Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Qual é o nome do mosquito?

Só na noite do sábado (9/3) tomei conhecimento do artigo “Dengue, o nome do mosquito”, de Deonísio da Silva, publicado neste Observatório em 1/4/2008 – quase cinco anos atrás, portanto.

Diz o autor, logo no primeiro parágrafo:

“Parece uma das dez pragas do Egito. Aliás, até pelo nome científico do mosquito transmissor: Aedes Aegypti, Casa do Egito.”

Após fazer algumas considerações a respeito do surto de dengue que assolava a cidade do Rio de Janeiro naqueles primeiros meses de 2008, o autor finalizou seu artigo com estes dois parágrafos:

“Os redatores das notícias sobre a dengue que assola o Rio de Janeiro estão errando a grafia do nome do mosquito que a transmite.

“Podem consultar os dicionários, mas neste caso é preciso esclarecer que dentre os mais consultados do país, apenas o Michaelis diz que é Aedes aegyptii, errando o segundo nome. O Aurélio, o Aulete e o Houaiss grafam corretamente o nome do inseto, que é Aedes Aegypti, Casa do Egito. O Michaelis, usualmente muito confiável, ao mudar Aegypti para aegyptii, muda o nome para Casa do egípcio.”

Nomenclatura biológica

Cabem aqui algumas considerações, ainda que tardias. Em primeiro lugar, cabe observar que o nome científico de qualquer espécie de organismo – i.e., micróbios, animais, fungos ou plantas – é sempre escrito em latim ou em palavras latinizadas. Trata-se de uma norma que visa a facilitar a vida dos estudiosos. Se você conversar com estudantes de outros países, irá perceber que cada um deles tem um nome nativo próprio para designar o animal que em português nós chamamos de “gato”. Em catalão, por exemplo, a palavra é gat; em francês, chat; em inglês, cat; em italiano, gatto; e assim por diante. Cada idioma tem um ou mais nomes nativos para o gato; em todos eles, porém, o nome científico é sempre o mesmo: Felis catus.

Cabe notar também que o nome científico de uma espécie é um binômio. No caso do gato doméstico, como acabamos de ver, esse binômio é Felis catus – sendo Felis o nome do gênero e a expressão Felis catus, o nome da espécie. A palavra catus sozinha é chamada de epíteto específico. É importante salientar ainda o seguinte: o nome genérico deve ser um substantivo ou uma palavra substantivada, enquanto o epíteto específico deve ser um adjetivo ou uma palavra adjetivada. Este último, claro, deve concordar com aquele. Uma última coisa: o nome genérico sempre é escrito com letra inicial maiúscula (sempre Felis, nunca felis), enquanto o epíteto específico sempre é escrito com letra inicial minúscula (sempre catus, nunca Catus). Todas essas recomendações (e inúmeras outras) estão fixadas em um código internacional de nomenclatura, um conjunto de regras que balizam a atividade dos taxonomistas (i.e., os estudiosos que lidam com a classificação biológica).

Dito isso, voltemos ao mosquito: a grafia Aedes aegypti (a-e-g-y-p-t-i, com letra inicial minúscula e um único “i” no final), aparece tanto no Mini-Houaiss (HOUAISS et al. 2003, p. 148) como na edição mais recente do Aurélio (FERREIRA 2009, p. 618) e está corretíssima. Ou quase isso, não fosse por um curioso detalhe: o nome científico do inseto está mudando…

Os mosquitos culicídeos

O mosquito transmissor da dengue é um inseto ou, mais especificamente, um díptero da família Culicidae. Mais de 3,5 mil espécies de culicídeos são conhecidas em todo o mundo, das quais umas 1,2 mil espécies estão abrigadas na tribo Aedini. Trata-se de uma família (e aquela tribo em particular) de grande importância econômica e sanitária e que, por isso mesmo, vem sendo estudada há muito tempo. Todavia, após quase um século de estudos, ainda não temos uma classificação que reflita de modo satisfatório a história evolutiva desses mosquitos (ver REINERT et al. 2004, SAVAGE 2005). A sistemática filogenética visa justamente obter tais sistemas de classificação.

Uma análise filogenética pioneira a respeito da tribo Aedini apareceu em 2004, quando o entomólogo estadunidense John Reinert e seus colegas (REINERT et al. 2004) propuseram um novo modelo para a classificação desses mosquitos. Nos anos seguintes, eles refizeram e ampliaram o seu esforço de pesquisa (e.g., REINERT et al. 2009), concluindo, entre outras coisas, que diversos táxons tradicionais da tribo, incluindo o famoso gênero Aedes, são polifiléticos. No âmbito da sistemática biológica, uma conclusão como essa é uma condenação ao purgatório, diante da qual há apenas duas alternativas viáveis: ou o táxon em questão é redefinido, visando a torná-lo monofilético (ou ao menos parafilético), ou ele é substituído. (Diz-se que um táxon é monofilético quando ele reúne todas as espécies conhecidas que descendem de um ancestral único comum; se as espécies reunidas descendem de ancestrais diferentes, diz-se que o táxon é polifilético; por fim, se as espécies reunidas não representam todos os descendentes do último ancestral único comum, o agrupamento é chamado de parafilético.)

De acordo com a solução proposta por Reinert e seus colegas (REINERT et al. 2004, 2009), os 12 gêneros e os 56 subgêneros até então reconhecidos para a tribo Aedini foram redefinidos, produzindo um agrupamento de 80 gêneros e 48 subgêneros. Essa “inflação” no número de gêneros foi decorrente em boa medida de um processo de desmembramento, graças ao qual muitos antigos subgêneros foram alçados à categoria de gênero. O gênero Aedes, que pela definição tradicional abrigava cerca de 930 espécies, em duas (REINERT et al. 2004, 2009) ou três dezenas (SAVAGE 2005) de subgêneros, continua válido, mas encolheu um bocado. Os antigos táxons Aedes (Stegomyia)aegypti e Aedes (Stegomyia)albopictus, por exemplo, mudaram para Stegomyia aegypti e Stegomyia albopicta, respectivamente. (O nome entre parêntesis, sempre com letra inicial maiúscula, indica o subgênero de cada espécie. Observe ainda que a mudança de albopictus para albopicta, no segundo caso, visa apenas a manter a concordância do epíteto específico com o novo nome genérico.)

A resistência é meramente política?

Ao contrário do que possa parecer, mudanças como essa não são excepcionais. Na verdade, redefinições e rearranjos fazem parte da rotina de trabalho dos taxonomistas, sobretudo depois que a sistemática filogenética foi influenciada pela revolução molecular (ver, neste Observatório, o artigo “O senhor das arqueias” <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed732_o_senhor_das_arqueias>). Algo semelhante aconteceu, por exemplo, com a família dos felinos (Felidae), ainda que lá o número de espécies envolvidas tenha sido bem menor. Até algumas décadas atrás, sete das oito espécies brasileiras de felinos eram colocadas no gênero Felis (e.g., SILVA 1984). Este táxon continua válido, mas a sua definição mudou, de sorte que nenhuma espécie nativa do Novo Mundo pertence mais a esse gênero. As seis ou sete espécies viventes do gênero Felis são encontradas apenas na África ou na Ásia, excetuando-se tão-somente o gato doméstico (F. catus), uma espécie invasora encontrada hoje em todo o mundo.

Um aspecto curioso em toda essa história envolvendo o gênero Aedes foi a reação de uma parte da comunidade científica. O estudo dos mosquitos é alimentado por uma rica e diversificada cadeia de interesses, afinal esses insetos são muito importantes em termos econômicos e sanitários. Todo esse interesse gera um grande volume de pesquisas aplicadas, embora nem sempre de boa qualidade. E foram justamente os cientistas envolvidos com esse tipo de pesquisa que decidiram boicotar as mudanças de nome referidas acima. Trocando em miúdos, o nome Aedes aegypti continua sendo usado simplesmente porque alguns cientistas (e.g., SAVAGE 2005, POLASZEK 2006) e grupos influentes (e.g., revistas científicas) acharam que a mudança para Stegomyia aegypti seria precipitada ou meramente inconveniente. É bom frisar que, nos últimos anos, não apareceu nenhuma evidência científica contra a mudança. Assim, transcorridos quase 10 anos desde que a primeira versão do novo modelo apareceu (REINERT et al. 2004), a resistência soa como algo essencialmente político.

Eis aí um prato cheio, não apenas para os sociólogos e historiadores da ciência, mas também para as editorias de ciência: até quando (e por que) continuaremos chamando o mosquito transmissor da dengue pelo nome errado?

Referências citadas

FERREIRA, A. B. H. 2009. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 4ª edição. Curitiba, Positivo.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. & FRANCO, F. M. M. 2003. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva.

POLASZEK, A. 2006. Two words colliding: resistance to changes in the scientific names of animals – Aedes vs Stegomyia. Trends in Parasitology 22: 8-9.

REINERT, J. F.; HARBACH, R. E. & KITCHING, I. J. 2004. Phylogeny and classification of Aedini (Diptera: Culicidae) based on morphological characters of all life stages. Zoological Journal of the Linnean Society 142: 289-368.

REINERT, J. F.; HARBACH, R. E. & KITCHING, I. J. 2009. Phylogeny and classification of tribe Aedini (Diptera: Culicidae). Zoological Journal of the Linnean Society 157: 700-94.

SAVAGE, H. M. 2005. Classification of mosquitoes in tribe Aedini (Diptera: Culicidae): paraphylyphobia, and classification versus cladistic analysis. Journal of Medical Entomology42: 923-7.

SILVA, F. 1984. Mamíferos silvestres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Fundação Zoobotânica.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)