Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre o real e o verossímil

Em um dia ensolarado e perfeito, emoldurado por um céu brilhante e azul, uma bela jovem família reúne-se na varanda acolhedora de sua casa, para o ritual do café da manhã. Ao redor da suntuosa mesa, onde uma impecável composição ostenta alimentos saborosos e convidativos, sentam-se todos em grande harmonia, sorridentes e felizes por compartilhar este momento especial com aqueles que tanto amam. Quase conseguimos sentir o aroma dos vapores que se desprendem do pão quentinho então partido, e o sabor delicioso da margarina generosamente espalhada por toda a fatia.

Este glorioso momento de plena felicidade pode repetir-se inúmeras vezes por dia, sete dias por semana, e 365 dias por ano, pois como todos devem haver percebido, a narrativa descreve genericamente um típico comercial de margarina para a TV. Sobre a onipresente verossimilhança, e sua exploração publicitária, versa esta reflexão.

“O verossímil é mais estimável do que o verdadeiro”, assim compreendiam Tísias e seu mestre Córax. Estes pensadores da antiguidade grega empreenderam um primeiro esforço para explicitar os mecanismos das argumentações presentes nos discursos de sua época. Esta visão foi compartilhada por outros sofistas gregos, que ensinavam aos jovens das famílias mais abastadas como influenciar as vontades das plateias através de retóricas bem elaboradas, correspondentes ou não à verdade.

Experimentamos conscientemente este estimado verossímil, quando temos contato com a literatura ou com o cinema, por exemplo. Envolvemo-nos facilmente com os fatos narrados, colocando-nos subjetivamente nos papéis dos heróis, dos vilões, do narrador, ou até mesmo do autor, identificando-nos com o discurso ficcional ao qual nos entregamos naquele momento, através da linguagem que nos transporta a realidades paralelas e temporárias, agradáveis, aterradoras, apaixonantes ou inquietantes. Psicologicamente habitamos, mesmo que por instantes, tais espaços ficcionais.

Realidades ficcionais

Entretanto, o que possibilita a nós este deslocamento? Tal identificação subjetiva com as realidades ficcionais, quando a elas somos expostos? Considerar o poder de imaginação do ser humano poderia representar alguma explicação. Porém, por que nos entregamos totalmente a algumas narrativas imaginárias, ao invés de percebê-las como meras fantasias?

Arrisco a acreditar que esses deslocamentos possibilitam-se por sua semelhança com o modo como estruturamos nossas realidades: na forma de discursos verossímeis sobre o real. Mas por que verossímeis e não verdadeiros? Porque nos falta a onisciência. Jamais teremos percepções completas sobre o real ou sobre a realidade, sobre outros ou sobre nós mesmos. Nossa concepção de fatos e ideias muda com o tempo, idade, e experiência. Assim como mudam as nossas “verdades”.

Falta-nos também a onipresença: ocupamos a cada instante apenas um lugar no espaço e no tempo, logo a apreensão do real em sua totalidade será para nós sempre impossível. Então, o que percebemos do real? Apenas recortes. Fragmentos que complementamos com nossas memórias e experiências, e com os discursos aos quais somos submetidos todo o tempo: publicitários, acadêmicos, jornalísticos, políticos, históricos, comunitários, familiares etc.

Não há qualquer niilismo ou solipsismo nesta abordagem, penso. Por este motivo evito aceitar a realidade como ficção. A realidade encontra-se atrelada ao real, enquanto a ficção é construída a partir da realidade, e não do real, para produzir seu efeito de verdade. Quando desvincula-se a realidade do real, e experimenta-se como realidade uma narrativa ficcional, a isto chamamos delírio.

O desejo pelo produto

Sabedora deste estimado verossímil, a publicidade trabalha dentro dos limites das realidades compartilhadas por seu público alvo, criando narrativas que, mesmo percebidas plenamente como discursos ficcionais, produzem nas subjetividades o desejo pelo produto ali evidenciado, agregando a este um valor intrínseco que extrapola o venal e o pragmático.

Refiro-me aqui à publicidade que age de acordo com sua ética, trabalhando com a exaltação das qualidades dos produtos anunciados, e não àquela que descaradamente propaga inverdades sobre as características ou efeitos dos seus produtos. Esta última deixo para quem deve satisfações: ao Procon e à sociedade.

Voltando à questão, pergunto: como a publicidade produz tais desejos? Penso que seja pela supressão do ruído, das imperfeições. A perfeição impossível produz idealização e desejo, transportando-nos a realidades impecáveis, como as formas do mundo das ideias de Platão. Deste modo, a narrativa publicitária dispensa as mazelas do real em que habitamos: os pequenos ou grandes “defeitos” da vida. Descarta das narrativas e das imagens aquilo que “todo mundo tem”, como afirmou Chico Buarque, sobre questão semelhante, em “Ciranda da Bailarina”.

A publicidade espelha-se em nossa apreensão do real, que também opera por supressão de ruídos. Percebemos o mundo através de interpretações individuais verossímeis, e não por percepções individuais sobre uma realidade comum substancializada. Não há qualquer delírio neste gesto, pois nossas realidades encontram-se impreterivelmente atreladas ao real e serão sempre verdadeiras para nós. A realidade constitui-se um construto individual verossímil, não ficcional, sobre o mundo real.

A projeção do verossímil

Navegamos por oceanos de verossimilhança. Atrelados a correntes discursivas que nos precedem, deslizamos por turbulências e calmarias de uma realidade reafirmada continuamente, a cada ínfimo singrado sobre a argamassa sensível e concreta que nos serve de lastro.

Michelangelo declarou certa vez, sobre o próprio ato criador, que a estátua já se encontrava na pedra, cabendo a ele o mero trabalho de retirar o excesso de mármore que ocultava sua forma. Neste exemplo apropriado, percebemos a projeção do verossímil sobre o mundo sensível e sua conformação em um objeto concreto, cuja materialidade participará da construção do mundo real em que vivemos, e da estruturação de nossas realidades.

Deste modo, movimento contrário necessitaríamos empreender, se desejássemos perceber como a realidade consolida-se sobre o mundo sensível: precisaríamos ver a pedra oculta na estátua, a matéria oculta na pedra, e o incognoscível oculto na matéria, pela palavra que conferiu-lhe existência. Necessitaríamos ver, não através da linguagem, mas apesar da linguagem.

Caso conseguíssemos perpetrar tal deslocamento, teríamos maior compreensão deste duplo ato, simultâneo e contínuo, pelo qual percebemos fisicamente nossa presença no planeta, através dos sentidos, e intelectualmente nossa existência no mundo, através da cognição. Enquanto transitamos por esta vida, que não acontece, definitivamente, como nos comerciais de margarina.

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André Silveira Sampaio é professor e escritor