Quando cheguei ao hospital ele já estava na sala de cirurgia esperando por uma operação, uma operação que poderia durar entre oito e dez horas. O médico, jovem ainda, estava em sua sala, examinando várias radiografias e se preparando para a longa jornada.
Dei duas batidas leves na porta semiaberta, ele ergueu o olhar sob as lentes dos óculos.
– É muito grave, doutor?
– É.
– Quais são as chances?
– Uma em um milhão. Você é parente?
– Sou amigo, apenas somos amigos.
A noite foi interminável, entrou madrugada adentro e nada. Seria quatro e pouco quando, finalmente, uma enfermeira deixou a sala. Eu me levantei, fiquei atrás dos seus familiares, e percebi apenas que havia poucas notícias. A cirurgia havia terminado, ele estava sendo encaminhado para a UTI.
Senti um alívio. Pelo menos estava vivo.
Zé Maria, o meu amigo José Maria de Lima, tinha vencido a primeira batalha contra 999 mil possibilidades de derrota.
Levou meses para se recuperar, emagreceu bastante, mas mantinha o olhar sereno. Logo voltaria ao trabalho no jornal Folha de São Paulo. Creio que nessa época já estava na editoria de educação.
Nos conhecemos na sala de aula no primeiro ano clássico do Colégio Fernão Dias Pais, na Rua Pedroso de Morais, em Pinheiros, São Paulo.
Durante os três anos do curso, Zé Maria, eu e o Espanhol, Manuel Valverde Palenzuela, formamos um trio inseparável.
O Espanhol trabalhava com seu pai na granja do Embu, eu era auditor-júnior no Banco de Boston e o Zé Maria vivia de poesia – mulato, um Machado de Assis.
Teria mil laudas para escrever sobre esses dois amigos, mas foi para o Zé que prometi o prefácio deste livro.
Qual a razão?
Uma noite interminável, como todas as noites em que nos submetíamos ao exame oral no fim do ano, eu entrei para fazer a prova de matemática precisando tirar no mínimo nota 8.
Havia conversado com o Zé Maria, não queria fazer a prova, já aceitando a derrota:
– Zé, não adianta. Pode ser que eu tire essa nota com o professor Barcelos, mas com o Epinghaus nem por milagre.
Ele me convenceu a fazer a prova. Havíamos estudado dias inteiros. Ele e o Espanhol nem precisavam estudar comigo, pois já estavam praticamente aprovados.
E, agora, estávamos lá, na noite das garrafadas, no último ano do curso.
Naquele tempo, a chamada era por ordem alfabética. Lá foi o Zé e viu o primeiro mestre lhe dar nota 8, que o segundo confirmou. Depois o Manuel Valverde, que foi muito bem.
Eu, Vital, era um dos últimos.
Passava da meia-noite quando me dirigi ao cadafalso. Lá, uma carteira diante do professor Barcelos. No fundo da sala, a torcida e a solidariedade dos dois amigos.
Sorteei o ponto. Era um teorema que eu nem sabia por onde começar. Escrevi numa folha o número do ponto e, numa distração do velho mestre, atirei a bolinha de papel para o Zé Maria.
Ele e o Espanhol abriram o livro e começaram a rabiscar. Eu, lá na frente, entregue à própria sorte.
Em alguns minutos, percebi que o Zé Maria já estava com uma bolinha na mão. Esperamos por outra distração dos mestres, que seguiam com outros dois alunos, e lá veio a bolinha pelo alto. Levantei o braço, mãos espalmadas, e pedi a Deus (imagine se isso é coisa que se peça a Deus?). Quase chorei quando senti que havia agarrado.
Abri a página amarrotada e comecei a escrever rapidamente números, raízes quadradas e cúbicas e, finalmente, o CQD (“como queria demonstrar”), termo que os matemáticos usavam ao concluir com sucesso o problema.
O professor Barcelos perguntou se eu estava pronto. Examinou minha prova e, aparentemente, parecia estar satisfeito. Então eu o vi escrevendo a nota 9 em sua caderneta.
Faltava agora o impossível, uma nota 7 com o professor Epinghaus. Mas, para minha surpresa, os dois mestres – já cansados – trocaram uma palavra que não entendi direito e o professor Barcelos, que era o nosso professor (estava sendo auxiliado pelo outro), perguntou-me:
– Está bem para você se o professor Epinghaus repetir a minha nota?
– Sim.
E comecei a chorar.
Nossos caminhos se separaram logo depois. Eles foram fazer jornalismo; eu, direito. Mas nossos caminhos iriam se cruzar mais adiante quando fui contratado para trabalhar no jornal Última Hora, o Zé Maria no Jornal do Brasil, em São Paulo, e o Espanhol na Folha de S.Paulo.
Já não nos víamos com tanta frequência, mas às vezes íamos jantar e colocávamos a pauta em ordem. Creio que o Zé ainda não havia se casado quando nos contou que teria de fazer uma nova cirurgia. Nos rins.
Teve de extrair um dos rins.
Poucos anos depois, problema no outro rim.
Extração.
O Manuel, que parecia estar bem, pai de dois filhos, de repente entrou no hospital e não saiu mais, derrotado por um câncer de pulmão.
O Zé fazendo diálise duas vezes por semana.
Quando nos víamos, percebia que cada vez estava ouvindo menos, menos, menos.
Até que um dia, quando cheguei em sua casa, como sempre fazia às vésperas de Natal, vi que ele estava com um bloco em branco nas mãos, e uma caneta.
Sua esposa me disse que ele não estava ouvindo mais.
Eu, então, escrevia as perguntas, ele respondia. Sempre irradiando amor pela vida.
Quantas vezes me surpreendi falando de meus problemas para ele. Imagine se eu tinha problemas?
– Zé, você está precisando de alguma coisa? – escrevi.
– Não, só preciso dos meus amigos.
Faz alguns anos, sua esposa telefonou para avisar de sua morte.
Não havia nenhum jornalista no velório.
Eu já tinha decidido que ele faria o prefácio deste livro. Mas ele morreu.
Pensei em outras pessoas, afinal sempre ouvi dizer que ninguém é insubstituível.
Para mim, ele é.
Por isso, este livro não tem prefácio.
Tem apenas a história de um amigo.
Era tudo que ele queria.
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[Vital Battaglia é jornalista]