Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imagem do monstro no espelho

O debate sobre a criação do TV do Executivo continua fazendo emergir posições interessantes. A que mais tem ganho espaço na mídia comercial é a de oposição à proposta. Aparentemente, o Estado não pode veicular notícias e deve deixar esse encargo às TVs comerciais. Aí começam os problemas, ou melhor, continuam os problemas. O desejo aparente dos opositores da proposta é continuar forçando os governos a se sujeitar às políticas dos veículos comerciais e, certamente, evitar que os recursos que vêm sendo repassados a esses veículos por alguns governos sejam ‘desviados’ para a TV do Executivo.

Vejamos o editorial da Gazeta do Povo, jornal curitibano, edição do dia 25 de março de 2007, que trouxe uma discussão sobre a diferenciação entre o bem e o mal. O bem se chamou ‘TV pública’; o mal ganhou o nome de ‘TV estatal’. A primeira é dotada de virtudes por ser uma TV educativa, a serviço do enobrecimento cultural do cidadão. A segunda é maldosa porque é veículo de promoção de políticos. Em termos claros, a televisão estatal é o demônio; a pública, o anjo da guarda. Simples, não?

O blablablá sobre o bem e o mal

Deve-se lembrar que o jornal citado pertence ao mesmo proprietário de uma rede de televisão comercial, a Rede Paranaense de Televisão (RPC), a que retransmite a programação da Globo carioca e da Globo paulista para o estado do Paraná. Tanto o jornal quanto a rede de televisão têm ganho notoriedade mais por sua prática política militante do que por seus bons dotes jornalísticos. Francamente opositoras ao governador do Paraná, essas entidades nos ofereceram nos últimos anos, notadamente na última campanha eleitoral, provas de que não são sequer imparciais ou objetivas. O problema, nesse caso, não é tomar partido ou posição; é fazer isso e negar que faz.

O alvo do editorial é a TV Educativa do Paraná e todo o blablablá sobre bem e mal; TV pública ou estatal é secundário. A pancada seria dada de qualquer forma, bastando apenas uma oportunidade, e esta foi dada pela discussão nacional acerca da TV do Executivo, desmembrada de modo oportunista por alguns intelectuais orgânicos na oposição entre TV estatal e TV pública.

Limitações intelectuais ou má-fé

Cada vez que se coloca uma questão no âmbito da dualidade maniqueísta, o propositor não somente denuncia claramente seus interesses escusos, como, pior, acaba com má fama, desmoralizado. Tudo parece simples – a única tarefa é descobrir quem é está do lado do bem e quem comunga com o mal. Pior: nem essa empreitada é deixada para o leitor. O mal é entregue de bandeja, e o bem só pode estar do lado oposto, geralmente o que nomeia o mal. É simples, até demais. Tudo é uma questão de trilhar o caminho do bem.

A questão é que não há como qualificar essa simplicidade a não ser usando termos precisos. Todo aquele que propõe pensar seriamente um problema sob os parâmetros simplórios da oposição-estanque bem versus mal, em 100% dos casos, ou o faz por limitações emocionais e intelectuais ou por má-fé. Não há outras opções.

Malevolência da TV estatal

Para o editorial, a gestão da televisão pública ‘deve ser autônoma e independente, sempre voltada à prestação de serviços educativos no seu sentido mais amplo’. Um bom exemplo, segundo o texto, seria a BBC inglesa. Marcelo Tas assina um artigo sobre o tema no caderno ‘Mais!’ da Folha de S. Paulo do mesmo dia, no qual retira a BBC do mundo real e relaciona-a a uma beatitude que nenhum veículo, seja ele público, estatal ou comercial pode almejar. Lendo o artigo, pode-se ter a tentação de comprar uma passagem para o articulista ir a Londres tentar um emprego na hierática BBC, mas voltando à realidade, a certeza é que somente um tíquete para o País das Maravilhas seria adequado, pois a emissora ‘pública’ tão louvada serve, também, de veículo de propaganda para políticos, como o foi, e aparentemente continua sendo, no caso da invasão do Iraque.

Voltando ao editorial, lemos que a televisão estatal, ao contrário, ‘caracteriza-se pelo financiamento exclusivo do Erário e pelo férreo controle imposto pelas estruturas governamentais de propaganda – comprometidas, portanto, com o fim de promover os feitos, de defender as posições políticas e de cultuar a personalidade dos que momentaneamente detêm o poder’. Para melhor caracterizar a malevolência oculta por detrás da televisão estatal, o editorialista lembra Hitler, o stalinismo, Fidel Castro, Hugo Chávez e outros porta-vozes de um certo poder maligno. ‘Clara está’, diz o editorial, ‘a diferença (…) entre o que é o bem e o que é o mal.’ Nada contra o financiamento do Estado a TVs comerciais, nada a opor ao férreo controle feito pelos anunciantes, é claro. A promoção de feitos, a defesa de posições políticas ou o culto de personalidade dos que momentaneamente ocupam o poder não foram atitudes maléficas quando, por exemplo, se relacionaram ao governo FHC ou ao governo Jaime Lerner.

Versão única versus o outro lado

A fórmula ignóbil de separar o bem e o mal foi usada pelo mesmo Hitler e por Stalin – ambos citados no editorial como maus. Logo, há alguma identidade entre o editorialista e seus maus exemplos. Mas também foi utilizada por presidentes estadunidenses, entre os quais o neoliberal Ronald Reagan, e ainda o é pelo ‘trombadinha eleitoral’ Bush Júnior (o excelente termo é de José Arbex Jr.). Estes bons exemplos não ocorreram ao editorialista. Por algum motivo, escaparam à sua atenção. Já os ‘malvados’ Hugo Chávez, Fidel Castro e o alvo direto do editorial, Roberto Requião, todos opositores do ‘bem’ da pax estadunidense, não costumam usar essa fórmula de modo tão papalvo, mas são lembrados em menções desonrosas.

Se tivermos que pôr a questão em dois pólos, bem podemos afirmar que há uma oposição entre a ‘versão única’, ditada pela grande imprensa, que responde, por sua vez, à elite estadunidense – aquela que invade países e mata civis, incluindo crianças, para lhes roubar o petróleo – e uma outra versão dos fatos – defendida por Castro, Chávez e Requião – que, até o momento, não cometeram nenhum ato equiparável às atrocidades cometidas pela citada elite e ocultados pela imprensa a ela subserviente.

Consumidores, não cidadãos

Note-se, então, que todos os adjetivos usados pelo editorialista para designar o bem e o mal podem ser postos no espelho. Se assim o fizermos, vamos perceber que tudo aquilo que é dito do mal – atributos dos defensores da TV estatal – podem ser assumidos sem reparos pelo que o editorial diz ser o bem.

Não é possível entender como a RPC, por exemplo, ‘faz bem à democracia’, pois é uma emissora que nada tem de educativa, transmitindo basicamente manifestos políticos não declarados, além do entretenimento banal e indigente produzido para consumidores, não para cidadãos. E, embora a democracia seja pau para toda obra na defesa do discurso da hegemonia do Mercado, não pode ser considerada como idealmente sustentada por consumidores beócios.

O caminho do bem

Já a TV Educativa do Paraná pelo menos tem uma programação educativa, segundo as matérias da própria Gazeta do Povo. É só pesquisar para constatar – e não é preciso ir muito longe. O editorial saiu no dia 25 de março, como dito, mas, um dia depois (26/03), um professor ouvido pelo suplemento chamado ‘Caderno do Estudante’, da Gazeta do Povo, dá como ‘dica especial’ para a formação intelectual dos jovens vestibulandos dois programas criados e transmitidos pela Educativa paranaense. Entre eles, o programa Eureka, que já foi objeto de outra matéria elogiosa do próprio jornal há alguns meses. Como fica isso? Alguém esqueceu de avisar o professor e o editor do suplemento que a TV estatal do Paraná não transmite programas educativos…

Um canal de televisão, e isso deve ser muito bem lembrado, é uma concessão para o fornecimento de serviços de interesse público a uma determinada população. Em si, portanto, é uma TV pública. Por que a RPC não cumpre a sua função pública? Talvez esse seja o caminho do bem.

As monstruosidades apontadas pelo editorialista, ele as viu no espelho. Não há outra explicação possível. Todos que tentam opor o bem ao mal acabam confundindo seus próprios males e perversões com as dos outros.

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Psicólogo, jornalista, mestre em Comunicação e Cultura