Este colunista resolveu, há alguns meses, aventurar-se a ir a pé para seu escritório. Por pouco não se arrebentou: numa ladeira, na descida, havia tantos buracos na calçada, provocados por raízes de árvores, descuido, postes que lá estiveram algum dia e há muito foram removidos, sem que o piso fosse consertado, que a melhor alternativa foi andar pela rua, já que para os automóveis o cuidado é maior. Ficou a lição: andar a pé, na cidade de São Paulo, só mesmo nos parques, e olhe lá.
A Veja São Paulo, há poucos dias, deu capa para a buraqueira das calçadas paulistanas. Nem mesmo a Avenida Paulista, recentemente reformada, cartão postal da cidade, estava com o piso totalmente em ordem. Outras vias menos badaladas eram também muito menos conservadas: degraus, buracos, desníveis, pontos em que o calçamento simplesmente foi destruído e ninguém o consertou.
A reportagem está correta? Está. As calçadas estão muito mal cuidadas? Estão. E como é que o pessoal ideológico vê a matéria, considerando-se que nada do que Veja faça estará bom para eles? Claro, claro: Vejinha só fez a matéria porque o prefeito de São Paulo é do PT. Mensagens em blogs amestrados insistem na tese de que a matéria, “subliminarmente”, tenta induzir os leitores a acreditar que a culpa das calçadas ruins é do prefeito petista Fernando Haddad, que assumiu o cargo no início deste ano.
A reportagem fala no prefeito? Não, não fala. Bota a culpa nele? Não, não bota. Os fatos são reais? São – mas não importa. Por que a matéria terá saído agora, e não durante o mandato do prefeito anterior, Gilberto Kassab?
Poderia ter saído, claro: as calçadas já estavam ruins. Talvez ninguém tenha sugerido a pauta; talvez a elaboração do método da análise das calçadas (com notas em vários quesitos) tenha demorado. Por motivos ideológicos não deve ter sido. Há mais de um ano já se sabia que Kassab estava aliado ao PT e a Lula, e se José Serra, com quem tinha um compromisso anterior, não tivesse saído candidato, ele apoiaria quem Lula indicasse para sua sucessão.
O entrosamento de Kassab com o PT foi tão forte que o prefeito Haddad reservou uma área da prefeitura para abrigar os seguidores do ex-prefeito, sem problemas. E Kassab conversa muito com a presidente Dilma a respeito de posições que seus correligionários deverão ocupar no governo federal.
Há outras campanhas circulando na internet que, crescendo um pouco mais, acabarão chamando a atenção dos grandes meios de comunicação. Uma sugere a construção de dutos subterrâneos para a fiação, hoje precariamente pendurada em postes, o que enfeia a cidade e aumenta a probabilidade de acidentes em caso de tempestades; outra propõe que os bancos a ser instalados nas praças tenham encostos, para que os pedestres possam descansar um pouco e olhar a paisagem; outra pretende proteger as árvores do lixo e do entulho, hoje acumulados à sua volta sem que ninguém os recolha, sem que ninguém pense que a árvore, para sobreviver de maneira saudável, precisa de ventilação, de umidade, não de sujeira.
Outras campanhas ainda podem crescer: a que propõe a limpeza dos sinais indicativos de trânsito, hoje praticamente ilegíveis; a da zeladoria das placas de rua, que depois de tanto tempo de descuido estão tortas, trocadas, ou foram simplesmente removidas por vândalos e colecionadores; a da mudança do cuidado das calçadas, hoje a cargo dos moradores (que raramente se preocupam com elas) e que passaria a algum órgão público, deixando aos moradores apenas o custo da manutenção.
Todas essas campanhas são importantes; e o apoio dos grandes meios de comunicação é essencial para que os inquilinos dos palácios municipais se mexam e procurem soluções para os problemas da cidade. Mas como fazer se o engajamento ideológico procura botar defeito em qualquer iniciativa, desde que tenha o apoio de entidades ou meios de comunicação que não apreciam?
Bom, grátis, para poucos
Um jornal de distribuição gratuita, apenas para sócios da Associação Comercial, continua sendo um dos melhores de São Paulo: o Diário do Comércio, legítimo herdeiro do Jornal da Tarde pela criatividade e ousadia, tem dosado com perfeição a notícia, as campanhas (pela redução de impostos, por exemplo), o humor (seus leitores se divertiram com a imagem de Lula com a cartola de Lincoln, depois que nosso ex-presidente se comparou a ele), a opinião. É pena que o Diário do Comércio não tenha circulação aberta, paga: poderia mostrar a muitos concorrentes a diferença que o talento provoca na tiragem. O diretor de Redação Moisés Rabinovici comprovou que, mesmo com orçamento reduzido, é possível manter a boa qualidade do produto. Imagine com um orçamento mais folgado.
O roteiro anunciado
Enquanto isso, o Jornal do Commercio, do Rio, fundado em 1827, o mais antigo veículo dos Diários e Emissoras Associados, patina: demitiu muita gente, fechou o tradicionalíssimo “Caderno de Cultura”, afastou profissionais como seu antigo editor-chefe Aziz Ahmed, cuja coluna “Confidencial” era uma das campeãs de leitura e credibilidade do jornal, perdeu circulação e anunciantes. E agora segue o roteiro de tantas outras publicações: deixa seu simbólico prédio na Rua do Livramento, com projeto de Oscar Niemeyer, e se enfia num galpão em São Cristóvão, levando as rádios Tupi e Nativa. O prédio foi vendido para fazer caixa e o jornal tem seis meses para deixá-lo.
É uma pena – mas como será possível conseguir mais anunciantes e leitores afastando bons profissionais e piorando o produto?
Inexplicáveis aranhas
Apareceram num grande jornal, sem qualquer explicação, sem qualquer nexo com a reportagem ali publicada, vários quadrinhos espalhados pela página, com desenhos de aranhas. Um leitor paciente escreveu ao jornal para saber do que se tratava. E soube que as aranhas espalhadas numa página se referiam a um anúncio publicado em outra (com o qual, a propósito, sua relação era também obscura).
É fantástico, por dois motivos:
a) É regra básica dos grandes veículos impressos separar os anúncios das notícias. O anúncio deve ser claramente identificado como anúncio;
b) Se o leitor não consegue decifrar o anúncio, para que gastar dinheiro com ele? Quem é que vai se sentir tentado a comprar um produto que não sabe qual é, nem quanto custa, nem para que serve?
Em resumo, alguém pagou para não ter nada em troca. E o jornal levou a fama de publicar desenhos esquisitos sem ter motivo para isso.
Notícia, não
Um dos melhores momentos da entrevista de Bradley Manning, o militar que gravou segredos de Estado americanos e os entregou a Julian Assange, dos WikiLeaks, é aquele em que conta que tentou passar as gravações ao Washington Post e ao New York Times, e não conseguiu. Ou o telefone tocava e ninguém atendia, ou quem atendia não mostrava o menor interesse por aquilo que ele dizia.
Estranho? Não. Elio Gaspari costumava dizer que a notícia, quando chega à redação, vem cuidadosa, em silêncio. Abre a porta um pouquinho, vê se ninguém está olhando, e então se esgueira. A notícia sabe que, se alguém perceber que ela está por lá, vai imediatamente chutá-la porta afora, para que não interfira na rotina do trabalho.
Há alguns casos clássicos. Um jornalista brasileiro, famoso, estava em Budapeste, por acaso, quando a União Soviética invadiu a Hungria, em 1956. O mundo jornalístico tentou romper o bloqueio soviético para entrar em Budapeste. O jornalista brasileiro não sabia de nada. Fechou a conta no hotel, pegou um táxi e pediu para ir ao aeroporto. O chofer, chorando, lhe disse que não podia: o aeroporto tinha sido o primeiro lugar ocupado pelas tropas invasoras. O jornalista conta como foi: “Logo comecei a pensar nas maneiras de escapar do inferno húngaro”. Escapou – e não escreveu uma linha sobre a invasão.
Num outro caso famoso, um repórter estava no México quando ocorreu um dos maiores terremotos da história do país. Ele imediatamente pegou o avião para o Brasil. Ao chegar, entrevistado pela TV, disse que tinha saído de lá, onde estava a notícia, porque teria plantão no fim de semana e seus chefes eram muito rigorosos, não admitiriam que faltasse. Admitiriam, claro: já tinham até mandado mensagem para ele, pedindo informações pessoais sobre o terremoto.
Pobre Bradley Manning! Com o furo do ano, que oferecia de graça, e devem até ter dado risada do chato.
A volta dos poetas
Uma agradável surpresa: um livro de boa poesia, escrito por uma professora universitária do Acre, Deise Torres, fã do poeta simbolista Cruz e Souza, e lançado na capital do estado, Rio Branco, num sarau literário dos mais concorridos, com música, dança, apresentações em DVD, declamação de poemas da autora. Nada de São Paulo, Rio, Brasília: Deise Torres teve a ousadia de lançá-lo lá, em sua cidade, onde o concebeu, escreveu e editou – naturalmente, sem qualquer apoio público. E é sem apoio público que já prepara seu segundo livro de poemas. Já tem o material em mãos; agora é só escolher e editar.
O livro agora lançado, Corpo Tenso, Voz Ativa, tem influência do grande Cruz e Souza – poeta maior, catarinense, negro, filho de escravos alforriados, precursor do simbolismo no Brasil. Foi também jornalista e advogado; vencedor num concurso para promotor em Laguna, recusaram-no por ser negro.
Mas a autora vai mais longe, mais além de Cruz e Souza, em versos livres, como aqui:
“Eu quero ser que nem fogo/ Mas não fogo de lareira/ Quero ser fogo que brilha/ Fogo que espalha faísca/ E faz noite clarear”.
O livro (R$ 50) pode ser encomendado pelo e-mail deise28deise@gmail.com, ou pelo telefone (68) 9966-3913.
Um livro-reportagem
Um programa cultural para sexta-feira (8/3): Luiz Octavio de Lima lança, na Livraria Martins Fontes (av. Paulista, 509, SP), Pimenta Neves – uma reportagem, aprofundando o caso do assassínio da jornalista Sandra Gomide por seu ex-namorado, o também jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves. O livro conta os bastidores do crime e a vida de Pimenta, um homem que, até mergulhar numa paixão obsessiva, era considerado pelos amigos uma pessoa tranquila, com foco apenas no trabalho. E um trabalho bem-feito, que o levou ao comando de jornais como a Gazeta Mercantil e O Estado de S.Paulo, e a um alto cargo no Banco Mundial, nos Estados Unidos.
Como…
De um grande jornal (ilustrando e comprovando a tese de que frases grandes são perigosíssimas):
** “Nesse cenário, como se trata de um negócio com margens muito apertadas e os custos de construção aumentam em um ritmo rápido, enquanto os preços estabelecidos para os imóveis não se alteram, muitos empresários viram a rentabilidade dos negócios despencar, ou simplesmente inviáveis”.
Se frase curta nem sempre diz algo, imagine as compridas!
…é…
De um grande portal noticioso, ligado a um jornal de circulação nacional:
Título: “Chuva alaga túnel em SP, derruba árvores e causa problemas em semáforos”
Linha fina: “Cidade tem recorde de calor e tempo seco”
…mesmo?
De outro grande portal noticioso, transcrevendo, com sua concordância própria, as frases do secretário dos Transportes de São Paulo sobre a tromba-d’água que provocou queda de barreiras e interrompeu a Rodovia dos Imigrantes:
** “A Imigrantes atende aos padrões internacional e é considerada uma das mais modernas. A rodovia é seguro e isso não vai se repetir.”
Pelo jeito, os padrões é um só. E a rodovia é macho pra caramba.
É assim mesmo
Da capa da edição digital de um grande jornal, apresentando sua concordância peculiar no noticiário sobre os torcedores presos na Bolívia por suspeita de assassínio:
** “A defesa dos corintianos presos na Bolívia entrarão como novo recurso para tirá-los da prisão após saberem que o menor que acionou o sinalizador que matou o torcedor boliviano será apresentado hoje à Justiça.”
É um esforço maior para confundir o processo do que o tal menor louco para confessar que foi ele que acionou o sinalizador letal.
E eu com isso?
E vamos ao mundo real (ou que deve ser real, porque é o mais comentado de todos). É um mundo em que os curtumes se tornaram desnecessários, de tanto que tanta gente curte tanta coisa.
** “Thiaguinho e Fernanda Souza curtem férias na Califórnia”
** “De camiseta, Murilo Benício curte praia com o filho”
** “Juliana Didone curte praia no Rio de Janeiro”
** “Carla Perez e Xanddy curtem parque nos Estados Unidos”
** “Milena Toscano curte seu espanhol Jay Zan”
Mas o noticiário é bem mais amplo! Nele, gastam-se rios de tinta de impressora (que continua sendo mais cara do que ouro líquido), derrubam-se florestas inteiras (que são devidamente replantadas, para garantir o fluxo do noticiário), consomem-se milhões de kW para divulgá-lo.
** “Celebridades apostam nas unhas básicas”
** “Blake Lively trata sua cachorrinha como se fosse uma criança”
** “Com blusa de oncinha, Guilhermina Guinle almoça com as amigas”
** “Hilary Swank brilha em evento beneficente”
** “Jennifer Lawrence é fotografada segurando cigarro suspeito”
** “Olívia Wilde prestigia evento em São Paulo”
** “Rihanna e Chris Brown planejam cerimônia de casamento bafônica”
A propósito: que será que quer dizer “bafônica”?
O grande título
Nesta semana a guerra é grande: há títulos ótimos, mas dois se destacam no bloco da frente. Vale a pena mostrar o outro, mas concorrer com aqueles dois é covardia.
** “Revista diz que Tori Spelling pretende se”
Não coube, não deu para forçar, ficou pelo meio. Mas deixe de ser fuxiqueiro, caro leitor: para que quer saber o que Tori Spelling pretende se (…)?
Agora, os dois grandes (como escolher o melhor?)
** “Ensaio fotográfico mostra céu do Rio, que faz 448 anos”
Há 449 anos, que haveria na região, no lugar do céu que ainda não existia?
** “Kanye West, sempre modesto: ‘Sou Picasso, sou Walt Disney e sou Steve Jobs’”
Modesto mesmo. No Brasil temos um Lada que pensa que é Lincoln.
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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados Comunicação]