Um dos vinte pontos acordados entre entidades representativas da sociedade civil – inclusive o Observatório da Mulher – como plataforma básica para um novo Marco Regulatório das Comunicações, diz explicitamente:
“Devem ser instituídos mecanismos para assegurar que os meios de comunicação: a) garantam espaço aos diferentes gêneros, raças e etnias (inclusive comunidades tradicionais), orientações sexuais, classes sociais e crenças que compõem o contingente populacional brasileiro espaço coerente com a sua representação na sociedade, promovendo a visibilidade de grupos historicamente excluídos; e b) promovam espaços para manifestação de diversas organizações da sociedade civil em sua programação. Além disso, o novo marco regulatório deve estimular o acesso à produção midiática a quaisquer segmentos sociais que queiram dar visibilidade às suas questões no espaço público, bem como articular espaços de visibilidade para tais produções.”
Garantir às mulheres espaço que expresse sua presença e sua importância real na sociedade é o que a regulação e/ou a autorregulação do mercado de mídia já realizam nos doze países e na União Européia pesquisados neste A Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado realizado por Rachel Moreno, com a colaboração de Tereza Verardo.
No momento em que o debate sobre o direito à comunicação, apesar do boicote sistemático da grande mídia, finalmente alcança o espaço público no nosso país, este trabalho constitui contribuição fundamental não só para os atores que formulam as políticas públicas de comunicações, mas para o conjunto da população que precisa saber o que já se faz em outras democracias.
Na verdade, a principal falácia do argumento dos atores que resistem a qualquer tipo de regulação da mídia é que ela ameaça a “liberdade de expressão”. A pergunta óbvia a ser feita é “de quem é a liberdade de expressão que estaria sendo ameaçada?”
Políticas públicas
A Constituição de 1988 elimina a possibilidade de qualquer tipo de censura e consagra a mais ampla liberdade de expressão. Para que isso se realize, todavia, são fixados princípios e normas que precisam ser cumpridos pela mídia. Isso porque a mídia constitui “intermediário” indispensável nas sociedades contemporâneas para o acesso da população ao debate público. De outra forma, a liberdade de expressão se transforma apenas em privilégio daqueles que controlam a mídia.
No Brasil, como se sabe, boa parte da mídia tradicional – jornais, revistas e as concessões do serviço público de radio e televisão – é ainda controlada por uns poucos grupos empresariais vinculados às velhas oligarquias políticas regionais e locais, algumas oriundas do tempo da República Velha. São esses grupos que desfrutam de uma liberdade de expressão que é excludente por sua própria constituição histórica e, de fato, impede que a imensa maioria da população participe e tenha sua voz ouvida no debate público. Vale dizer, impedem que a pluralidade e a diversidade cultural e de opiniões apareçam no espaço público midiático. Paradoxalmente, são esses grupos empresariais que hoje querem exclusividade na bandeira da liberdade de expressão.
Nomear qualquer tentativa de regulação da mídia – mesmo aquelas que se limitam à regulamentação dos princípios e normas Constitucionais – de censura estatal, é a estratégia de combate preferida dos grupos empresariais oligárquicos. Presos a um liberalismo fundamentalista, ignoram deliberadamente o papel que o Estado tem desempenhado em outras democracias, exatamente para garantir a liberdade de expressão de minorias raciais, religiosas e étnicas, dos portadores de deficiência, de grupos definidos por sua orientação sexual e, claro, das mulheres. Esse papel, por exemplo, nos Estados Unidos está consagrado na jurisprudência da Suprema Corte e encontra-se descrito pelo professor da Universidade de Yale e jurista Owen M. Fiss no seu indispensável A Ironia da Liberdade de Expressão – Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública (Editora Renovar, 2005).
Por todas essas razões, A Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado é muito bem vindo. Ele comprova, ainda uma vez mais, que, para ser universalizada, não basta que a liberdade de expressão esteja consagrada na Constituição. É necessário que o Estado cumpra seu papel de garantidor de direitos e, sobretudo, que a sociedade civil organizada participe, não só da elaboração das políticas públicas de comunicações, como do acompanhamento sistemático de sua execução. [Brasília, fevereiro de 2012]
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[Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros]