“Já muito se escreveu sobre o desastre mediático em que se transformou a conferência patrocinada pelo Governo para alegadamente ouvir a sociedade civil sobre a 'reforma do Estado', acontecimento que acabou por ser marcante, não pelas contribuições que possa ter trazido a esse debate, mas pelos entraves que os seus organizadores quiseram colocar à liberdade de informação.
Como referi na minha crónica anterior, a imprensa viu-se confrontada nessa conferência — que decorreu no Palácio Foz, em Lisboa, nos passados dias 15 e 16 — com a tentativa de imposição de uma regra insólita, segundo a qual os jornalistas poderiam assistir aos debates (supostamente para deles darem conhecimento aos seus leitores), desde que não citassem nenhum dos intervenientes sem a sua 'expressa autorização'. Em consequência, este jornal optou por não acompanhar e não noticiar as sessões de debate, em protesto contra o que classificou em editorial como um caso de 'censura prévia'. Na prática, tratou-se de um boicote informativo, que no entanto não foi (e isso deve ser criticado) nem formalmente assumido como tal, nem devidamente explicado aos leitores.
Regresso hoje ao tema porque continuaram a manifestar-se pontos de vista diferentes sobre esse episódio. Sustentei aqui, há uma semana, que o mais que justificado protesto do PÚBLICO contra a atitude dos organizadores da conferência não era incompatível com o dever de informar os leitores sobre o conteúdo dos debates. Posição contrária defendeu, entretanto, em mensagem que me dirigiu em nome pessoal, o director adjunto do jornal Manuel Carvalho. Parece-me útil alargar aos leitores a troca de argumentos que se seguiu, suscitando eventualmente outros contributos para uma discussão que não incide sobre princípios rígidos, mas sobre escolhas editoriais que, sendo sempre discutíveis, contribuem para desenhar a imagem de um jornal.
Em causa estão, essencialmente, diferenças de opinião sobre dois pontos, cujo debate poderá contribuir para clarificar orientações futuras. Deve a 'regra do Palácio Foz' ser entendida como uma manifestação de 'censura à imprensa'? Deve a reacção a esse condicionamento do trabalho jornalístico ser o boicote informativo?
Sobre o primeiro ponto, Manuel Carvalho explica por que mantém a expressão 'censura prévia' para classificar este caso: 'Num evento que é anunciado como o ponto de partida de um debate de solene interesse nacional, há na exigência de que haja restrições à veiculação das opiniões aí manifestadas um esforço de garantir que partes ou o todo de algumas intervenções pudessem ser mantidas sob reserva, decisão que ficava sob a alçada dos intervenientes. Eram eles, em última instância, e não os jornalistas, quem tinha o poder de dizer o que devia ou não devia ser tornado público. Eram eles quem tinha o poder de censurar previamente o que podia, ou não podia, ser tratado jornalisticamente, através da imposição de um mecanismo que, na prática, tinha o poder de seleccionar toda a informação ali produzida'.
Assim, na sua perspectiva, 'ao exigir a autorização ex ante do uso de qualquer citação, a organização do evento estava a promover a prática de censura'. Ora, conclui, 'encaro sempre estas tentativas de cerceamento de direitos fundamentais com o aviso de Brecht presente: primeiro é a autorização prévia, depois a proibição de noticiar alguns assuntos, depois…'.
Eu admito que uma tentativa canhestra, como foi esta, de condicionar a liberdade de informação pode sugerir que os seus autores conviveriam bem com um regime de censura ou 'exame prévio'. Porém, o conceito de censura à imprensa tem um significado histórico preciso, que não deve ser banalizado: implica a actividade de censores que cortam ou alteram peças jornalísticas para impedir a livre publicação do que se escreveu, ou que proíbem a abordagem de certos temas ou a menção de determinados factos. Como não era nem podia ser esse o caso, parece-me mais adequado invocar aqui, não a adaptação do sempre inspirador aviso de Brecht, mas a fábula do rapaz e do lobo: de tanta vez agitarmos o fantasma da censura, corremos o risco de não a reconhecer quando precisarmos de o fazer.
Na verdade, a organização da conferência não tinha 'o poder de seleccionar toda a informação ali produzida', numa reunião que ela própria quis aberta à presença da imprensa, e menos ainda de controlar a informação produzida. Tanto não tinha que não teve: outros meios de comunicação relataram os debates. Ainda que o quisesse, não estava ao seu alcance impor o silenciamento do que ali fosse dito e de por quem fosse dito. Essa é a diferença, e é enorme, para com um regime de censura. Valerá a pena recordar que, mesmo sob um tal regime (o 'exame prévio' da ditadura), o melhor jornalismo não respondia com boicotes. Sabia que a sua missão era informar os leitores e esforçava-se por fazê-lo, tentando, é certo que geralmente sem êxito, fintar os censores.
Neste caso o PÚBLICO optou pelo que classifiquei de boicote informativo, expressão que Manuel Carvalho considera desapropriada ('Não houve essa deliberação. O que houve foi a recusa em aceitar as regras. Não as aceitando, entendeu-se que não as devíamos violar'). O director adjunto justifica depois a opção tomada argumentando que não estavam em causa 'opiniões ou o anúncio de alicerces preliminares de medidas políticas por parte de membros do Governo, que temos de escrutinar com permanência', e que por isso deveriam 'ser noticiadas, custasse o que custasse'.
'O que estava em causa', sublinha, 'eram ideias de diferentes personalidades da dita sociedade civil sobre a reforma do Estado. Era, portanto, matéria de opinião. E a opinião ou se exerce livre por inteiro, ou tem um valor informativo dúbio. Se acharmos, como achamos, que o debate público é fundamental, se nos inscrevemos na primeira linha dos que o querem instigar e desenvolver, não podemos ter sobre este tipo de eventos atitudes cinzentas. Somos contra, ponto final'. 'A expressão de opiniões de cidadãos numa sociedade democrática' — conclui Manuel Carvalho — 'só tem valor se for exercida sem constrangimentos. As opiniões que interessam ao jornalismo são as que são lançadas e debatidas no espaço público, e não as que se desenvolvem em espaços semi-privados, como era o caso'.
Pelo meu lado, embora admita que possam interessar ao jornalismo opiniões debatidas em 'espaços semi-privados' (dependerá da sua relevância, na óptica do interesse público), subscrevo naturalmente a ideia de que é a sua expressão livre e responsável no espaço do debate democrático que deve ser valorizada pela imprensa. Por isso me tenho insurgido contra a banalização de fontes anónimas, a atribuição de opiniões a pessoas não identificadas ou os comentários sob anonimato que são permitidos, por exemplo, no site deste jornal. Nada me permite concluir, no entanto, que os intervenientes na conferência em causa, aberta à presença de jornalistas, tenham falado de forma 'constrangida'.
Perante o duplo dever de protestar contra a 'regra do Palácio Foz' e de informar os leitores, várias soluções eram possíveis. O que impediria, por exemplo, que jornalistas e responsáveis editoriais decidissem ignorar a tentativa de condicionar o seu trabalho (através de uma regra ilegítima de que nem fora dado conhecimento prévio ao jornal) e relatassem, como profissionalmente melhor entendessem, o que ali se debateu e quem defendeu o quê? O que sucederia, afinal, se as declarações dos conferencistas fossem citadas e devidamente atribuídas aos seus autores, como aliás fizeram outros órgãos de comunicação? Na minha opinião, uma discussão pública clarificadora sobre a liberdade de informação e o estatuto dos jornalistas.
Existindo à partida uma expectativa de interesse público da conferência, face à importância dos temas a discutir, no actual quadro político, e ao facto de o governo a ter anunciado como destinada a ouvir opiniões externas com vista à definição de políticas cruciais, impunha-se, como se fez, o seu agendamento jornalístico. A decisão de noticiar os debates, essa dependeria naturalmente de tal expectativa ser ou não confirmada — uma opção que compete aos responsáveis editoriais, devendo ser tomada com base na avaliação do interesse público da matéria informativa, para o que teria sido útil assistir aos trabalhos.
Do que foi publicado em outros meios, é possível concluir que surgiram na conferência opiniões e propostas sobre as quais, em situação 'normal', o PÚBLICO não deixaria de informar os seus leitores. Acresce que, tendo 'boicotado' as sessões de debate, o jornal não estará nas melhores condições para escrutinar as conclusões da conferência, se porventura estas se revelarem — como é legítimo temer face à tentativa de limitar a cobertura jornalística — enviesadas ao serviço de objectivos de propaganda.
Aceitar a 'regra do Palácio Foz' significaria entregar aos seus organizadores um inaceitável poder editorial sobre as notícias a que a iniciativa desse origem. Porém, tendo em conta o apetite que os organizadores revelaram pelo controlo da informação, valerá a pena interrogarmo-nos se a resposta mais eficaz, e até mais pedagógica, não teria sido a que fizesse acompanhar a obrigatória denúncia dessa 'regra' pela demonstração da sua inconsequência e insucesso, informando os leitores com isenção sobre o que de relevante houvesse a noticiar sobre os debates.
O PÚBLICO escolheu o boicote informativo. Poderá haver situações em que esse seja, no plano simbólico, o recurso mais digno face a uma ameaça consistente à liberdade de informação. Neste caso, perante os factos que foram divulgados, julgo que teria sido mais acertado protestar… e informar.”