Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saudade dos inimigos

A cobertura na grande mídia americana da morte de Hugo Chávez é realmente um espanto. Ele foi o “último caudilho”, um “ditador”, um discípulo embevecido de Fidel, uma força não confiável, farsesca e desestabilizadora no cenário mundial. Aí, dois parágrafos depois, lê-se que ele mudou a vida de milhões de venezuelanos pobres, que ele realmente se importava com os pobres, que a Venezuela que deixou é muito melhor do que a Venezuela que encontrou. E aí volta a ladainha dos erros graves de Chávez: os petrodólares que permitiram que ele enganasse o povo levando-o a pensar que ele mesmo estava por trás deles, os petrodólares que ele esbanjou, o compadrismo, a natureza autoritária de seu regime, e assim por diante.

Após uma cobertura em geral negativa de Chávez, o New York Times chegou a publicar em sua página de opinião, como se numa compensação equilibrada, um ensaio cuidadoso, digno e francamente admirativo de Lula elogiando as realizações concretas de Chávez. Talvez o próprio fato de Lula escrever o ensaio tenha sido um lembrete de que o Brasil tirou, milagrosamente, dezenas de milhões de pessoas da pobreza sem os caprichos autoritários de Chávez, sem a total alienação de segmentos importantes da sociedade.

Eu pessoalmente não gosto de autocratas, e o aparente arremedo de democracia de Chávez me causava desconforto. Entretanto, muita coisa que passava por democracia na Venezuela era um edifício podre de propina e corrupção, de modo que algum arremedo dessa falsa democracia não poderia ser totalmente ruim. Eu admirava Chávez. Ele tinha coração, sentimentos elevados e uma verdadeira indignação e paixão. Gostava em especial de seu criativo deboche de George W. Bush. Não dei muita bola para o seu antiamericanismo, que me pareceu perfeitamente apropriado depois do que a mídia americana gosta de chamar de apoio “tácito” dos Estados Unidos à tentativa de empresários de direita e outros de derrubar Chávez em 2002. (Quem realmente saberá quão “tácito” foi o apoio dos EUA?)

Tenho orgulho de muitas coisas dos Estados Unidos, mas o envolvimento sangrento do país em assuntos latino-americanos ainda me envergonha. Os EUA podem não ter instalado uma junta genocida na Venezuela como fizeram em alguns outros países latino-americanos, mas até a Venezuela nacionalizar sua indústria petrolífera, em 1973, os EUA saquearam alegremente o único recurso exportável valioso do país, apoiando um regime ditatorial na Venezuela durante décadas na primeira parte do século passado.

Perigo verdadeiro

Chávez, me parece, não era um caudilho, nem um ditador, nem um ditador “soft”, ou algo do gênero. Era Chávez, uma criação única de um momento histórico único. Seu advento no cenário mundial ocorreu num período de desmoronamento de velhas estruturas sócio-econômico-político-culturais que ainda não foram substituídas por alguma coisa definida. Qualquer tentativa na ideologia vai terminar numa maçaroca de princípios e posturas. Assim, o ódio de Chávez aos EUA corria em paralelo aos negócios que ele fazia com os EUA; seu socialismo, tal como era, existia ao lado de um capitalismo de compadrio; sua retórica pode ter sido violenta, mas seu regime não se envolveu em nada parecido com uma repressão violenta em larga escala. O autoritarismo de Chávez era mais próximo daquele do antigo prefeito Daley, de Chicago, do que dos ditadores latino-americanos de antanho.

Mas há na imprensa americana uma nostalgia dos bons velhos tempos de ameaças claras da União Soviética, do Vietnã do Norte, de Cuba, de regimes esquerdistas da América Latina. Poucos dias antes de Chávez morrer, as ondas aéreas estavam cheias de ameaças de que a Coreia do Norte iniciaria uma nova guerra contra a Coreia do Sul, e sua insinuação de que seus mísseis nucleares poderiam atingir o solo americano. Essa fanfarronada vazia foi reportada quase amorosamente pela mídia daqui, em particular pelos sites noticiosos na internet que precisam reportar notícias de um apocalipse iminente por dia para atrair os necessários acessos às páginas.

Até as condições do tempo hoje são noticiadas como se este fosse uma potência estrangeira hostil. Antes, só furacões recebiam nomes. Depois, as tempestades tropicais ganharam nomes. Agora é aquele sistema climático suave, quase inocente, conhecido como “tempestade de inverno”, que passou a ser personificado. Na falta da ameaça comunista, transformamos flocos de neve em tropas invasoras. Che, Fidel, Kruchev, Brejnev – eram faces do mal que ameaçava o modo de vida americano. Agora temos a “Tempestade de Inverno Nemo”. Corram para seus abrigos, a neve está chegando!

Compreendo a nostalgia por um inimigo unificador. Alguns anos após a crise dos mísseis de Cuba, quando eu tinha 6 anos, apaixonei-me (se posso chamar assim) por uma garotinha cubana que morava no mesmo conjunto de apartamentos térreos com jardim que meus pais e eu. Seus pais tinham fugido de Cuba após a revolução e ela vivia com medo, assim me disse, do superintendente cubano García que vivia no conjunto. Era um agente de Fidel, ela me explicou com os olhos arregalados de terror, e estava tentando encontrar um jeito de enviar, ela e sua família, de volta para Cuba. Eu imediatamente assumi o papel de protetor, e tratei de procurar lugares para nos escondermos de García – geralmente no porão, em cuja entrada havia um cartaz preto e branco em cima da entrada dizendo “abrigo antibomba”, um cartaz que se via por toda parte durante a Guerra Fria.

Ela tinha longos cabelos castanhos e pele macia, e um dia, depois de termos brincado fora, ela passou os dedos pelo rosto deixando riscos de terra em sua linda pele. Eu vi aqueles riscos como emblemas de suas carências e de seu desamparo ante o monstruoso García. Até hoje, a imagem de seu rosto riscado de terra – esqueci-me de seu nome – é uma das lembranças mais fortes de minha infância. O pensamento de estar naquele abrigo antibomba com ela, longe do seu perseguidor, aquecidos em nosso refúgio, minhas pernas roçando nas dela, o cheiro da terra subindo de nossas mãos, ainda me encanta e intriga.

Sociedades também têm sua nostalgia coletiva, é claro. Compreendo a necessidade de retratar Chávez como um dos inimigos clássicos dos Estados Unidos, como uma verdadeira nêmese que talvez tenha deixado em sua esteira uma situação (maravilhosamente) perigosa que requererá uma vigilância constante dos EUA. Mas assim como minha vida – e, eu espero, a vida daquela garotinha cubana – foi em frente, espero que possamos parar de criar inimigos e perigos onde eles não existem. E quando o perigo verdadeiro se mostrar, espero que não sejamos tão românticos ao enfrentá-lo como estamos sendo agora ao ansiar por ele.

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Lee Siegel é colunista do Estado de S.Paulo