Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os arquivos e os segredos da ditadura

Muito boa a reportagem da Folha de S.Paulo sobre os arquivos da ditadura retidos pelo governo. Mandou bem o jornal ao tentar revelar os segredos dos milicos, parte deles ainda enterrados em cova rasa. Aliás, o acordo feito pelos militares com os civis para entregar o poder, em 1985, incluía exatamente a guarda, por um período não definido (ad eternum, imagino), dos arquivos da repressão com os carimbos ultra-secreto, secreto, sigilosos, reservado e confidencial. Documentos que tivessem um destes carimbos deveriam ser mantidos fora do alcance da imprensa para que o segredo do sistema não fosse revelado.

Não foi à toa que os milicos impuseram a eleição indireta do primeiro presidente civil. Eles queriam ganhar tempo. Se a emenda das Diretas Já, de Dante de Oliveira, tivesse passado no Congresso, os generais de linha dura não entregariam o poder sem disparo de armas. Tancredo Neves e Ulysses Guimarães sabiam disso, mas estavam convictos de que o processo de transição já havia sido acertado com a tropa do general Ernesto Geisel, que governou o país (1974-1979) e iniciou o processo de abertura política. O presidente João Baptista de Figueiredo (1980-1984), portanto, teria que entregar a faixa na marra, é o que pensavam.

Eu não tinha certeza absoluta disso. Vivi intensamente esse período em Brasília, a partir de depoimentos segredados de homens que faziam parte da comunidade mantida pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), então chefiado pelo general Otávio de Aguiar Medeiros, que pretendia ser o candidato dos milicos na eleição indireta. Ou seja, o plano dos generais previa que as cinco divisas do Exército continuariam no poder por mais um mandato. O suficiente para destruírem todos os arquivos e redigirem uma nova Constituição ao modo deles (se é que haveria outra Constituição, talvez continuássemos com a mesma, modificada para pior).

Urânio para o Oriente Médio

A candidatura de Otávio de Medeiros somente não foi adiante por causa do assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, ocorrido em 1982. Baumgarten, a mulher e um barqueiro foram sequestrados na Praça XV, no Rio de Janeiro, e executados em alto mar. O crime envolvia o general Newton Cruz, do Comando Militar do Planalto e braço direito de Medeiros. Foi Cruz que expulsou Baumgarten da comunidade de informações do SNI, em janeiro de 1981, por suspeita de trapaça. Baumgarten adquiriu o título da antiga revista O Cruzeiro (1928-1975), anos após o seu fechamento, e passou a utilizar verbas do governo para divulgar o nome de Medeiros com vistas à sucessão de Figueiredo, em eleição garantida pelas Forças Armadas como indiretas.

Os homens de Cruz, com a ajuda do dono de um jornal também a serviço dos milicos, fizeram campana na gráfica da revista e descobriram, através das bobinas consumidas, que o jornalista estava mentindo para o SNI sobre a tiragem do semanário e o expulsaram do sistema. Magoado, Baumgarten fez um dossiê que incluía a verdade sobre o atentado do Rio Centro e várias outras informações secretas, muitas delas não reveladas até hoje porque parte do dossiê desapareceu.

Um elemento de dentro do SNI informou-me, com extrema segurança, parte do dossiê não revelado de Baumgarten sobre a remessa de urânio para o Iraque, com a finalidade de reaquecer os reatores nucleares do presidente Saddam Hussein, que assumiu a presidência de seu país de 1979 com apoio dos Estados Unidos que, ironicamente, o arrancou do poder em 2003 (por causa do atentado às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001). Condenado à morte pela justiça iraquiana, Saddam foi enforcado em 2006, pelas atrocidades praticadas pelo seu governo.

Armas para a Líbia

Aliás, boa parte dessas informações sobre a remessa de armas e material estratégico (urânio, principalmente) pelo regime militar brasileiro ao Oriente Médio nas décadas de 1970 e início de 80 é revelada no meu livro Distrito Zero (Maza Edições: 2000). Parte do material extraído é do dossiê de Baumgarten e a outra metade fornecida pelo informante que tinha trânsito livre no Exército. Muitos desses segredos que obtive à boca pequena continuam até hoje escondidos em alguma parte do governo por conta dessa dificuldade anômala que o Brasil tem para abrir a caixa preta da repressão.

A verdade é que os organismos internacionais estavam, no final da década de 70 e início de 80, de olho nesse comércio de armas entre Brasil e alguns países do Oriente Médio. Primeiro, foi o contrato assinado em 1981 entre a empresa Engesa, de São José dos Campos, SP, e o governo iraquiano, para o fornecimento de veículos blindados às Forças Armadas daquele país. O contrato, no valor de US$ 250 milhões, previa o fornecimento de tanques Urutu, equipados com canhões 90 mm, e do carro de transporte de tropas Jararaca, conforme revelou em 1982 a revista francesa Défense et Armement.

Constava ainda, no dossiê de Baumgarten, a venda ilegal de urânio extraído do Brasil para reabastecer os reatores nucleares iraquianos. Diziam os documentos que em 1982 o serviço de inteligência francês descobriu que o Brasil vinha exportando para a Líbia aviões de patrulha-marítima, várias baterias do sistema Astros-II e lançadores de foguetes de saturação, bombas antiaéreas e configurações modernas de blindados Cascavel EE-9. O fornecimento de armas a Trípoli somente foi interrompido com a apreensão de aviões líbios em Pernambuco, salvo erro, levando equipamentos bélicos para os sandinistas da Nicarágua.

Documentos destruídos

Para reforçar a veracidade dessas informações sobre a remessa de equipamentos bélicos pelos militares brasileiros ao Oriente Médio, tive acesso a documentos nunca revelados antes dando conta de que parte do urânio enviado ao exterior era retirado de uma mina em Olhos D’Água, na cidade de Nova Lima, na Grande Belo Horizonte (onde tenho hoje um jornal), e transportado para os Estados Unidos pelos empresários Wilson Gosling e Paulo Leite. Certa feita, um desses carregamentos foi apreendidos por ordem do então coronel Otávio de Medeiros, que comandava o 11º Regimento de Infantaria da 4ª Divisão de Exército, em Belo Horizonte, e despejado no pátio “para verificação”. Como ninguém no quartel sabia distinguir o que continha aquele “monte de areia”, o material foi jogado fora e tudo ficou por isso mesmo.

A verdade é que a imprensa levou um coice mortal dos milicos (e dos governos civis que vieram depois) com relação aos documentos da ditadura. O segredo já passou por cinco presidentes (José Sarney, Collor de Melo, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso (dois mandatos) e Lula (dois mandatos). Espero que de Dilma Rousseff não passe, ainda que tardiamente, porque os crimes praticados pela repressão durante o regime militar já prescreveram, mas o povo tem o direito de saber toda a verdade sobre os guardados da ditadura.

A Comissão da Verdade pode muito bem requisitar dos órgãos governamentais o que sobrou no fundo da gaveta dos milicos, já que a maior parte (e a mais importante) desses escritos foi destruída ou extraviada e/ou levado para a casa de algum torturador obcecado pelo seu conteúdo mórbido.

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José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG