Embora seja uma atividade fortemente ligada às narrativas e aos discursos, o jornalismo também tem obrigações absolutas com a precisão e a verificação, como a identificação de fontes, a apuração de fatos, o uso de dados coletados de forma correta e o esclarecimento de assuntos controversos ou técnicos e científicos por intermédio de especialistas. Jornalismo não é só uma conversa entre amigos. Infelizmente, a tendência ao crescimento do jornalismo “coloquial” está aumentando. Transformar a cobertura de eventos de relevância social numa conversa entre amigos é uma solução de adaptação às mudanças no mundo das notícias. Mas é também uma escolha perigosa para o jornalismo em geral. Dois exemplos, ocorridos neste mês, ilustram bem o que digo.
O primeiro foi o estranho caso que a revista The New Yorker (23/01) publicou sobre republicanos que querem a renúncia de Barack Obama já. Segundo o congressista republicano Rand Paul (Kentucky), a cantora Beyoncé não cantou realmente o hino americano durante sua posse: ela teria usado playback na ocasião e fingido cantar, quando na realidade ela simplesmente fez a mímica do hino com seus lábios. E se ela usou o recurso da gravação para substituir a apresentação ao vivo, quem pode garantir que o presidente Obama não fez o mesmo com o juramento de posse presidencial? Quem pode garantir que ele também não fez a mímica e não jurou em voz alta os seus deveres com o povo e a Constituição?
Parece loucura, mas não é. A New Yorker publicou os devaneios de Paul: “Ao fazer a mímica do hino nacional, Beyoncé lançou uma nuvem negra sobre o segundo mandato do presidente Obama”. “O único meio do presidente Obama remover essa nuvem é renunciando ao cargo já.” Palavras dele, leitor. Do congressista republicano Rand Paul. Que acredita que Obama poderia ter apenas movido os lábios e fingido jurar seus deveres com a nação e o povo americanos.
Irresponsabilidade, sadismo e maldade
Será possível que o político acredite que todo o pessoal que estava lá, no dia da posse, ao lado do presidente, não ouviu sua voz? Ouviram apenas uma gravação onde ele jurava suas obrigações com a Constituição e o povo americano? É simplesmente ridículo. Sons provocam vibrações no ar. Fortes o suficiente para quem está perto perceber se foi fala ao vivo ou é gravação.
Esta inútil discussão tomou conta do país, e agora todos querem saber se a cantora realmente usou sua voz e cantou o hino. É uma especulação inútil, mas divertida. Entretém o público. Pouco importa se não houve nenhuma comprovação objetiva do fato. Às vezes, acredito que o ativista da mídia Ryan Holiday está certo: a imprensa está disposta a publicar quase tudo sem a verificação necessária.
O outro caso foi trazido pelo show de fofocas de celebridades TMZ (exibido pela Warner no Brasil). O programa, de alguma forma, também é jornalismo. O estúdio de TV é arrumado como sala de redação em dia de escolha de pautas. Cada repórter, câmera ou comentarista do programa apresenta a sua matéria a Harvey Levin, o criador do show e “chefe de redação”. O portal Jornalistas na Web postou (22/01) o caso da mórbida filmagem, por um câmera do programa, do assassinato de um jovem na porta de um clube noturno. Foi um ato frio de exploração da desgraça humana para entreter a público. A indignação foi geral. O Guardian, de Londres, publicou (17/01) toda a repulsa dos leitores com a irresponsabilidade, sadismo e maldade do TMZ. Que foi pressionado por anunciantes de peso a retirar o vídeo do ar. No dia 25, o TMZ removeu a filmagem, informou o mesmo periódico.
Ambições mercadológicas
O programa aparece na lista do analista Jason Kottke como parte do “jornalismo mais visível” atualmente nos Estados Unidos. Junto com “talk-shows, blogs de cultura pop, revistas sensacionalistas e o Huffington Post, esses veículos reportam os fatos através de uma “narrativa coloquial permeada de opiniões”. O blogueiro expõe as características do jornalismo casual e seus perigos:
“…profissionais da mídia a discutir eventos atuais quase da mesma forma que você e seus amigos fariam numa mesa de jantar cheia. Um efeito colateral desta forma de fazer jornalismo é que raramente ouve-se alguém que é realmente um especialista no assunto em algum momento específico. A abordagem não é ampliada. Encontrar e conversar com especialistas consome muito tempo e especialistas não envolvidos em disputas são chatos de qualquer jeito. O que você consegue então são especialistas a falar de coisas sobre as quais eles não têm experiência.”
Kottke é um famoso blogueiro com um link para o site AllThingsD. É formado em física e já foi web-designer. Hoje é também um analista da mídia bem preparado e sério. Ele argumenta que “especulação é diversão”. “E o público quer que as notícias sejam diversão.” O que traz o tema das notícias coloquiais apresentadas como entretenimento. Como uma conversa entre amigos com sabor de diversão.
Paula Roberta Santana, em seu excelente ensaio na Revista Temática (Ano VIII, nº 07, julho/2012), abordou de forma esclarecedora o problema de jornalismo como entretenimento. A autora está um alerta sobre os perigos deste tipo de jornalismo:
“Percebe-se no discurso jornalístico um deslocamento de temáticas sérias em virtude de temáticas descontraídas, capazes de gerar fruição, emoção, diversão. Consequentemente, ao fazer isso, é erigida a imagem de um jornalismo fragilizado, incapaz de proporcionar um conhecimento interpretativo acerca da realidade ao seu público. Além disso, o jornalismo perde-se em ambições mercadológicas que somente visam vender mais.”
Objetividade e pirâmide invertida
Infelizmente, a pesquisadora também mostra em seu artigo que o sensacionalismo e a diversão sempre estiveram presentes no universo da transmissão de notícias através da História antiga e moderna dos jornais. Nos Estados Unidos o moderno jornalismo vulgar e sensacionalista começou com Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst. Pulitzer foi o pioneiro, com seu New York World. Hearst veio depois, com o Morning Journal e construiu um império de mídia maior e mais duradouro.
A atividade de noticiar, desde o seu início, sempre esteve ligada a informações de baixa qualidade, “escandalosas e sem importância”. No mundo todo, e mesmo antes da invenção do jornal moderno – é o que diz a história do jornalismo.
A cena mudou com o passar dos anos. Notícias cotidianas ordinárias e de qualidade duvidosa cansaram a população, que pouco a pouco abandonava a ignorância com a ampliação gradual da educação pública. O cenário da mídia mudou. A autora explica:
“No século 20, aconteceram mudanças drásticas no jornalismo, com o surgimento da objetividade e o uso da técnica da pirâmide invertida, por influência do positivismo”.
O positivismo é corrente de pensamento filosófica utópica hoje bastante desgastada, por crer justamente na objetividade absoluta e na passagem da humanidade a uma fase de “conhecimento positivo”, “completamente afastado da metafísica e da teologia”.
Especulações trazem explicações
A chegada da era digital, com todas as suas distrações, mudou outra vez o cenário: as notícias especulativas apresentadas em tom de bate-papo encontraram espaço outra vez. A web é uma amplificadora de especulações. É um ambiente onde a diferença entre verdade e mentira é uma linha borrada e sem nitidez. Novidades e recursos vindos do mundo da informática facilitaram a invasão de veículos e notícias que não fazem mais nada além de conversar com o leitor sobre especulações improdutivas e não comprovadas. A volta do jornalismo coloquial, especulativo e sensacionalista propõe ao jornalismo em geral um caminho arriscado: estabelecer um vínculo afetivo com o público para agregar mais audiência, capturadas pelo intimismo e clima de “almoço entre amigos”.
A prática é lucrativa e os novos meios digitais potencializam as imagens, as fotos e filmagens e as narrativas descompromissadas com a precisão da informação ou a apuração dos fatos. A coisa é rentável por uma simples razão básica: a especulação exerce um fascínio ancestral sobre os homens não só porque especular é divertido, mas, sobretudo porque especulações trazem (ainda que de forma distorcida e errada) explicações para questões que o jornalismo e mesmo a ciência ainda não podem responder.
***
[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]