O iluminismo é o principal tema de estudo do historiador americano Robert Darnton, 73, autor de vários títulos sobre como a difusão do conhecimento alimentou revoluções no século 18. É de certa forma inspirado nos ideais dos enciclopedistas que Darnton comanda ele também uma revolução.
Como diretor do imenso complexo de bibliotecas da Universidade Harvard, ele encabeça a criação da DPLA (Digital Public Library of America, sigla para biblioteca pública digital americana), que a partir de abril vai reunir e compartilhar gratuitamente na internet o acervo e obras de milhares de bibliotecas e universidades do país.
A DPLA é a resposta de Darnton e da academia à violação de direitos autorais representada pelo Google Books, que lucra com os livros repassados para a rede.
“Vamos fazer diferente”, diz Darnton, que vê a biblioteca digital como o seu projeto mais ambicioso, algo a ser feito “por séculos”.
O debate em torno do livro na era das tecnologias digitais foi tema de A Questão dos Livros, coletânea de textos que lançou no Brasil em 2010, pela Companhia das Letras. Pela mesma editora, lançou no ano passado O Diabo na Água Benta, no qual aborda outro assunto importante em sua produção intelectual, o jornalismo -em especial, a imprensa clandestina que veiculava insultos e difamações mas também denúncias políticas de um e outro lado do canal da Mancha no século 18.
Irmão e filho de jornalistas, diz manter o encanto pelo ofício, que chegou a exercer nos anos 1960: foi repórter de polícia do The New York Times e teve como colega de editoria um dos maiores jornalistas americanos vivos, Gay Talese -de quem diz não ser muito fã.
Em seu escritório na Wadsworth House, no campus de Harvard, onde recebeu a Folhapara esta entrevista, Darnton comentou algumas obras que retratam a história do jornalismo nos Estados Unidos. Seu pai, Byron Darnton, é citado em várias delas. Ao cobrir para o New York Times a Segunda Guerra Mundial (1939-45) no Pacífico, Byron foi atingido num bombardeio e tornou-se um dos primeiros jornalistas americanos mortos no conflito.
Como estão os preparativos para o lançamento da DPLA, que o sr. anunciou para abril?
Robert Darnton – Não queremos gerar falsas expectativas: de início não teremos todo o material digitalizado. Levará tempo. Teremos 2 milhões de livros liberados pelo domínio público. Vamos começar modestamente. Espero que cresça mais e mais. É um trabalho que deve ser feito por séculos. O início envolve a digitalização de coleções especiais, principalmente as de Harvard. Temos uma enorme quantidade delas nas 73 bibliotecas da universidade, são mais de 18 milhões de volumes. Estamos escaneando livros, manuscritos e fotografias de diferentes assuntos. Há acervos sobre mulheres, imigrações e obras sobre doenças epidêmicas, por exemplo; e há coleções históricas importantes, sobre a era medieval e sobre fotografia, com imagens da Lua e da escravidão, como fotos de escravos que nasceram na África e foram levados para os EUA.
Qual o maior problema que estão encontrando?
R.D. – Montamos um escritório para discutir a questão legal e convidamos pessoas de diferentes instituições, de várias partes do país, que costumam enfrentar o mesmo tipo de problema: o óbvio, dinheiro, além de dúvidas relativas à tecnologia, à organização, ao conteúdo digitalizado e ao público que vai utilizar tudo isso. Mas a questão legal é a mais importante. Não podemos violar os direitos autorais.
A ideia é que a DPLA seja a antítese do Google Books?
R.D.– Exatamente. O Google tenta fazer a mesma coisa, mas sob a lógica do lucro. O Google veio a Harvard para discutir a cópia de livros, quando eles começaram a digitalização. Eles também foram à NYPL (sigla em inglês da Biblioteca Pública de Nova York) e às universidades Stanford, do Michigan e da Califórnia. Harvard disse que eles poderiam digitalizar alguns livros -aqueles em domínio público, não os protegidos por lei. Mas as demais universidades deram permissão para que copiassem o que quisessem, e eles começaram a fazer isso. A Liga dos Autores e a Associação Americana de Editoras foram à Justiça contra a empresa. Após três anos de negociação secreta, fecharam um acordo com o Google, mas a Justiça de Nova York vetou, por entender que infringia a lei de direitos autorais. Vamos fazer diferente, não vamos ganhar dinheiro, queremos apenas servir o público com livros abertos na internet.
Quantas bibliotecas e universidades americanas terão acervos digitalizados na DPLA?
R.D.– Não tenho ainda um número certo, mas são milhares. Todas as bibliotecas abertas para pesquisa no país estarão envolvidas. Mas levará tempo: no início, serão todas as que já têm material digitalizado. Obviamente, todas que tiverem coleções anteriores a 1923 poderão participar.
A DPLA poderá usar livros publicados após 1923, se autores e editoras concordarem com a abertura das obras na internet, gratuitamente?
R.D.– Sim, temos um programa para tentar convencê-los a ceder obras para a base da DPLA. Muitos livros deixam de ser lidos após alguns meses no mercado; eles morrem. Autores, claro, querem leitores. A maioria das obras não tem valor financeiro cinco ou seis anos depois da publicação, e os proprietários dos direitos podem ficar felizes ao ver seus livros disponíveis.
O fato de que as universidades e instituições envolvidas no projeto da DPLA tenham visões diferentes sobre o futuro do livro e sobre como usar a internet não é um problema?
É um problema potencial. Mas há coisas sendo feitas. Há uma coalizão de fundações, que vão nos prover dinheiro, e há as bibliotecas e universidades, que vão disponibilizar os acervos. Estamos concebendo uma estrutura tecnológica que permita harmonizar todas as coleções digitais em um mesmo sistema. Superada essa questão, será o momento de reunir livros e coleções, por exemplo, do Alabama e da Dakota do Norte numa mesma base. É muito trabalho. O site já está funcionando experimentalmente, mas ainda não há nada aberto ao público. No dia 18 de abril vamos lançá-lo com uma cerimônia na Biblioteca Pública de Boston.
O governo norte-americano não apoia a DPLA?
R.D.– Não, é um projeto completamente independente do governo, gerido por fundações privadas. Não há envolvimento público. A principal política, mesmo nas universidades privadas como Harvard, é abrir as bibliotecas para compartilhar conhecimento intelectual ao redor dos Estados Unidos e do mundo. É difícil para as pessoas da Europa ou da América Latina compreenderem, porque muita gente fora dos EUA, para tocar esse tipo de projeto, depende do governo. Mas este é um país em que não devemos ter fé no governo ou no Congresso para prover um bom serviço gratuito ao público.
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[Lucas Ferraz é repórter da Folha de S.Paulo]