Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novo papa teve de explicar ligação da Cúria com ditadura

A proximidade da cúpula da Igreja Católica com o regime militar entre 1976 e 1983 fez com que o cardeal de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, fosse chamado pela Justiça a dar explicações, na qualidade de testemunha, sobre dois episódios de violações de direitos humanos.

O mais grave foi o sequestro dos padres jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics em 1976. Os dois sacerdotes foram mantidos prisioneiros na ESMA, o mais conhecido centro de tortura e extermínio da ditadura militar. Liberados, foram para o exterior. Yorio faleceu em 2000. Jalics ainda está vivo e reside na Alemanha. Bergoglio recebeu duas acusações: a de ter retirado a proteção da Igreja, e, assim, colaborado para a sua detenção, e a de ter informado posteriormente à chancelaria argentina que Jalics tinha vínculos com o terrorismo, quando o padre tentou obter um novo passaporte no exterior.

No outro caso, Bergoglio foi alvo de uma reclamação por uma suposta omissão. Ele teria ignorado os pedidos de Estela de la Cuadra para que ajudasse a localizar a sobrinha, filha de desaparecidos políticos. A época, Bergoglio era o provincial (chefe) da Companhia de Jesus na Argentina.

O cardeal se defendeu da primeira acusação em público, em sua biografia autorizada “El Jesuíta”, de Sergio Rubin e Francesca Ambrosetti. No livro, Bergoglio narrou que os dois padres estavam em confronto com a Ordem havia um ano. O cardeal disse que chegou a advertir a Yorio e Jalics que eles corriam perigo, em razão do trabalho social que desenvolviam no bairro de Flores, em Buenos Aires. “Nos movimentamos como loucos. Estive duas vezes com Videla (Jorge Rafael, presidente) e duas com Massera (Emilio, comandante da Marinha) para obter informações sobre o sequestro”, afirmou.

Bergoglio negou ainda que tenha denunciado Jalics como “terrorista”. “Ele me escreveu pedindo uma ajuda porque temia voltar para a Argentina para renovar o passaporte. Eu escrevi uma carta às autoridades com a petição (…), o funcionário que me recebeu perguntou em que circunstâncias Jalics tinha saído do país. Eu disse: ‘Ele e seus companheiros foram acusados de ser guerrilheiros, mas isso não tem fundamento’. Quando me denunciaram, esqueceram que eu fiz esta ressalva”, explicou.

Direitos humanos

No livro, de 2010, o cardeal afirmou: “o golpe de 1976 foi aprovado por quase todos, inclusive a imensa maioria dos partidos políticos. Ninguém pode lavar as mãos. Estou esperando que as outras corporações peçam perdão, como o fez a Igreja”. O episcopado argentino fez um “mea culpa” formal em 2000.

A relação entre Bergoglio e o kirchnerismo, profundamente vinculado ao ativismo na área de direitos humanos, é péssima, em função das críticas do cardeal à conduta do então presidente Néstor Kirchner, marido e antecessor da atual presidente Cristina Kirchner, falecido em 2010.

Em 2004, em um “Te Deum”, ato de ação de graças pela independência argentina tradicionalmente celebrado na catedral de Buenos Aires, na presença do presidente, Bergoglio afirmou que “copiar o ódio e a violência do tirano e do assassino é a melhor forma de ser seu herdeiro”, em um momento em que Kirchner recolocava o tema das violações de direitos humanos em primeiro plano.

O presidente passou a viajar para o interior em todos os aniversários da independência, para não encontrar Bergoglio, comportamento seguido por Cristina.

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César Felício, do Valor Econômico em Buenos Aires