Deu no Ancelmo: França, o livreiro dos jornalistas, se aposentou. Dias depois Arthur Dapieve lhe dedicou uma crônica (http://glo.bo/WkvD8P) que ecoou nas memórias recentes e antigas dos que o conheceram, e emocionou leitores que jamais o viram. Foi o gancho para uma pergunta: o que tem o França a dizer sobre os 40 anos durante os quais circulou pelos principais jornais, revistas, TVs e rádios da cidade?
Testemunha privilegiada da vida nas redações, considerado uma espécie de funcionário honorífico, a ponto de participar dos bolões esportivos, Carlos Alberto França, de 73 anos, paraense de Belém, recebe pela primeira vez uma equipe de reportagem no final de tarde chuvoso da última terça-feira em sua casa de dois andares, na Pavuna. O temporal sobre as telhas dificulta que a voz, hoje frágil, chegue incólume ao gravador.
– Para entrar no Jornal do Brasil, que ainda funcionava na Avenida Rio Branco, tinha que ir de terno, como os jornalistas. Às vezes, me expulsavam na portaria. No dia seguinte, eu voltava sem livros, mas com folhetos escondidos no paletó, e dizia que ia só bater papo com o pessoal.
A presença do livreiro de mesa em mesa, recolhendo listas, oferecendo títulos “sob medida” para o cliente, recolhendo dinheiro, acabou chegando ao dono do JB, Manoel Francisco do Nascimento Brito, que baixou ordem para barrar o tal do França. Temeroso de perder o fornecedor e já amigo, o analista político Villas-Bôas Corrêa intercedeu: “Nesse eu confio. Vai trabalhar na redação e na rádio”.
– Vender qualquer produto numa redação de jornal era tabu, e ainda é. Claro que se vendia de tudo na encolha: doces, cigarro, bebida, sutiã, pulseiras. Mas, oficialmente, com salvo-conduto, eu fui o primeiro e único.
Cinzeiros sujos decoravam as mesas das redações enfumaçadas, e um jornalista de porre era algo natural e, muitas vezes, até produtivo.
– Um repórter avisou que ia parar de fumar para poder comprar livros. Já o Zózimo fumava o dia inteiro e tinha uísque numa geladeirinha, que me oferecia. Mas não comprava nada.
Entre os que compravam muito e os que não compravam, os relutantes.
– Nelson Rodrigues chegava na redação e jogava o paletó na cadeira com aquele jeito dele. Eu perguntava se ele queria alguma coisa, um livrinho bom. Ele respondia com outra pergunta: “Mas é livro que dá pra ler?” E ficava de papo. Com o tempo, percebi pelas conversas a sua mudança ideológica.
Com prestigio em alta, França passou a frequentar outros jornais e revistas: O Globo, Tribuna da Imprensa, Última Hora, Cruzeiro, Manchete, Veja e, mais tarde, televisões. Nas horas vagas, ia a universidades, tribunais e repartições. Nos ápices da exceção política, recebia encomendas diretamente das carceragens da ditadura.
– Um dia recebi uma ligação do Maurício Azedo ( hoje presidente da Associação Brasileira de Imprensa, ABI ), dizendo: “França, estou na cadeia”. Eu respondi que não podia soltá-lo, mas levar livro era comigo mesmo. E fui lá, no xilindró, com a bolsa cheia.
Nos tempos mais amenos da redemocratização, foi vendo novas gerações chegarem ao jornalismo.
– Tinha um rapaz que ia ser muito conhecido depois, Ali Kamel, que trabalhava na rádio Jornal do Brasil e me comprou a integral de Freud. É cliente até hoje.
A proliferação de obras completas em volumes menores, como as coleções da Nova Aguilar, foi um motor de conhecimento que caiu nas redações como uma revolução tecnológica
– O pessoal morava em apartamentos pequenos, não tinha lugar para guardar os 30 e tantos volumes da coleção Jackson do Machado de Assis. Eu chegava com três volumes, papel bíblia e letra pequena. Vendia tudo. Hoje é mais difícil: os livros estão caros, os focas atuais não gostam tanto de ler e as pessoas têm menos tempo mesmo de ir às livrarias.
Na última década, França presenciou o baque: a internet com preços mais baixos, muitos distribuidores desaparecendo, menor interesse pela leitura de clássicos. Mas continuou a bater seu tambor: as pessoas já o tinham como amigo e sua capacidade de conseguir rapidamente obras raras, primeiras edições e material de estudo não existentes na rede mantinham sua clientela selecionada.
– O Toninho (Antonio Nascimento), da editoria de esportes do Globo, era um comprador compulsivo, talvez o maior comprador que já tive. Entregava uma lista com dez títulos e dizia: “Se vira”. Eu ia à luta com prazer. Ironicamente, o livro que mais vendi foi de um jornalista: Cidade partida, de Zuenir Ventura.
O que pesou, mesmo, foram o coração e as pernas: problemas de saúde fizeram da bolsa de livros um fardo. Durante um período, chegou a dividir as vendas entre livros e pães de mel caseiros, feitos pela esposa, Carmela, com quem é casado há 47 anos.
– Mànya Millen, editora do “Prosa e Verso”, comprava dezenas e dizia que era tudo para o marido, o Dapieve.
Pães de mel na prateleira
No momento, ele tenta convencer Carmela a substituí-lo nas redações, primeiro reeditando os pães de mel, depois infiltrando uns livros malocados. Carmela não quer saber: tem medo de ser barrada. Mas convida a equipe para uma mesa de pães de salsicha, sanduíches ornamentais, bolo de aipim e suco de caju.
– Não tem cupuaçu? – reage o paraense.
– Cupuaçu não existe mais – responde Carmela, enigmaticamente.
Longe das redações, o que será de França? O que será das redações longe de França?
– Daqui é direto pro cemitério. O único plano, é ler, coisa que pouco fiz, preocupado com o que os outros estavam lendo, ou não.
Na cabeceira, contemporâneos: o último Daniel Galera, Barba ensopada de sangue. E um Garcia Lorca emprestado pelo Antônio Calmon. Na prateleira, uma coleção modesta de clássicos e obras de referência, ao contrário da biblioteca de Carmela, com centenas de volumes espíritas.
– Ela se gaba de ter mais livro do que eu. Fazer o quê? Com três filhos, sem emprego fixo, abandonei meu sonho, que era estudar Medicina e História. Mas nas redações acabei encontrando a minha grande família.
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[Arnaldo Bloch, do Globo]