Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“O tra­ta­mento edi­to­rial de dados esta­tís­ti­cos e o ângulo a pri­vi­le­giar na divul­ga­ção de núme­ros que retra­tam uma rea­li­dade mul­ti­fa­ce­tada é um dos ter­re­nos em que o jor­na­lismo de qua­li­dade deve dei­xar a sua marca. O caso de que hoje me ocupo — a man­chete da edi­ção do pas­sado dia 21 de Janeiro, que vários lei­to­res cri­ti­ca­ram, por enten­de­rem que dava ‘um retrato dis­tor­cido da rea­li­dade’ no que se refere à cri­a­ção e encer­ra­mento de empre­sas no país — é pra­ti­ca­mente idên­tico ao que deu ori­gem a um texto aqui publi­cado em 28 de Outu­bro do ano pas­sado. O tema é o mesmo, e as crí­ti­cas são do mesmo teor. Ainda assim, julgo que valerá a pena par­ti­lhar algu­mas refle­xões sobre as recla­ma­ções que me che­ga­ram, já que se tra­tou, desta vez, do assunto esco­lhido para o título prin­ci­pal da pri­meira página.

O que nesse título se escre­veu foi o seguinte: 28 mil empre­sas fecham e cri­a­ção de novos negó­cios cai em 2012. Na peça noti­ci­osa para que esta frase reme­tia divulgavam-se núme­ros for­ne­ci­dos pelo Minis­té­rio da Jus­tiça sobre a cri­a­ção e a extin­ção de empre­sas ao longo do ano pas­sado e procedia-se à com­pa­ra­ção des­sas cifras com o que nesse domí­nio ocor­rera nos anos ante­ri­o­res. O objecto da notí­cia de Outu­bro pas­sado fora exac­ta­mente o mesmo, com a dife­rença de que então se tra­tava de noti­ciar os dados conhe­ci­dos rela­ti­va­mente ao período de Janeiro a Setem­bro de 2012. A com­pa­ra­ção com o título então esco­lhido (Já fecha­ram 14 mil empre­sas este ano…) aponta para o agra­va­mento do fenó­meno nos últi­mos meses.

Os pós-títulos da man­chete de 21 de Janeiro des­ta­ca­vam ainda três outros aspec­tos da rea­li­dade noti­ci­ada: Falên­cias reais aumen­ta­ram quase 10% face a 2011; O saldo ainda é favo­rá­vel à cri­a­ção de empre­sas, mas com pouco impacto no emprego; Há mais negó­cios a sur­gir na agri­cul­tura e menos nos ser­vi­ços. Todas estas afir­ma­ções se encon­tra­vam devi­da­mente sus­ten­ta­das na infor­ma­ção publi­cada no inte­rior do jor­nal, onde um grá­fico que ilus­trava a notí­cia per­mi­tia reter, entre outras, as seguin­tes con­clu­sões esta­tís­ti­cas: o número de empre­sas extin­tas des­cera de 33.758 em 2011 para 27. 683 em 2012; o número de novas empre­sas dimi­nuíra de 33.163 cri­a­das em 2011 para 29.311 no ano pas­sado; o saldo entre encer­ra­men­tos e aber­tu­ras de negó­cios mostrava-se posi­tivo (mais 1.628) em 2012, ao con­trá­rio do que suce­dera no ano anterior.

É prin­ci­pal­mente esse ‘saldo posi­tivo’ que os lei­to­res que cri­ti­ca­ram a man­chete invo­cam para argu­men­tar que deve­ria ter sido esse o ângulo infor­ma­tivo pri­vi­le­gi­ado nos títu­los, e não o número de empre­sas fecha­das e a queda na cri­a­ção de novos negó­cios. ‘Acho inad­mis­sí­vel o título de pri­meira página, onde mais uma vez se des­mo­ra­liza o país (…), quando na pág. 16 o qua­dro mos­tra uma cri­a­ção líquida de 1628 [empre­sas]’, escre­veu o lei­tor Ricardo d’Azevedo, que já cri­ti­cara a mesma opção edi­to­rial em Outu­bro pas­sado. ‘Parece-me que o PÚBLICO não con­se­gue domi­nar essa ânsia de trans­mi­tir um retrato dis­tor­cido da rea­li­dade (…). Vol­tou a esquecer-se de noti­ciar, nas mes­mas gran­des paran­go­nas da pri­meira página, que foram entre­tanto cri­a­das 29.311 empre­sas’, comenta o lei­tor Fer­nando San­tos. Subli­nhando tam­bém o ‘saldo posi­tivo’ entre nas­ci­mento e morte de pro­jec­tos empre­sa­ri­ais, o lei­tor Ricardo Alves diz ver no ‘cri­té­rio edi­to­rial’ que atri­bui à direc­ção do PÚBLICO motivo para afir­mar que ‘não sur­pre­ende a esco­lha (…) do des­ta­que’ da capa.

A autora da notí­cia, Raquel Almeida Cor­reia, apre­senta dife­ren­tes argu­men­tos em defesa do enfo­que esco­lhido. Des­taco o que me parece mais rele­vante: ‘Importa dizer que para a esco­lha deste ângulo tam­bém con­tri­buiu o facto de os cha­ma­dos fechos ‘reais’, que reflec­tem de uma forma mais autên­tica as difi­cul­da­des que o tecido empre­sa­rial por­tu­guês atra­vessa, terem aumen­tado 9,4% face a 2011″. Por fechos ‘reais’ deve entender-se, con­forme explica a jor­na­lista, o número de falên­cias que ver­da­dei­ra­mente ocor­re­ram ao longo do ano, que se dis­tin­guem das ‘dis­so­lu­ções admi­nis­tra­ti­vas, efec­tu­a­das pelos ser­vi­ços quando as empre­sas estão inac­ti­vas mas ainda cons­tam nos ficheiros’.

De facto, como ficava claro pela lei­tura da peça — e era des­ta­cado no pós-título da man­chete —, das cerca de 28.000 empre­sas desa­pa­re­ci­das do cadas­tro eco­nó­mico no ano pas­sado, mais de 16.600 cor­res­pon­diam a extin­ções real­mente ocor­ri­das em 2012, o que repre­sen­tou uma subida de quase 10% em rela­ção ao ano ante­rior. Acon­tece ainda que, como tam­bém se expli­cava na notí­cia, a lim­peza de fichei­ros, ini­ci­ada em 2008 no âmbito do pro­grama Sim­plex, está já perto de se encon­trar con­cluída, levando a que o peso dos encer­ra­men­tos ‘admi­nis­tra­ti­vos’ de empre­sas inac­ti­vas tenha já sido pro­por­ci­o­nal­mente muito menor (como se escre­veu, ‘caí­ram 40,4% no ano pas­sado’, em rela­ção a 2011).

Por isso, escreve Raquel Almeida Cor­reia, o que se trans­mi­tiu aos lei­to­res não foi um ‘retrato dis­tor­cido da rea­li­dade’, mas sim ‘um retrato do país, num momento em que mais empre­sas encer­ram do que em anos ante­ri­o­res (sem que seja por via admi­nis­tra­tiva), e em que a cri­a­ção de novos negó­cios, ape­sar de supe­rar os fechos, está a cair e a mostrar-se insu­fi­ci­ente para colo­car um tra­vão ao desem­prego’. Nesse sen­tido aponta outra con­clu­são extraída dos núme­ros ofi­ci­ais: ‘Verificou-se em 2012 uma queda de 11,6% na aber­tura de novos negó­cios, quando em 2011 houve uma subida de 24,9%’.

A lei­tura iso­lada de alguns núme­ros pode, como se vê, con­du­zir a con­clu­sões apa­ren­te­mente dis­cre­pan­tes, que ten­de­rão a ser valo­ri­za­das de acordo com a pers­pec­tiva (mais opti­mista ou mais pes­si­mista) de cada lei­tor sobre a evo­lu­ção eco­nó­mica do país. Neste caso, a con­si­de­ra­ção de todos os dados dis­po­ní­veis mos­tra que a opção de des­ta­car o apa­rente ‘saldo posi­tivo’ resul­tante da apre­sen­ta­ção em bruto dos núme­ros ofi­ci­ais para retra­tar essa evo­lu­ção teria redun­dado, afi­nal, num erro informativo.

Na ver­dade, ‘os núme­ros sobre o fecho de empre­sas e a queda na cri­a­ção de novos negó­cios reflec­tem o abran­da­mento da eco­no­mia’, como cons­tata o direc­tor adjunto do PÚBLICO Miguel Gas­par, que escla­rece que ‘a direc­ção do jor­nal acom­pa­nha a argu­men­ta­ção da autora da notí­cia’ e revela que ‘a esco­lha do título de capa e a selec­ção deste tema para man­chete foram acom­pa­nha­das por um debate interno’. Esse debate con­du­ziu à opção pela ideia pri­vi­le­gi­ada na capa (‘o número de empre­sas que fecham e não o saldo entre empre­sas que fecham e empre­sas que abrem’), o que acon­te­ceu ‘pre­ci­sa­mente por se ter con­cluído’ que esse outro ângulo ‘intro­du­zi­ria, ele sim, uma visão fala­ci­osa da realidade’.

Subli­nhando que ‘as notí­cias e as esco­lhas edi­to­ri­ais do PÚBLICO não têm por cri­té­rio ‘mora­li­zar’ ou ‘des­mo­ra­li­zar’ o país, Miguel Gas­par con­clui: ‘Neste caso, verifica-se que um con­junto de dados esta­tís­ti­cos foi tra­ba­lhado jor­na­lis­ti­ca­mente de forma cui­dada e com a con­tex­tu­a­li­za­ção ade­quada. Sem essa capa­ci­dade, o jor­nal teria ape­nas feito uma lei­tura super­fi­cial dos dados, aí sim dis­tor­cendo, mesmo que invo­lun­ta­ri­a­mente ou por omis­são, a rea­li­dade con­creta. O valor que é urgente real­çar é a capa­ci­dade de, atra­vés de jor­na­lis­tas espe­ci­a­li­za­das, con­se­guir ana­li­sar esta­tís­ti­cas para além do óbvio’.

Por mim, subs­crevo intei­ra­mente esta con­clu­são, o que me dis­pensa de repe­tir argu­men­tos que sobre este tema aqui ali­nhei há alguns meses. Na minha opi­nião, os lei­to­res acima cita­dos não têm razão quando suge­rem que a man­chete do pas­sado dia 21 seria ten­den­ci­osa. O PÚBLICO fez muito bem em não se limi­tar a trans­cre­ver buro­cra­ti­ca­mente os valo­res glo­bais das esta­tís­ti­cas ofi­ci­ais e em apro­fun­dar a lei­tura dos núme­ros divul­ga­dos, con­se­guindo assim trans­mi­tir mais fiel­mente a trans­for­ma­ção real­mente ocor­rida na pai­sa­gem empre­sa­rial. Não houve aqui envi­e­sa­mento infor­ma­tivo. Houve, pelo con­trá­rio, um exem­plo de bom jornalismo.

Ainda assim, a repe­ti­ção das crí­ti­cas de lei­to­res a um tra­ba­lho infor­ma­tivo que por sua vez repete no essen­cial o que sobre o mesmo tema se escre­vera três meses antes — as mes­mas opções de título, as mes­mas solu­ções info­grá­fi­cas, uma estru­tura infor­ma­tiva e grá­fica em tudo seme­lhante — sus­cita uma refle­xão sobre outras face­tas que con­tri­buem para a qua­li­dade jor­na­lís­tica, como a cla­reza e a diver­si­dade de abordagens.

Ter-se-ia ganho em cla­reza, por exem­plo, apre­sen­tando um grá­fico em que não se igno­rasse a dis­tin­ção entre o número de falên­cias reais e o que resulta da sim­ples lim­peza de fichei­ros, evi­tando assim que se repe­tis­sem as lei­tu­ras equí­vo­cas que o tra­ba­lho publi­cada em Outu­bro já pro­vo­cara. Por outro lado, o sig­ni­fi­cado dos núme­ros divul­ga­dos tornar-se-ia mais nítido se tivesse sido dada maior visi­bi­li­dade nos títu­los ao dado mais reve­la­dor da situ­a­ção des­crita: o cres­ci­mento real do número de falên­cias. Final­mente, a sem­pre dese­já­vel diver­si­dade de abor­da­gens infor­ma­ti­vas deve­ria ter acon­se­lhado o apro­fun­da­mento de algu­mas pis­tas pro­por­ci­o­na­das pelos núme­ros ofi­ci­ais, como por exem­plo a que aponta para o fenó­meno, con­tra a cor­rente, do notó­rio cres­ci­mento da cri­a­ção de empre­sas no sec­tor agrícola.”