Tive o privilégio de assistir a mais uma instigante entrevista televisiva no programa Roda Viva. Mais uma porque antes já tinha assistido à de Robert Darnton, sob a qual emiti comentários neste Observatório, e a de André Schiffrin que, por igual, foi instigante e reveladora para quem ama o livro e a leitura. Darnton e Schiffrin abordam a questão do livro nesta encruzilhada da história e apontam não só as armadilhas como também possíveis saídas para o impasse vivenciado pela indústria do livro.
Domenico de Masi tem outras preocupações de igual ou maior importância no contexto atual. Para ser sincero, pensava que sua tese principal – o ócio criativo – tinha, junto com seu criador, sido cooptada e virada mais um modismo que seguiria o ritual de ser consumido e logo depois descartado pela elite empresarial e política face ao surgimento de outro modismo aparentemente mais avançado na área.
Para minha surpresa e satisfação, deparei com um crítico do status quo apontando o arcaico no último reduto da ditadura do modelo industrial de sociedade que é a empresa e todo o seu aparato organizacional onde impera a hierarquia, o nepotismo e todo um arsenal de princípios e valores autoritários. Situação que se tornou tão legitimada que mesmo a esquerda democrática nunca se debruçou sobre as suas mazelas por compreender, mal compreender, que esta cidadela de controle e submissão do mais fraco tombaria automaticamente com o fim do capitalismo. E isto não aconteceu; ao contrário, tivemos a ascensão da esquerda ao poder em empresas e países e na maioria das vezes houve um recrudescimento dos valores hierárquicos e disciplinadores. A desculpa sempre foi que se fazia necessária a “mão forte” nos momentos de transição para o socialismo e assim tudo continuava como dantes naquele que é, como diz Domenico de Mais, um irradiador de valores para todo o resto da sociedade, dada a sua centralidade na vida comunitária, econômica e social.
Analógicos e digitais
Neste particular, fica demonstrada a tibieza dos conceitos e ferramentas do pensamento progressista e democrático para analisar e ser propositivo em questões pontuais importantes como é o caso do modelo de gestão de uma organização empresarial e sua repercussão no tecido social. A família, a economia, a política, as festas, os hábitos e costumes, enfim, a comunidade como um todo, foram exaustivamente pesquisados. Daí o ar de surpresa e embasbacamento quando deparamos com Domenico de Masi demonstrando a importância deste tema e o quanto foi negligenciado. Sou um leitor modesto, mas aplicado, de textos literários, econômicos, políticos e de sociologia e confesso que, à exceção de sociólogos como Ricardo Antunes, presente na entrevista, e outros poucos, este é um assunto relegado a um segundo plano. Para ser justo, agora está surgindo uma preocupação especial dos marxistas para uma questão que se agudizou com o advento do neoliberalismo. Começam a aparecer pesquisas, por exemplo, sobre o wallmartismo que, segundo mostram, leva aos extremos limites a exploração dos empregados e fornecedores.
Perguntas que podem soar embaraçosas, mas pertinentes, foram por ele respondidas a contento. Numa dessas, foi perguntado se ele não se frustrava com o fato de as empresas pouco avançarem no sentido de acolherem suas ideias e ele respondeu que assim como o recebem para consultoria elas recebem consultores americanos e todas as suas ferramentas de administração calcadas no paradigma industrial, muito mais ajustadas a um pensamento conservador que insiste em continuar a administrar o mundo pós-industrial com modelos de gestão da era industrial. Ele denomina os adeptos do modelo de gestão industrial de analógicos e os do pós-industrial de digitais. Mesmo assim, diz De Masi, ele e seus colaboradores têm conseguido avanços junto a empresas e mesmo países.
A favor do otimismo
Houve uma pergunta que, ao meu juízo, tinha a intenção nítida de atingir o governo e gerou uma resposta em sentido contrário. Um dos entrevistadores perguntou se ele não tinha preocupação com os rumos da ética no mundo atual e teve como resposta que se não vivemos no melhor dos mundos possíveis, este é, pelo menos, o melhor mundo até hoje. Tanto isso é verdade que seria há pouco tempo atrás impensável o julgamento de um ministro de Estado. Como a juventude de hoje não vivenciou a ditadura ela não sabe o quanto tudo era permitido para os aliados dela. Mais, disse que somente quem não conhece história para achar que somos piores que nossos predecessores. Para ilustrar o que dizia, pinçou exemplos históricos da desfaçatez humana no campo da ética. Como se não bastasse ele fez questão de registrar a sua satisfação com o fim do governo Berlusconi, um tosco e medíocre empresário, que para ele era fruto do poder midiático e representou um desastre para o país e para a democracia italiana. Se a intenção do perguntador era atingir o Lula e a Dilma, “o tiro saiu pela culatra”.
A única ressalva diz respeito à sua tese de que o Brasil, a despeito de todas as suas mazelas, serve como paradigma global. Embora tenha inegáveis pontos a seu favor se cotejarmos com a China e a Índia no quesito democracia, esteja avançando significativamente na inclusão de vastos setores da sociedade até então marginalizados e conviva harmoniosamente com os países vizinhos, os níveis de distribuição de renda e paz social de nosso país estão ainda muito aquém de um patamar satisfatório de qualidade de vida. A favor dele pode-se arguir que sua referência é o modus operandi de um governo, apoiado pela maioria da sociedade, empenhado em promover avanços sociais contornando conflitos, negociando dentro das regras democráticas ainda que sob ataque sistemático do poder econômico-financeiro e midiático.
Para finalizar lembro seu depoimento a favor do otimismo. Disse ele que como estudioso da criatividade individual e coletiva durante mais de 30 anos nunca deparou com cientistas pessimistas salvo quando estavam diante de dificuldades inerentes ao seu métier, mas daí eram frustrações decorrentes de situações adversas pontuais. Tem muito mais a ser dito. Melhor ver na íntegra a entrevista e ler seus livros para tirar suas próprias conclusões.
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[Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS]