Fui a Cuba pela primeira vez como turista, com a família, em 2004. Fomos a Varadero, um paraíso artificial cheio de turistas branquelos do Leste Europeu, e a Havana, uma cidade linda, com um irresistível ar decadente sublinhado pela irradiante simpatia do povo cubano.
Voltei lá em 2008 com um objetivo: procurar a jovem dissidente cubana Yoani Sanches e escrever um livro sobre ela. Conheci os textos de Yoani pelo seu blog, Generacion Y, e fiquei fascinado pela maneira original, suave e ao mesmo tempo severa com que ela fazia sua narrativa diária de uma sociedade cheia de carências materiais e onde a liberdade de expressão é uma impossibilidade política.
Lembrando Don e Ravel
Notei que havia algo de diferente naquela narrativa. Eram pequenos flashes da vida cotidiana falando de pãezinhos amanhecidos , da falta de manteiga, da procura por ovos, do ambiente opressivo de uma vida cercada por outdoors ufanistas, patrióticos e revolucionários cheios de palavras de ordem mandando as pessoas amarem heróis como Fidel e Che Guevara. Como não lembrar dos “ame-o ou deixe-o” dos tempos da ditadura militar no Brasil e dos hinos ufanistas e cafonas de Dom e Ravel?
Fiquei hospedado no Hotel Havana Livre, o primeiro grande símbolo da vitória dos barbudos de Fidel Castro. Era um Hilton imperialista que foi nacionalizado logo depois do triunfo da revolução.
É um hotel eficiente, que vende o melhor rum e os melhores charutos, e com um de seus restaurantes transformado num grande salão, onde , mediante uma módica quantia, hordas de espanhóis e de alemães uniformizados e ululantes, aos quais me juntei, puderam ver pela TV a final da Eurocopa.
Cada um dos funcionários do hotel, todos muito gentis, cuidava como podia da própria vida, dando os pequenos trambiques (que eles chamam de “vivir por la izquierda”) possíveis para garantir a subsistência que os salários do país nao permitem.Uma garrafa de água mineral vendida “por fora”, pela metade do preço, uma camisa passada com pagamento direto à camareira , driblando o caixa oficial do hotel, uma oferta de charutos legítimos, e assim vão levando a vida.
Dinheiro igual a papel pintado
Os funcionários ligados às atividades turísticas têm a sorte do acesso mais fácil à moeda forte, que sai do bolso dos turistas, e que é a única que tem valor em Cuba. A moeda local, com a qual são pagos os salários e com a qual se compra a ração determinada pela caderneta de racionamento, como diz Yoani Sánchez, é como dinheiro do joguinho de banco imobiliário: papel pintado, não vale nada.
Encontrei Yoani e marcamos sucessivos encontros, ou no hotel, ou em seu apartamento, ou em algum restaurante da cidade. Fui gravando seus depoimentos e de seu marido, Reinaldo Escobar, um jornalista que perdeu o emprego num dos dois jornais oficiais que existem em Cuba e passou a ganhar a vida como guia turístico ou consertando velhos elevadores soviéticos enguiçados.
Nos intervalos das gravações com Yoani, andava pela cidade, saboreando os daiquiris do Floridita, ao lado de uma estátua de Hemingway, ou os mojitos da Bodeguita del Medio, ou conhecendo o Museu da Revolução, onde uma redoma de vidro guarda o verdadeiro Granma (abreviação de grand mother, vovó em inglês), o barco no qual os primeiros fidelistas iniciaram suas aventuras revolucionárias.
Conheci alguns bons “paladares” (nome dos restaurantes privados permitidos pelo regime, desde que não tenham mais de 8 mesas, não explorem a música ao vivo e não vendam camarões), entre os quais um famoso, o La Guarida, instalado numa velha mansão em ruínas, onde foram filmadas as cenas mais importantes de um dos mais célebres filmes cubanos, Morango com Chocolate.
Passeio com o jovem artista
Um dia sentei numa mesa de um restaurante instalada no meio da praça da Catedral, em Havana, onde alguns tipos estranhos ganham dinheiro do público tocando música ou fazendo algum tipo de malabarismo para sair em fotos exóticas ao lado de turistas em troca de um dólar. Vi um rapaz com uma caneta na mão olhando pra mim e desenhando minha caricatura num papel.
Chamei-o para sentar e almoçar comigo. Chamava-se Luis. Tinha 28 anos, morava ali perto, também num velho prédio em ruínas, e conversamos bastante. Ele falou tudo o que pensava do regime, sem papas na língua (uma dose de rum aumentou sua coragem) e sempre olhando em volta para saber se não estava sendo espionado. “Esto és una prisión”, sentenciou.
Convidei-o para dar uma volta comigo em Varadero num final de semana. Aluguei um carro e lá fomos nós. Fomos a um restaurante e ele comeu um prataço de camarão, como se nunca tivesse comido na vida. E quando terminou me perguntou se poderia pedir uma pizza. Isso às duas da tarde, com um sol de rachar catedrais.
Luis me deu a caricatura que fez de mim como lembrança e me perguntou se eu podia deixar algumas calças e camisas para ele na hora de ir embora. Voltei com a mala mais leve.
Enquanto isso, continuava minhas gravações com Yoani e Reinaldo. Conheci o filho deles, Theo, que hoje tem 18 anos e que me exibiu o diploma de formatura do curso fundamental com um vasto retrato de El Comandante dominando toda a área útil do documento.
Yoani e Reinaldo moram num apartamento de 60 metros quadrados num bairro classe média de Havana, que ele comprou nos anos florescentes do regime, quando havia planos imobiliários para atender certas camadas um pouco mais favorecidas da população. Reinaldo então era jornalista de um jornal oficial, o Juventud Rebelde, e Yoani uma filóloga recém-formada.
Um solo de liberdade
Escrevi o livro A Ilha Roubada antes que Yoani se tornasse uma celebridade mundial e ganhasse todos aqueles prêmios internacionais. O primeiro prêmio importante, o Ortega y Gasset do jornal espanhol El País (do qual ela se tornou correspondente em Cuba) ela tinha acabado de ganhar mas não pôde ir recebê-lo porque lhe negaram o visto de saída. Aliás, antes que ela pudesse fazer essa viagem que ela começou pelo Brasil, os vistos de saída lhe tinham sido negados por 20 vezes.
A permissão de sair do país, embora seja um direito inalienável de qualquer pessoa em qualquer país democrático, em Cuba é um indício de que algo está começando a mudar.
Yoani não sabe qual poderá ser o futuro do país, e na verdade mais ninguém sabe. Os regimes comunistas ou caem feito cartas de baralho ou escolhem um caminho de transição para uma relativa liberdade mais econômica do que política. Deng Xiaoping, o líder chinês, inaugurou essa via ao dizer que “não importa qual é a cor do gato desde ele que cace ratos”, e também ao proclamar que “enriquecer é glorioso”, uma heresia aos ouvidos igualitaristas.
A passagem de Yoani pelo Brasil deixou marcas de intolerância mas também de esperança na eterna luta do homem pela liberdade.
Suas entrevistas na televisão, a sabatina e a entrevista coletiva no auditório do jornal Estado de S.Paulo mostraram que ela tem um amplo domínio dos assuntos de Cuba, um fino domínio da linguagem e das ideias que defende. Clara, objetiva, suave mas contundente, não deixou pergunta sem resposta e não cedeu às provocações de que foi vítima, contestando-as com racionalidade e vigor.
Depois de tê-la conhecido antes da glória e de ter convivido e conversado com ela durante muitas e muitas horas, e de tê-la apresentado ao Brasil através do livro A llha Roubada, só posso ficar orgulhoso da intuição que me levou a viajar até Cuba para esse trabalho.
Conhecendo bem seu pensamento e sua luta, só posso me envergonhar como ser humano dos constrangimentos aos quais o primitivismo político a submeteu em alguns instantes de sua visita ao Brasil, e rir de pena (se é que se pode rir de pena) dos plumitivos que a acusam de ser agente da CIA ou agente dupla da segurança castrista e não admitem que possam existir pessoas que são simplesmente íntegras, corajosas e intelectualmente honestas.
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[Sandro Vaia é jornalista]