Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Linguista ou mequetrefe?

Cometerei um pecado venial ou mortal? Pois bem, não sei. Confesso-vos: palavras são pequenas grandes manifestações deste mundo que me seduz, que me mata e que me torna mais gente. Ao ler o texto “Em defesa do homossexualismo”, publicado em 27 de fevereiro do corrente ano pelo bacharel em Filosofia Hélio Schwartsman, junto ao sítio eletrônico do jornal Folha de S.Paulo, surgiu a seguinte questão: sou um linguista ou um mequetrefe? Não arriscaria dizer que sou colunista, não!

O bacharel apresenta-nos, hoje, os porquês de ter usado o vocábulo homossexualismo, e não homossexualidade, em um texto que publicara anteriormente. Destaco, na íntegra, alguns dos argumentos, e tentarei analisá-los na qualidade de linguista, mesmo que, às vezes, intente ser um mequetrefe.

Observemos o excerto:

Quem estudou um pouquinho de grego sabe que o elemento “-ismós” (que deu origem ao nosso “-ismo”) pode ser usado para compor palavras abstratas de qualquer categoria: magnetismo, batismo, ciclismo, realismo, dadaísmo, otimismo, relativismo, galicismo, teísmo, cristianismo, anarquismo, aforismo e jornalismo. Pensando bem, esta última talvez encerre algo de mórbido, mas não recomendo que, para purificar a atividade, se adote “jornalidade”.

Em relação à intenção de se criar efeitos de verdade, as pessoas (res) suscitam argumentos que se pautam em processos de (de)composição das palavras e, não posso afirmar se propositalmente (apesar de acreditar que o discurso é sempre intencional) ou até mesmo por um lapso pueril, se esquecem de que as palavras estão imbricadas, minimamente, em uma relação de uso, contexto e intencionalidade, não sendo possível controlar rigorosamente a multiplicidade das relações discursivas, ou seja, estas são estabelecidas entre os elementos linguísticos propriamente ditos e as condições situacionais, sociais, culturais, históricas, psicológicas etc.

Sufixos, prefixos e infixos

Sob um viés estritamente linguístico, não seria adequado estabelecer uma relação estanque entre número de ocorrências de determinado aspecto vocabular e a não veiculação de certos conceitos, pois a diversidade linguística, de certo modo, não se ampara em uma relação simplista de maiores ou menores correlações.

De qualquer forma e por qualquer conta, as moléstias são uma minoria. Das 1.663 palavras terminadas em “-ismo” que meu Houaiss eletrônico relaciona, apenas 115 (um pouco menos que 7%) designam doenças ou estados patológicos.

Destarte, um número inferior de vocábulos que designam doenças ou estados patológicos não é um argumento válido que nos permita ratificar a não existência de matiz pejorativo (estratégico ou não) no que diz respeito ao uso do termo homossexualismo. Torna-se fundamental que percebamos que os indivíduos, muitas das vezes, se esforçam para desvencilhar um determinado vocábulo do construto sócio-histórico, ou seja, busca-se o escamoteamento de alguns efeitos de sentido, alicerçando-se em princípios que abordam uma determinada palavra apenas como uma “forma abstrata”, sem os seus múltiplos vínculos com a realidade em que circula.

Sinto-me incomodado como linguista e, também, como mequetrefe, para com os argumentos explicitados no trecho a seguir:

Compreendo que os gays procurem levantar bandeiras, inclusive linguísticas, para mobilizar as pessoas. Em nome da cortesia pública, eu me disporia a adotar a forma “homossexualidade”, desde que ela fosse defendida como uma simples predileção. Mas, enquanto tentarem justificar essa opção com base em delírios etimológicos, sinto-me no dever de continuar usando a variante em “-ismo”. Alguém, afinal, precisa zelar para que preconceitos não invadam e conspurquem o universo de sufixos, prefixos e infixos. A batalha pode ser inglória, mas a causa é justa.

Por que é raro?

E antes de expor minha argumentação acerca do excerto, penso ser necessária uma reflexão acerca desse breve trecho:

Não sei muito bem como terminar. Não consigo fechar estas páginas sobre o Outro, os vínculos e “desvínculos” (definitivamente essa palavra soa horrível) com o Outro. Balbucio, só balbucio. Eu e o Outro? O Outro e eu? Um espelho estilhaçado? Uma linguagem quebrada? Um espaço a Construir? (Hugo Achugar, Planetas sem Boca, 2006, p. 318).

As diversas questões que envolvem o uso dos vocábulos homossexualismo e homossexualidade não podem ser limitadas (como tenho certeza de que os demais Linguistas não o fazem) ao “levantar bandeiras”, inclusive linguísticas, à cortesia pública, à simples predileção, aos delírios etimológicos, ao uso da “variante” em “-ismo” etc.

Sinto-me obrigado a apontar algumas considerações acerca de “levantar bandeiras”, inclusive linguísticas. Não são apenas gays que se mobilizam, questionam e lutam, enfim, vislumbram, em termos gerais, romper com os estigmas (também materializados linguisticamente) que lhes são social, cultural e historicamente imputados. Todos os indivíduos procuram (re)significar as relações que estabelecem com os outros, seja pelo direito de desejos e escolhas, tão almejados por nós, de respeito, de convivência e de busca pelo (re)conhecimento da pluralidade.

Não é tarefa difícil refletir sobre a diversidade linguística (que me proporciona gratidão) e, por outro lado, usada como escudo para a veiculação de preconceitos – digo infelizmente para nós linguistas, mequetrefes e seres humanos – mas muito certamente, felizmente para outrem. Frutificam-se alguns questionamentos (talvez linguísticos ou de um mero mequetrefe) acerca das relações sociais e culturais, de meu entorno e do mundo, dos estereótipos e dos modelos de comportamentos impostos. Devemos obrigatoriamente pensar em “neutralidade” (ainda reitero a minha opinião da intencionalidade discursiva) ou em inocente uso do vocábulo homossexualismo? Torna-se necessário nos perguntar: por que é raro (para que eu não seja tão medíocre) o uso do vocábulo homossexualidade por parte das instituições religiosas, de seus porta-vozes e demais membros, bem como de alguns poucos veículos de comunicação, quando se referem aos gays?

Cultura é “cognitiva” e “afetiva”

Dialogando com outros contextos e com olhares significativos, surgem inquietações linguísticas, como: a abstração, o termo dicionarizado e seus aspectos de (de)composição são suficientemente capazes de desvelar a não existência de preconceitos? Caso sim, por que são utilizados os seguintes vocábulos: cadeirante, afrodescendente, soropositivo, menor em conflito com a lei, portador de necessidades especiais etc.? Se formos nos pautar nos argumentos do texto ora analisado, esses vocábulos são provenientes de um “levantar bandeiras” linguísticas? Também devem ser utilizados por cortesia pública? Referem-se exclusivamente à predileção? São delírios etimológicos? São apenas variantes ou deveríamos usar outros vocábulos dicionarizados ou que tem origem secular, milenar etc.? Como esses vocábulos estão inseridos e veiculados no âmbito de instituições religiosas?

Não sou um cidadão que vive de (b)acharelismo, mesmo que eu seja mequetrefe e, por isso, acredito e defendo, pessoal e academicamente, que as relações, sejam de poder, de preconceito, de mediocridade, de fanatismo, de inocência ou indiferença vulgares, não podem e não devem ser escamoteadas pelo argumento de (b)acharelismo: os vocábulos homossexualidade, homossexualismo e outros milhões são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade?

Prefiro acreditar nas palavras de Todorov (1999, 134-135), em sua obra O Homem Desenraizado:

O ser humano não se contenta em vir ao mundo físico como os animais; seu nascimento é necessariamente duplo: para a vida biológica e para a existência social. Ao mesmo tempo em que chega ao mundo, ele entra em uma sociedade da qual adquire as regras do jogo, o código de acesso, que chamamos de “cultura”: as tradições, uma língua, as regras de conduta. A cultura tem dupla função: “cognitiva”, por ela nos propor uma pré-organização do mundo à nossa volta, um meio de nos orientarmos dentro do caos de informação que recebemos a todo instante e avançarmos à procura do verdadeiro (a cultura é como o mapa ou a maquete do país que vamos explorar); e “afetiva” por permitir percebermo-nos como membros de um grupo específico e retirarmos dele uma confirmação de nossa existência.

Em suma, acredito que, ao tentar me situar na estreita condição de linguista e mequetrefe – sem me render ou me justificar no e pelo (b)acharelismo –, fui fiel aos meus princípios pessoais e acadêmicos (sejam eles aceitos majoritariamente ou não), que se balizam na disseminação e na socialização de saberes por meio de estudos da linguagem enquanto prática social inserida numa rede de relações cultural, política e histórica.

O ab-ISMO que os indivíduos desenvolvem para o outro ou para si não deveria sobrepor, esconder, dissimular, destruir ou contaminar com ach-ISMOS perigosos e bem estratégicos a infinita habil-IDADE de nós, seres ímpares, pares e plurais, em privilegiarmos a valorização das múltiplas formas de conhecimento e expressão, permitindo que reflitamos criticamente sobre a linguagem e seus aspectos inerentes, e também que interajamos com o outro, expressando sentimentos, ações, pontos de vista e pensamentos que estimulem a produção de conhecimento e que favoreçam a construção de relações humanas tão almejadas por nós, pesquisadores ou não e, acima de tudo, de respeito, de convivência e de busca pelo (re)conhecimento da pluralidade. Enfim, não sei se exerci bem os papéis de linguista e/ou mequetrefe…

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

TODOROV, Tzevtan. O homem desenraizado. Ed. Record. 1999.

<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/95841-em-defesa-do-homossexualismo.shtml > Folha de S.Paulo. Acesso em 27 de fevereiro de 2013.

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[Gilmar Bueno é professor e pós-doutorando em Estudos Linguísticos]