Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem matou Vladimir Herzog?

Há uma foto do Ivo que é conhecida dos jornalistas da minha geração. Ele, um menino, está de costas olhando o retrato do pai na parede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Há outra foto do Ivo que os que viram não se esquecem. Ele está, aos nove anos, à beira do túmulo do pai, olhando para a cova onde está depositado o caixão.

Na que está ontem [quarta, 23/1] nos jornais, Ivo é um homem, e já tem, se olharmos bem, os primeiros fios de cabelos brancos. Passaram-se 37 anos desde que ele enterrou o pai e vem repetindo a mesma pergunta que constrange o país: quem matou Vladimir Herzog?

Ivo hoje comanda o Instituto Vladimir Herzog com inúmeros trabalhos meritórios de defesa dos direitos humanos prestados ao país. Recentemente criou um sistema cujo objetivo é aumentar a proteção aos jornalistas que possam estar em situação de risco pelas apurações que fazem. Tem novos e belos planos de fortalecimento das instituições democráticas do Brasil.

Mas Ivo faz a mesma pergunta há 37 anos. Nestes muitos anos, caiu o general que comandava o II Exército, onde Vladimir foi assassinado, caiu a ditadura, veio o primeiro presidente civil, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e, agora, é o sexto, ou a sexta. Entre esses presidentes, três foram presos por horas, dias ou anos pelo regime ditatorial. Poderiam ter tido o mesmo trágico destino de Vladimir Herzog, que, horas depois de se apresentar para prestar esclarecimentos que queriam dele, apareceu morto.

Comissão da Verdade

O poder que o matou ainda tentou ofendê-lo após a morte, culpando-o pelo fim de sua vida. Só no ano passado começou a ser alterada a certidão de óbito para retirar a aviltante mentira escrita lá pelos assassinos. Mas o que Ivo quer saber é quem matou seu pai.

Como o Brasil não foi capaz até hoje de responder, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos vai investigar a responsabilidade do país pelo não esclarecimento das circunstâncias do crime. O Brasil tinha o dever de investigar e não investigou, diz a Comissão da OEA. O órgão pode fazer isso? Sim, pode. O Brasil é membro da OEA, assinou e ratificou todos os seus tratados, submete-se, por opção pelo multilateralismo, às suas instâncias jurídicas e políticas. Quando foi notificado no ano passado, o governo brasileiro argumentou que o crime está anistiado. Mas a pergunta é quem matou e em que circunstâncias o jornalista Vladimir Herzog.

Depois daqueles dias sinistros de outubro de 1975, flagrados nas fotos principalmente feitas pela grande fotógrafa Elvira Alegre, Ivo cresceu, se formou, se casou, teve filho. O filho de Ivo, neto de Vladimir, já é grande e acompanha o pai às vezes em eventos do Instituto. E a pergunta dos Herzog continua sem resposta.

Não ser capaz de respondê-la é admitir que o poder civil se deixou aprisionar numa armadilha montada pelo governo militar e que misteriosamente sobreviveu ao regime. Que a Comissão da Verdade, formada por pessoas que têm esse mesmo sentimento, de que as perguntas precisam ter respostas, ajude o Brasil a superar esse constrangimento. Não ser capaz de responder até hoje à pergunta que Ivo, seu irmão André, sua mãe Clarice fazem ao país há quase quatro décadas é aceitar o risco de a História se repetir.

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[Míriam Leitão é jornalista]