Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As joias de Millôr

Millôr Fernandes costumava dizer que “quem tem obra é pedreiro”, talvez demonstrando certa ojeriza pela “canonização” de um legado. Com a remoção, esta semana, do acervo que o artista gráfico, caricaturista, cartunista, escritor, dramaturgo e jornalista deixou em sua cobertura-estúdio em Ipanema, fica claro que ele foi um pedreiro pródigo, que erigiu condomínios intelectuais inteiros.

Cedido em comodato por 10 anos ao Instituto Moreira Salles (IMS) pelo seu filho, Ivan Fernandes, o acervo pictórico de Millôr Fernandes revela notável capacidade de produção, que compreende sua carreira desde o início, aos 13 anos, até a morte, aos 88 anos, em março de 2012. Há também 44 quadros, cartas, álbuns, uma mapoteca, artigos de jornais e revistas (foi colaborador do Estado entre 1996 e 2000).

“Estou cedendo o acervo sem nenhum tipo de restrição, a não ser a exigência de que seja mantido no Rio de Janeiro”, diz Ivan Fernandes, de 59 anos, filho do artista. “Claro que isso não impede de o instituto fazer exposições em qualquer lugar do País ou do mundo.” Fernandes acredita que o material inventariado na cobertura possa conter pelo menos 80% do que Millôr produziu, considerando-se a data inicial de 1945 como base.

A obra de Millôr será abrigada, no Instituto Moreira Salles, na reserva técnica da coleção de iconografia, que possui cerca de 2,7 mil imagens (a maioria de pintores-viajantes dos séculos 16 a 19). Millôr trará o setor para os séculos 20 e 21. O Instituto Moreira Salles informou que não pagou pelo arquivo, foi uma cessão voluntária da família. E que não tem intenção de incorporar novos acervos que tenham “algum parentesco” com a produção gráfica de Millôr. A peculiaridade da obra é que atraiu o IMS.

“Ele é tão absolutamente excepcional que não inaugurará nenhuma ala no instituto, será apenas ele. É porque é o Millôr, um cara de exceção: um excepcional artista gráfico, que escrevia muito, que também produzia aforismos e haicais, que também era dramaturgo e um tremendo tradutor”, afirma Flávio Pinheiro, superintendente do Instituto Moreira Salles.

Segundo Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS e responsável pelo levantamento, nada do que ela encontrou no acervo estava em estado precário. Apenas um ou outro clipe oxidado para ser removido. Millôr mantinha tudo muito bem preservado e organizado, tanto que ela fez em cinco dias aquilo que esperavam que levasse um mês de trabalho. “O que me impressionou foi o volume muito grande de trabalhos, é uma obra monumental”, afirmou Julia.

O que não está ali pode ainda ser “garimpado” pelo mundo e vir a integrar o acervo. A família é zelosa para evitar um “derrame” de obras do artista. Na semana passada, por exemplo, surgiu um desenho num leilão no Rio de Janeiro. O proprietário disse que ganhara o desenho de Millôr quando este tinha 15 anos, mas não tinha comprovação disso. Por exigência da família, o desenho foi retirado do leilão. Ivan Fernandes diz que uma das exigências de seu pai quando era ilustrador de jornais e revistas é que seu trabalho fosse publicado apenas uma vez e que lhe fossem devolvidos os originais.

Quanto aos seus quadros, dificilmente poderão aparecer surpresas em sua produção. Fernandes conta que Millôr só fez três exposições individuais na vida: uma no Museu de Arte Moderna, em 1957, na qual não havia venda dos trabalhos (era uma mostra); outra em 1963, na Petit Galeria; e outra na Galeria Grafite, em 1975. Todas essas mostras têm vendas registradas. “Surgir um desenho do meu pai num leilão é quase uma anomalia”, diz.

O blog do IMS (www.blogdoims.com.br) publica depoimentos sobre Millôr Fernandes escritos por Fernanda Montenegro, Luis Fernando Verissimo, Janio de Freitas, Geraldo Carneiro e Sergio Augusto. No dia 9 de abril, a Fundação Mário Soares, em Lisboa, exporá 30 reproduções de quadros do artista, com consultoria do filho, Ivan Fernandes.

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Os baús do cartunista

Millôr Fernandes faria 90 anos em 2014. Seria uma ocasião fantástica para preencher uma lacuna importante da sua obra: a publicação de livros que abrangessem certos aspectos inéditos ou pouco conhecidos de sua carreira de artista gráfico. Só existe uma publicação do tipo até hoje.

Mas Flávio Pinheiro, superintendente do Instituto Moreira Salles, diz que a instituição não quer fazer nada “açodadamente”. O primeiro esforço vai ser catalogar e organizar o acervo, após sua remoção esta semana. “Mas é evidente que temos planos de fazer uma exposição e organizar publicações do Millôr pictórico”, afirma Pinheiro, fã do artista.

O consultor do acervo Millôr Fernandes será o também cartunista Cássio Loredano, que já trabalhou com a obra do lendário J. Carlos. Loredano organizou cinco livros a partir do acervo de cerca de mil originais de J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, um dos maiores artistas brasileiros da primeira metade do século 20).

O legado de Millôr poderá ser ainda escarafunchado em uma outra fonte importante nos próximos dias: sua família tem intenção de buscar nos arquivos da repressão o material do artista gráfico que sofreu censura nos anos da ditadura militar. Durante sua experiência no Pasquim, por exemplo, Millôr foi um dos mais atingidos pela tesoura da censura.

“Para você ter uma ideia, para sair uma edição do jornal, às vezes eles tinham de fazer duas edições e meia. Realmente foi um período muito violento”, pondera Ivan Fernandes, que tem intenção de aproveitar a nova lei que acaba com o sigilo de documentos do período e buscar esse material.

Daquilo que controlava, Millôr não tinha por hábito sair presenteando amigos com algum de seus desenhos. “Era como se fosse um filho para ele. Dar a alguém seria como arrancar um pedaço dele”, afirma. Ainda assim, havia ocasiões em que ele se desapegava. Fez um quadro de grandes dimensões para presentear a mulher do amigo Ziraldo. “Mas não ter recibo nem dedicatória é muito difícil”, conta Ivan Fernandes. Por exemplo: o mais próximo amigo da vida do cartunista foi o jornalista Luiz Gravatá, que possui cerca de 80 desenhos presenteados por Millôr. Mas apenas dois desses desenhos não têm dedicatória – o artista era muito cioso de sua obra.

“Para ele, era um ato de dedicação, de delicadeza. Ele podia ser um cão de vez em quando, mas em geral era muito delicado”, diz o filho, também artista, que repartia muitos gostos com o pai – exceto, talvez, a música. Millôr adorava tango, e a escola mais ortodoxa da música brasileira, como Noel Rosa, Dorival Caymmi, chegando até Moreira da Silva. Ivan sempre gostou mais do jazz americano, gente como Chet Baker, Jim Hall, Ron Carter.

Na avaliação de Ivan Fernandes, seu pai começa a se tornar o artista de excelência que se tornou a partir de 1957. “De 1945 a 1957, ele era apenas mediano”, afirma. “Mas, dali em diante, dá um salto de qualidade extraordinário, que é quando começa a usar o nanquim e o bico de pena. Logo a seguir, quando passa a usar o guache, é um outro salto de qualidade.”

Esse “upgrade” de Millôr não teve absolutamente nada a ver com sua admiração pelo artista americano Saul Steinberg, segundo ele avalia. Flávio Pinheiro concorda. “Era uma escancarada admiração, mas, como tudo mais que ele fez, sua obra era de uma extraordinária originalidade”, avalia Pinheiro.

Curioso notar que, mesmo com a sua multiplicidade de talentos, Millôr não enveredou pela escultura, apesar de brincar muito com a tridimensionalidade em alguns trabalhos. Ivan Fernandes brinca com esse aspecto. “Acho que era pela mesma razão que também não fazia pinturas a óleo: ele não gostava de nada que sujasse. Outra coisa era que ele tinha uma característica pouco conhecida, era meio estabanado. Derrubava coisas o dia todo”, diverte-se.

O ano passado foi triste para o humor brasileiro. Morreram, além de Millôr, Chico Anysio e Ivan Lessa. “Se juntar os grandes frasistas europeus e bater em um liquidificador, não dá meio copo de um Millôr”, reverenciou o jornalista Ruy Castro, quando ele foi enterrado. “Não havia um dia em que uma frase sua não iluminasse o que estivesse acontecendo de obscuro.”

A ida da obra de Millôr ao IMS faz com que ele, de certa maneira, “se reencontre com sua turma”, avalia Ivan Fernandes. Já estão lá, no acervo de literatura, as obras dos seus grandes amigos Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Carlos Drummond de Andrade.

O IMS também tem um pródigo acervo de fotografia, seu principal veio artístico: são cerca de 550 mil imagens, e aquele que é provavelmente o mais importante conjunto de fotografias do século 19 no Brasil (a maior parte dedicada ao Rio de Janeiro) e um magnífico conjunto relativo à fotografia nacional da primeira metade do século 20. Mesmo a parte que compreende as aquarelas dos artistas viajantes do século 19 (e que receberá a obra de Millôr) também existe em função de complementar o acervo fotográfico, compondo uma espécie de “pré-história” da fotografia, na avaliação de Flávio Pinheiro.

Já o acervo de música é composto de cerca de 100 mil peças, das quais aproximadamente 28 mil gravações já estão digitalizadas e disponíveis para pesquisadores no site do instituto. Entre elas, as coleções de José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi, e os arquivos pessoais de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Walter Silva, Elizeth Cardoso, Garoto e Mario Reis, entre outros. (Jotabê Medeiros)

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Jornalismo tem lugar de destaque

No estúdio de Millôr em Ipanema, além dos quadros que ocupam as paredes (o restante deles está no seu apartamento na Avenida Vieira Souto), há uma estante com cadernos iguais cuidadosamente organizados. São as encadernações nas quais o autor reuniu caprichosamente as páginas que ilustrou e produziu durante toda a carreira, desde o início na revista O Cruzeiro (na qual começou como ajudante de arquivo).

Essa deferência e o lugar de destaque mostram a reverência que Millôr tinha para com a profissão de jornalista. Estão ali todas as colunas que produziu para Correio da Manhã, Diário Popular, Pif-Paf, A Cigarra, IstoÉ, Veja, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, O Estado de S.Paulo. Foi jornalista de produção prodigiosa e influência inquestionável.

Em 1972, ele passou a presidir o maior sucesso da imprensa independente brasileira, O Pasquim. Mais do que uma experiência jornalística, a publicação legou à nossa época um time de agitadores como não se vê mais: Ivan Lessa, Francis, Fausto Wolf, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Aldir Blanc, Alberto Dines, além de articulistas como Caetano Veloso e Chico Buarque.

Millôr foi conduzido ao jornalismo pelas tiras de quadrinhos de jornal. Foi quando tinha 14 anos e começou a colaborar com O Guri, publicação dos Diários Associados. “A convivência com os comics seria fundamental para a formação de Millôr. A presença dos quadrinhos americanos era inescapável e se tornaria 'a maior e mais legítima influência' para seu desenvolvimento como escritor e humorista, como ele mesmo ressaltou. Sobretudo o herói Flash Gordon, de Alex Raymond, que copiou quadro por quadro, nos primeiros anos, marcando milimetricamente onde começava a cabeça, o braço, etc. 'Foi a maior emoção intelectual e estética de minha vida, quando os quadrinhos chegaram aqui, em 1934, importados por Adolfo Aizen. Um deslumbramento'”, diz Gonçalo Júnior em A Guerra dos Gibis. (J.M.)

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Jotabê Medeiros, do Estado de S.Paulo