Na seção de comentários do artigo de Sylvia Debossan Moretzsohn, “O disparate sobre os mortos de Santa Maria“, neste Observatório, que analisa uma matéria publicada pelo jornal Estado de S.Paulo, na qual gráficos e cálculos especulam sobre os futuros possíveis – e perdidos – das vítimas do incêndio na boate Kiss, escrevi: “Como afirmou, os números apresentados não representam absolutamente nada, mas penso que sua função não é, por si, representar algo. Sua função é puramente retórica, e seu objetivo é formar opinião”. Sobre isto trata esta reflexão.
Para pensarmos os números em sua função retórica no discurso midiático, precisamos entender como os números operam em nossa percepção, e como tal efeito subjetivo pode polarizar nossa recepção a determinadas notícias e nossa resposta emocional aos eventos apresentados. Entendamos aqui os números como meros quantificadores, que não carregam consigo qualquer significação intrínseca; em outras palavras, se afirmasse “4”, não me faria entender mais do que enunciando “537”. Desprovidos de referências, os números possuem pouco significado para nós.
Entretanto, quando comparados entre si, os números ganham alguma significação mesmo que não apresentem qualquer outro referencial além da própria comparação. Deste modo, se declaro que ganharia um milhão, mas ganhei dez milhões, posso provocar um sentimento de sucesso, mesmo que não evidencie de qual unidade, objeto ou evento esteja falando.
Efeito de significação
Este efeito de significação da comparação opera de maneira tão premente em nós que podemos experimentar, subjetivamente, quantidades numericamente equivalentes de modos bastante diversos, dependendo da forma como nos sejam apresentadas. Em um exemplo aleatório, considerando um país de 200 milhões de habitantes, poderíamos ficar mais apreensivos se informados que 1 milhão de habitantes ainda vivem em condições sub-humanas, do que pelos 0,5% de habitantes vivendo nestas desumanas condições, a despeito dos dois índices referenciarem o mesmo número de pessoas.
Podemos apresentar também, como exemplo oposto deste efeito de significação da comparação, uma “pegadinha” de crianças, que muitos devem lembrar: o que pesa mais, 100 quilos de algodão, ou 100 quilos de chumbo? Pesam o mesmo, obviamente. Está no próprio enunciado. Porém, nossa mente desconsidera os valores idênticos, buscando a comparação em nossa experiência subjetiva com os elementos confrontados, conduzindo-nos, frequentemente, à resposta errada.
Este efeito é utilizado frequentemente pela publicidade nas “liquidações”, nas quais são apresentados dois valores: o maior serve para ancorar nossa percepção, fazendo o produto parecer mais “barato”, quando muitas vezes o valor “menor” cobrado é o valor real do produto.
Retórica no discurso midiático
Afirmei que os números possuem função retórica no discurso midiático, entretanto tal asserção evoca, certamente, algumas questões. Há retórica em comunicação? Pode a retórica, conjunto de técnicas normalmente associadas às atividades jurídicas e políticas, muitas vezes de maneira pejorativa, estar presente nos discursos midiáticos, publicitários ou jornalísticos? Arrisco pensar que sim. A retórica explicita-se nas grandes argumentações, porém atua de maneira mais sutil, nada inócua, nos discursos diários aos quais nos submetemos ou somos submetidos.
Os sofistas perceberam – e Aristóteles formalizou – que os discursos têm grande poder de influência sobre a opinião das pessoas, orientando seus pensamentos e determinando, enfim, seus atos. O filósofo ateniense reconheceu três forças que atuavam sobre a recepção dos discursos, as quais denominou ethos, logos e pathos: a primeira apelando à autoridade do enunciador, a segunda à razão propriamente dita, e a última às emoções do público. Da dinâmica entre esses apelos surge o efeito de convencimento de cada discurso.
No discurso midiático em geral, e nos discursos jornalísticos e publicitários em particular, que se pretendem formadores de opinião, essa dinâmica torna-se bastante própria, e semelhante em ambos os casos. Percebe-se o apagamento do logos; e a valorização do ethos e do pathos. No modelo midiático formador de opinião, não há espaço para a argumentação, pois aquele supõe apenas uma voz: a do enunciador. Neste ponto podemos compreender a necessidade do jornalismo em associar-se ao conceito de verdade. A verdade é absoluta e inquestionável: concede ao ethos sua autoridade máxima e ao logos, seu apagamento definitivo.
Apagado o logos, a dinâmica dos apelos oscila entre o ethos e o pathos. Estes variam com a notícia, com a faixa de audiência e com o efeito desejado. Nas tragédias, por exemplo, busca-se a vítima, a lágrima e o testemunho emocionado para evocar ou provocar paixões no público. Quando há necessidade de maior autoridade, surgem os especialistas, as provas, os documentos e os números.
A dupla função dos números
Os números tornam-se elementos retóricos do discurso midiático, cumprindo uma dupla função: contribuem para o apelo do ethos, por sua exatidão, precisão e pelo efeito de substancialização de uma “verdade” dos fatos; e para o apelo do pathos, pelo efeito de significação da comparação.
Quando determinado discurso necessita autoridade, encontra nos números fortes aliados. Por exemplo: 239 vítimas na recente tragédia, 17.764 vagas de emprego disponíveis, 8,12% de aumento no custo dos aluguéis etc. A precisão dos valores e a quantidade de dígitos endossam a “verdade” do discurso, e cada casa decimal acrescenta credibilidade ao enunciador.
O efeito de significação da comparação, enquanto reforço do pathos, atua de forma menos direta. Este pressupõe uma operação dos números em nossa subjetividade, quando comparados àqueles de nossas crenças, ou pela escolha do formato de apresentação, polarizando nossa percepção sobre o fato que está ali representado – como procurei demonstrar na primeira parte desta reflexão.
Exemplo ideal desta dupla articulação, a matéria criticada por Sylvia Moretzsohn busca sua “verdade” nos cálculos, gráficos e especialistas; e seu apelo às emoções na projeção dos milhares de anos e dos milhões de reais negados para sempre às jovens vítimas do incêndio. Em um “passe de mágica” numérico, buscando a maximização da tragédia, transforma 239 vítimas em 12.412 anos perdidos e 1 bilhão de reais em prejuízos materiais, cometendo no processo o duplo assassinato, agora simbólico, das vítimas fatais da tragédia em Santa Maria – um equivocado ato de “jornalismo”.
Deste modo, quando nos forem apresentados números pelos veículos de comunicação, devemos sempre nos perguntar por que foram ali colocados, com quais números os estamos comparando e com quais estão, ou não, sendo comparados. Pois, como sabemos, uma andorinha não faz verão, mas um milhão de andorinhas… também não. O verão não acontece por causa das andorinhas.
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[André Silveira Sampaio é professor e escritor]