Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quanto valem R$ 58 milhões?

Não faz muito tempo, a necessidade de “traduzir” grandes quantias monetárias produzia quase sempre os mais asnáticos disparates. Com não sei quantos milhões se poderiam comprar não sei quantos milhares de automóveis. Quem vai comprar milhares de automóveis? Enfileiradas, as células fariam a volta ao mundo, ou chegariam à lua etc.

No sábado (19/1), os jornais todos deram, como na véspera emissoras de rádio e televisão e portais de notícias, informação sobre a decisão da Justiça de Jersey que condena o ex-prefeito Paulo Maluf a devolver à Prefeitura paulistana cerca de R$ 58 milhões (cabe recurso). O único jornal que deu chamada na capa foi a Folha de S. Paulo.

A reportagem, assinada por Mario Cesar Carvalho, também é a única que “traduz” o valor arbitrado pelos juízes. E o faz de modo inteligente: esse dinheiro daria para construir 13 escolas ou dois CEUs (sigla de Centro Educacional Unificado, atualização dos Cieps fluminenses de Brizola ou dos Ciaps nacionais de Collor). Ou seja, atividades precípuas de uma prefeitura.

Megassena e Itaquerão

No infográfico que ilustra a reportagem há menos precisão do que no texto, onde se lê quanto custa construir cada escola do tipo usado para a comparação (R$ 4,4 milhões) ou CEU (o mais recente custou R$ 29 milhões). O infográfico usa imagens para simbolizar 40 escolas (cabe ao leitor dividir 58 por 40), ou porcentagens da soma que Maluf, se o recurso de seus advogados não funcionar, terá que desembolsar (além dos gastos da Prefeitura com o processo, que podem chegar a R$ 9 milhões).

As porcentagens são: o ressarcimento vale 50% “do custo de um hospital, aproximadamente” (claro, porque há hospitais e hospitais); “24% do prêmio da Megassena da virada 2013” e “7% do Itaquerão, o novo estádio do Corinthians”. Também nesses dois casos cabe ao leitor fazer a conta, se estiver interessado em saber quanto pagou a loteria brasileira (que dá prêmios mixurucas, comparados aos padrões internacionais; questão de renda per capita) ou quanto vai custar o estádio.

Nesses dois últimos itens a pertinência das comparações vai para o espaço. Uma pequena recidiva da doença das comparações malucas. Melhor teria sido, quem sabe, reduzir a parte gráfica e colocar uma pitada de análise, algum comentário sobre como se repetem e se ampliam nas prefeituras brasileiras os esquemas de superfaturamento de obras. Ou até de ausência delas, como em Nova Friburgo, para citar um único e doloroso caso.

O PP e a habitação

A matéria está na página 4, ilustrada com foto bem aberta e atual de Maluf sorridente. Ao lado, no “Painel”, quatro tópicos, incluída a abertura da coluna, falam da pressão do PP, partido de Maluf, para conquistar o controle dos programas habitacionais paulistas, fechando assim um arco que começa na esfera federal (o ministro das Cidades é do PP) e termina na municipal (Fernando Haddad entregou à agremiação malufista o comandos dos programas habitacionais). Alckmin, dizem as notas, tende a contentar Maluf, de olho nas alianças para 2014.

É pura coincidência que as notas estejam ao lado da matéria (de fato, sem brincadeira). E não se lerá aqui nenhum comentário a esse respeito.

Qualidade é o desafio

O detalhe das comparações tem relevo porque faz parte do esforço diário para melhorar a qualidade dos jornais, também diariamente contra-arrestado pelos interesses negociais, ideológicos e políticos que abastardam o noticiário. E pelo mau jornalismo, que existe desde o primeiro jornal do mundo e é indispensável à civilização: se não houvesse mau jornalismo seria impossível identificar o bom jornalismo.

Qualidade é uma combinação de confiabilidade, presteza e contextualização. Em outras palavras: a novidade vinda de fonte segura, mas não “solta” no noticiário.

Qualidade do conteúdo e da forma é a grande arma dos jornais impressos na luta para sobreviver à aceleração do tempo social. A aceleração, levada a patamares quase desumanos pela internet e, mais ainda, pela telefonia móvel, e ainda pela combinação das duas, é muito anterior ao advento da rede mundial e do celular. É um fenômeno que começa com o telégrafo, passa pelo telefone fixo e ganha extraordinário impulso com a radiofonia comercial. A televisão entra nesse circuito acrescentando um elemento poderosíssimo, a imagem. É mais lenta do que o rádio para contar as novidades, embora impressione mais.

Renovação e rotina

O cinema estaria condenado pela massificação da televisão, mas comercialmente vai bem, obrigado, graças à sua capacidade de renovar conteúdos e técnicas. Quando ainda não havia televisão – e, portanto, filmes não eram nela exibidos –, fizeram na França uma experiência com homens que haviam passado a década de 1920 presos e que tinham ido ao cinema antes da prisão. Eles simplesmente não conseguiram entender os filmes novos, tamanhas as mudanças de técnica cinematográfica ocorridas enquanto estavam encarcerados.

 Os jornais não param de se renovar, embora sejam uma complexa operação diária que precisa se apoiar fortemente em rotinas. Nem sempre, porém, a renovação contribui para melhorar a qualidade. Vide a mais recente reforma gráfica do O Globo. Errare humanum est.