Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Suzana Singer

“Cegos são ‘puxadores de cachorro’. Surdos têm o ‘ouvidor de novela avariado’. Quem sofre de paralisia cerebral ‘baba um pouquinho pelo canto da boca’. No geral, pessoas com deficiências são os ‘mal-acabados’.

Quem escreve desse jeito escrachado é Jairo Marques, 38, repórter, colunista de ‘Cotidiano’ e autor do blog ‘Assim como você’, hospedado no site da Folha (assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br).

Se não fosse ele mesmo cadeirante, Jairo provavelmente já teria sofrido uma avalanche de críticas, que só surgiram agora, quando ele escreveu sobre autismo.

No último dia 21, o jornalista comentou no blog uma nova lei que estende aos autistas os direitos das pessoas com deficiência -inclusão em cotas de empregos, atendimento preferencial em bancos, matrícula em escolas regulares etc.

Jairo saudou a lei, levantou algumas dúvidas sobre a sua aplicação, mas o que pegou foi ter chamado os autistas de ‘povão tchubirube’.

O ‘post’ gerou 440 comentários no blog e discussões acaloradas no Facebook. A maioria está indignada com os ‘apelidos’ usados pelo jornalista. ‘O mais difícil é conquistar o respeito das pessoas, combater estigmas. A coluna usa termos vulgares só para chocar, é inadmissível num jornal como a Folha’, diz a pedagoga Luciana Nassif Cavichioli, 41, mãe de uma menina autista de 10 anos.

Em defesa de Jairo, a esteticista Ana Maria Elias Braga, 44, mãe de gêmeos autistas de 18 anos, rebate: ‘Com o tempo, os pais de crianças com autismo parecem doentes. É como se eles também perdessem a capacidade de entender ironias, metáforas. Não conseguem mais levar nada com leveza’.

Isso não significa que Ana Maria aceite qualquer coisa. Ela processou a MTV, há dois anos, por causa do programa ‘Casa dos Autistas’, de Marcelo Adnet. ‘Aquilo sim era horroroso’, diz.

Em resposta à crítica de Luciana, a direção da Folha ressalta a importância de garantir a liberdade dos colunistas. ‘O jornal entende que o assunto é sensível e tenta tratá-lo com a delicadeza que ele merece. Mas os colunistas são livres para expressarem suas opiniões, na linguagem que os leitores se acostumaram. No caso do Jairo, leveza e descontração são a marca registrada de suas intervenções’, diz o editor-executivo Sérgio Dávila.

Mas precisa ser tão debochado? Jairo diz que transgride e usa o humor para atrair leitores que não vivem a realidade da deficiência. ‘Nunca quis escrever apenas para os que já são militantes da causa.’

O próprio Jairo já passou um pito na presidente Dilma quando ela, recentemente, falou em ‘portador de deficiência’ em vez de ‘pessoa com deficiência’. Em texto de dezembro, ele defendeu o politicamente correto, lembrando que não se trata de uma criação de ‘um bando de chatos e desocupados que resolveu encher a paciência dos outros’.

Soa contraditório, mas não é. Seria injustificável usar, nas reportagens, os termos adotados pelo colunista. Seria difícil defender essa linguagem até em artigos de outros colunistas. A diferença é que Jairo fala de cátedra.

Vítima de paralisia infantil desde os nove meses, sempre viveu como ‘pessoa com deficiência’, o que lhe dá a oportunidade de tratar o tema de igual para igual.

O escritor Marcelo Rubens Paiva, 53, aprova a fórmula adotada por ele. ‘Ajuda a combater o preconceito e mostra que nós, deficientes, temos humor, rimos da própria condição. Se judeus são os melhores contadores de piadas sobre judeus, se árabes gozam árabes, por que os deficientes não podem zoar com outros deficientes?’, diz.

Alguns amigos do escritor o chamam de ‘alê’, corruptela de ‘aleijado’, e ele acha simpático. ‘Nos encontros e congressos de deficientes, o que rola de piada e gozação deixa ruborizada a patrulha do politicamente correto. Rir é o melhor remédio, já se disse por aí.’

Embora possa ferir os mais sensíveis, o trabalho pioneiro de Jairo Marques tem ajudado a revelar um pouco mais do mundo das pessoas com deficiência no Brasil. Ou, como diria ele, dos ‘estropiados’, ‘lesadinhos’, ‘chumbados’, ‘lelés’…”