrista do ministro Luiz Fux na festa de posse de Barbosa, extremamente explorada pela televisão e na internet, é quase um sacrilégio. “Quando comecei a atuar, nos anos 1960, advogado não falava fora dos autos, juiz não aparecia nunca”, lembra.

A aproximação do juiz da população e a noção de que não se trata de uma figura inatingível, uma imagem claramente proporcionada pela mídia na cobertura da AP 470, foram os primeiros motivos de discussão no “Seminário da Feiticeira”. “Essa superexposição é positiva porque todo mundo vê as idiossincrasias, o jogo político, as vaidades que existem no Judiciário. É uma forma de garantir transparência e mostrar que esse discurso performático faz parte do jogo de cena do direito”, opina o especialista em transparência pública Eurico de Santi, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (GV-Direito).

Samuel Barbosa, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP, vê a teatralização do julgamento do mensalão como um esforço positivo da imprensa em aperfeiçoar a cobertura de temas ligados ao Poder Judiciário. Nesse caso, o maior benefício é fortalecer a cultura jurídica no país. Ele pondera, contudo, que o excesso de exposição, pela imprensa independente e principalmente pela TV Justiça, pode distorcer a postura do magistrado.

“Vejo a teatralização do mensalão como uma oportunidade para a população saber que o juiz é de carne e osso, não é nenhuma entidade divina. Mas o risco é a transformação do Supremo em uma espécie de Parlamento. O juiz ter que argumentar sua decisão é uma coisa relativamente recente na história jurídica. Mas no julgamento do mensalão vimos muitos discursos desnecessários dos ministros, pareciam deputados na tribuna”, critica Barbosa.

Indício e prova

Acostumada a lidar com autoridades expostas aos holofotes midiáticos, a jornalista Maria Clara R. M. do Prado, colunista do Valor e ex-assessora de imprensa da equipe do governo federal que formulou o Plano Real, demonstrou preocupação com a possibilidade de o magistrado banalizar a função do Supremo com a exposição midiática. “O ser humano é vulnerável àquilo que fala mais alto com relação à sua vaidade, à sua capacidade de se autocensurar, e acaba assumindo papéis para os quais não foi treinado.”

Maria Clara cita uma experiência pessoal para exemplificar seu ponto de vista: segundo ela, Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda durante a transição para o Real, acabou perdendo o cargo por causa de comentários inapropriados, captados por antena parabólica, em que ele reconhecia a omissão de informações negativas sobre o governo. “Era um diplomata de carreira, um homem de gabinete, acostumado com negociações internacionais. De uma hora para outra ele passou a ser muito popular, na rua as pessoas tocavam nele e diziam que ele era o homem que ia resolver os problemas delas. Ele perdeu o chão diante dessa situação nova e 'caiu em tentação', como ele mesmo, que é muito católico, me disse”, recorda a jornalista.

Mais radical dos participantes do encontro na Praia da Feiticeira, em Ilhabela, o filósofo Torquato Castro, coordenador do curso de direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), falou pouco sobre o mensalão, mas a alegoria que criou para interpretar o jogo de cena do mundo jurídico intrigou a todos.

Trata-se da cena final de “Blow Up”, filme de 1966 de Michelangelo Antonioni. Para Torquato, a dupla de mímicos jogando tênis sem bola nem raquetes é uma metáfora sobre a consistência da teoria do direito e das decisões fundamentadas na ciência jurídica. “A gente no direito vive de uma mentira. O que não está nos autos não está no mundo. Qual a diferença entre indício e prova? É aquilo que eu [advogado] quero, mas que tenho que apresentar do jeito que eu sei. A verdadeira diferença entre indício e prova é a contundência da interpretação do juiz”, filosofa Torquato.

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[Luciano Máximo, do Valor Econômico, em Ilhabela (SP)]