Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Terrorismo midiático

Caracas foi palco, em março deste ano, de um encontro que se colocou contra o terrorismo midiático feito pelos grandes conglomerados comunicacionais na América Latina e no mundo, principalmente promovido pelos Estados Unidos. E, diferente do que se possa pensar, o terrorismo midiático não é algo recente. O jornalista Beto Almeida, em artigo produzido após este evento, retoma casos de meios de comunicação promovendo terrorismo no Brasil já na época do governo Vargas. ‘Todo o terrorismo midiático que se faz contra Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, contra o Lula, contra o Kirchner não foi suficiente para derrubá-los, pois eles estão conseguindo impor suas conquistas e seus planos’, comentou o jornalista, durante a entrevista que concedeu à IHU Online por telefone.

Almeida falou ainda sobre exemplos caricatos de terrorismo midiático hoje, de como as mídias alternativas podem contribuir para acabar com esse tipo de prática e sobre crise econômica dos Estados Unidos que, para ele, pode ser uma chance de desestabilizar a influência que esse país tem sobre os latino-americanos. ‘Por que vamos depender do dólar se ele, além de não ter lastro, está derretendo a si mesmo?’, questionou.

Beto Almeida é presidente da TV Cidade Livre de Brasília, âncora da TV Paraná Educativa, membro da junta diretiva da Televisión del Sur (TeleSur), uma rede de televisão multi-estatal pan-latino-americana com sede na Venezuela, e é, também, membro do conselho editorial da agência Brasil de Fato.

Confira a entrevista.

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Quem pratica o terrorismo midiático hoje?

Beto Almeida – Os grandes meios de comunicação, os conglomerados de comunicação, controlam o grande fluxo e esses praticam, em alguma medida, formas de terrorismo midiático. Isso porque eles estão na sua estrutura de sustentação financeira registrando duas características fundamentais. A primeira é a de que refletem a concentração do sistema capitalista nessa fase imperialista, ou seja, também registram um movimento de concentração. A segunda é a de que são conglomerados, ou seja, não são apenas empresas de comunicação, mas também empresas financeiras, gravadoras, ligadas a outros ramos, especialmente ao mais dinâmico e mais lucrativo da economia mundial hoje, que é o da indústria bélica. Por isso, eles têm uma especial sensibilidade para a pauta da instabilidade das tensões dos conflitos, das guerras. O exemplo mais acachapante disso é que eles justificaram editorialmente a ocupação militar estadunidense e inglesa no Iraque a partir de uma mentira, de uma forma de terrorismo, portanto. Eles intimidaram a opinião pública mundial, com uma idéia falsa de que havia armas de destruição em massa nesse país, o que, portanto, justificaria uma ação militar. É claro que as empresas que fazem parte da sustentação financeira do corpo acionário dessa indústria midiática internacional saíram com altos lucros em razão desse movimento militar. Há, então, uma vinculação belical entre informação e lucratividade da indústria bélica. Por isso, eles praticam em boa medida uma linha editorial que nós convencionamos chamar de terrorismo midiático. Uma prova disso é que o New York Times (1), um tempo depois de interpretada a ocupação militar no Iraque, pediu desculpas aos seus leitores, dizendo que não tinha como comprovar a notícia que veiculara sobre a existência de armas de destruição em massa.

Num artigo sobre terrorismo midiático, você comenta que os Estados Unidos são os seus maiores produtores. Que outros exemplos além deste país podem ser analisados?

B.A. – Dou um exemplo aqui do Mercosul. Existe uma campanha por parte de alguns órgãos de imprensa, como o Clarín (2), de Buenos Aires, que dizem que o Brasil pratica carreira armamentista contra a Argentina. Ora, essa é uma notícia de difícil comprovação, porque conhecemos, pela voz oficial dos comandantes militares brasileiros, o estágio de obsolescência da nossa capacidade de defesa. 63% dos nossos aviões militares não voam, segundo o Comando da Aeronáutica, e as torres petroleiras da Petrobras do nosso litoral estão vulneráveis a ações de terroristas, segundo a palavra do nosso comandante da Marinha. Então, quer dizer, o que temos é um sistema de defesa completamente defasado e não uma carreira armamentista como divulgam. Se analisarmos outros países, veremos mais exemplos. No Brasil, a revista Veja tentou, há algumas semanas, fazer uma matéria na qual pretendia comprovar que o governo da Venezuela está fazendo carreira armamentista. A própria matéria comprova que não é a Venezuela o país que mais investe em seus recursos de defesa. O Chile é o país que mais investe em seu sistema de defesa, seguido pela Colômbia. A Venezuela está em sexto lugar e o Brasil em nono, sendo a maior economia da América do Sul. É curiosa essa tentativa de criar uma linha editoria sensacionalista, quando esses mesmos meios de comunicação justificaram, durante anos, uma política de demolição do Estado, cujo resultado é a incapacidade de defesa. Nós tínhamos uma indústria militar, mas não temos mais. Então, quando surge a idéia de um Conselho de Defesa Sul-Americano, como proposto pelo presidente Lula, trata-se de algo não apenas interessante, porque o mundo se tornou mais tenso, mas também porque esses países da América do Sul estão, hoje, com uma capacidade de defesa muito mais precarizada do que há algum tempo atrás. O que é proporcionalmente inverso, e isso os meios não falam, é o aumento da presença de instalações militares espalhados hoje por 22 países da América Latina. Veja aí o que é um distorcer da realidade, que pode ser também avaliado como terrorismo midiático.

As mídias alternativas, independentes e comunitárias podem ser uma solução para dispersão dessas grandes mídias?

B.A. – Elas podem ser um contraponto importante. Elas, talvez, não tenham capacidade de fazer frente ao volume, ao dilúvio de informações distorcidas, porque os grandes meios hoje são praticamente oligopólios, controlam rádios, TVs, jornais, editoras de livros, gravadoras de disco. Então, há um volume imenso de produção. Mas é muito importante que os meios alternativos possam fazer, como acontece na Venezuela, um contraponto, porque eles, em alguma medida, já representam um diálogo, uma pluralidade de informações que não acontece em outros países. Mas lá foi importante a presença da mídia alternativa quando ocorreu o golpe em abril de 2002. Isso porque somente as TVs e rádios comunitárias deram a notícia de que o presidente tinha sido derrubado e não que renunciara, como, de maneira mentirosa, havia sido divulgado pelos meios comerciais, integrantes da organização do próprio golpe. Os meios alternativos cumpriram uma função muito importante de lá para cá, foram reforçados. E, hoje, a Venezuela talvez seja o país com comunicação alternativa mais significativa. Mas a hegemonia da informação no país, no entanto, ainda é dos meios privados, inclusive no que se refere à audiência e às receitas publicitárias. Até o governo participa dessas receitas publicitárias anunciando nesses canais, o que também acontece aqui no Brasil.

A grande mídia brasileira fez o que pôde para que o presidente Lula não fosse reeleito. Mas a mídia alternativa realizou um debate reflexivo sobre a primeira gestão e o que poderia vir a ser uma segunda. Como você analisa a influência dessas ditas pequenas mídias neste processo?

B.A. – Ela não foi irrelevante, embora não possa ser considerada majoritária. É uma formadora de opinião num campo muito qualificado. Hoje, um dirigente sindical ou um estudantil, cultural, enfim, já tem acesso de algum modo a informações que circulam na chamada mídia alternativa. Então, isso teve alguma importância sobre esse setor, pois ainda hoje as grandes mídias atacam o governo, como se o Lula não tivesse o direito de ser presidente, muito menos de ter sido reeleito ou, agora, de pensar no seu sucessor. Eu acredito que seja importante analisar que essa reflexão qualificada foi tão importante que ela nos leva a pensar na importância de assegurar o que está escrito na Constituição, que pede uma informação plural, diversificada, educativa e uma complementaridade entre sistemas públicos, estatal e privado. Digamos que essa mídia alternativa se enquadre no sistema público. Mas ela não é alvo de políticas públicas de comunicação do governo quando se trata da distribuição das verbas publicitárias, que são recursos públicos, mas distribuídas desequilibradamente, favorecendo especialmente os meios privados, com o famoso ‘paga para apanhar’. É preciso fazer uma redistribuição com critérios democráticos para que todos os agentes do sistema midiático – o público, o estatal e o privado – recebam verbas publicitárias e não apenas haja uma concentração dessa distribuição direcionada para o setor privado, o que reforça o desequilíbrio informativo existente hoje no Brasil.

Você ressalta o caso do Samuel Wainer, que estava à frente de um jornal nacionalista e privado, o Última Hora. Qual é a importância, em sua opinião, deste jornalista para a comunicação no Brasil?

B.A. – O Samuel criou um veículo que cumpriu a função de ser o único, naquela época, pois seu jornal destoava da narrativa condenatória do presidente Vargas. Além disso, ele teve uma visão expressa no seu jornalismo, que era de tocar a fundo na popularidade que Vargas atingiu criando leis trabalhistas, a Petrobras, a Companhia Vale do Rio Doce. O Samuel Wainer teve sensibilidade para fazer um jornalismo que compreendesse esse fenômeno do varguismo. Então, ele dava uma informação que não estava presente na grande mídia que, como hoje, trabalhou para condenar o Vargas. Isso porque ele tinha apoio popular, e porque criou medidas importantes para os trabalhadores, pelas medidas que tomou em favor da economia nacional em detrimento dos interesses estrangeiros. Elas, afinal de contas, determinaram a queda, o suicídio de Vargas. O Samuel Wainer, no seu jornalismo, soube captar essa linha jornalística bastante importante. Então, dentro da discussão sobre o jornalismo, eu acredito que o jornalismo não pode ser indiferente e insensível a um projeto de nação. Os que falam que o jornalismo precisa ser uma coisa independente, autônoma em relação a tudo, esquecem que exatamente os que abordam essa questão são regiamente pagos pelos interesses estrangeiros. Dou um exemplo muito concreto: hoje, os meios de comunicação na América Latina e norte-americanos são contra um Conselho de Defesa Sul-Americano, que Vargas e Perón (3) começaram a fazer há muito tempo, um sistema de defesa própria que incluía ter um sistema de comunicação, porque você não pode fazer defesa sem pensar em comunicação, sem resgatar a dívida informativo-cultural que se avolumou contra os povos do terceiro mundo nesse período hoje.

Em sua opinião, quem comanda hoje os países latinos americanos?

B.A. – Algo está mudando na América Latina. Porque todo o terrorismo midiático que se faz contra Chávez (4), Rafael Correa (5), Evo Morales (6), contra o Lula, contra o Kirchner (7) não foi suficiente para derrubá-los, pois eles estão conseguindo impor suas conquistas e seus planos. Hoje, a Venezuela é um país sem analfabetismo, a Bolívia prepara-se para ser declarada livre de analfabetismo pela Unesco, o Equador está invertendo o uso da receita que antes ia só para as multinacionais e agora vai para os projetos sociais, e a Argentina se recuperou daquele fundo do poço, e já existe uma boa média de crescimento econômico. De certa forma, esses presidentes já controlam parte do poder. É claro que os meios de comunicação permanecem insensíveis a projetos nacionais ou de independência da submissão à oligarquia financeira internacional, porque eles são financiados por grandes grupos internacionais, em sua maioria estadunidenses e por bancos locais e recordistas de lucro. Não temos governos altamente populares, mas já temos governos com grau importante de soberania, reduzindo, por conta disso, o poder de influência que os grandes meios de comunicação têm. Tanto que não conseguiram impedir a reeleição de Lula, nem, apesar de tudo, derrubar Chávez, apesar da ampla liberdade que têm lá e a utilizam para insultar o presidente, enfim. Nesse sentido, eu acredito que os povos estejam conseguindo mudar o mapa político da América Latina.

Notas

[1] O The New York Times é um jornal de circulação diária internacionalmente conhecido publicado na cidade de Nova Iorque e distribuído nos Estados Unidos e em muitas outras nações. Foi fundado em 18 de setembro de 1851 por Henry Jarvis Raymond e George Jones. Raymond. Sua versão on-line pode ser conferida aqui

[2] O Clarín é o jornal de maior circulação da Argentina. Editado em Buenos Aires, foi fundado em 1945 por Roberto Noble, que o dirigiu até 1969. Em 1965, tornou-se o jornal com maior tiragem na capital argentina.

[3] Juan Domingo Perón foi um militar e político argentino. Foi presidente de seu país de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. Seu governo populista era apoiado pela Igreja, pelo Exército e pelo Movimento sindical, e baseava-se num forte nacionalismo, centralizado no poder do Estado. Perón ainda contava com o carisma da primeira-dama, Evita Perón, através de campanhas sociais, o que dava ao Estado um caráter paternalista.

[4] Hugo Rafael Chávez Frías é o atual presidente da Venezuela. Em 1992, o então tenente-coronel comandou cerca de 300 efetivos e protagonizou um golpe de Estado contra o presidente Carlos Andrés Pérez. Os partidários de Chávez justificam essa ruptura constitucional como uma reação à crise econômica venezuelana, marcada por inflação e desemprego decorrentes de medidas econômicas adotadas por Pérez, logo após a sua posse face a grave situação econômica que o país estava passando. Embora fracassada, a tentativa de golpe em 1992 serviu para catapultar Hugo Chávez ao cenário nacional, depois de amargar dois anos de cadeia. Em 1997, fundou o Movimiento V República e, nas eleições do ano seguinte, Chávez foi eleito com 56% dos votos. Em 2000, Chávez foi reeleito presidente da República, com 59,7% dos votos. Em abril de 2002, sofreu um golpe patrocinado pela elite venezuelana e pelas principais empresas de comunicação privada do país que durou um dia, pois o povo se opôs fortemente ao golpe. Nas Eleições presidenciais da Venezuela de 2006. Hugo Chávez Frias foi reeleito com 62,9% dos votos.

[5] Rafael Vicente Correa Delgado é economista, político e o atual presidente do Equador. Foi ministro de Economia e Finanças. Durante sua gestão, propôs uma postura nacionalista, oposta aos organismos multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, e a favor de uma maior participação do Estado na exploração do petróleo.

[6] Juan Evo Morales Ayma é o atual presidente da Bolívia e líder do movimento esquerdista boliviano cocalero, uma federação de agricultores que tem por tradição o cultivo de coca para atender um costume milenar da nação que é mascar folhas de coca. Evo Morales notabilizou-se ao resistir os esforços desenvolvidos pelo governo dos Estados Unidos na substituição do cultivo de coca na província de Chapare por bananas originárias do Brasil.

[7] Néstor Carlos Kirchner é um advogado, político e ex-presidente da Argentina. Antes de assumir a presidência, foi governador da Província de Santa Cruz. Atualmente, exerce o cargo de primeiro primeiro-senhor de seu país. A política econômica do governo de Kirchner manteve a desvalorização da moeda mediante uma forte participação do Banco Central na compra de divisas, impulsionando as exportações e levando a um crescimento econômico com taxas próximas de 10% do PIB. Kirchner manteve uma relação verbal conflituosa com o FMI, ainda que tenha optado, a exemplo de Lula, presidente brasileiro, pelo pagamento antecipado da totalidade da dívida. Assim, apesar das declarações públicas, o governo de Kirchner foi o que mais pagou dívidas ao FMI em toda a história argentina.