Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Visões opostas sobre o papel na ditadura

Quando o nome de Jorge Mario Bergoglio foi confirmado como o sucessor de Bento XVI, um debate se instalou na Argentina: se o ex-arcebispo de Buenos Aires foi – ou não – cúmplice da última e mais violenta ditadura do país, entre 1976 e 1983. Familiares de vítimas asseguram que Bergoglio colaborou com o regime militar em casos de sequestro e roubo de bebês nascidos em centros clandestinos de tortura. Outros representantes de associações de defesa dos direitos humanos, entre eles o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, garantem que Bergoglio não integrou a lista de sacerdotes que ajudaram os militares na perseguição aos opositores.

Mais uma vez, a sombra da ditadura voltou a pairar sobre o país. A ferida continua aberta para setores de uma sociedade que ainda parece longe de virar uma das páginas mais dolorosas de sua História. E os fantasmas do passado estarão presentes na posse do Papa Francisco como, também, na coroação da futura rainha da Holanda, a argentina Máxima Zorrieguieta, prevista para o próximo dia 30 de abril. O pai dela, Jorge Zorrieguieta, foi funcionário do governo militar e, assim como não presenciou o casamento da filha, em 2002, não poderá, por decisão da Coroa Holandesa, estar presente na cerimônia.

Pérez Esquivel não é o único que defendeu publicamente a atuação de Bergoglio durante os anos de chumbo. Em entrevista ao GLOBO, a ex-ministra do Desenvolvimento Social Graciela Fernández Meijide, que integrou a histórica Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), criada pelo governo Raúl Alfonsín, assegurou que, durante toda sua investigação, o nome de Bergoglio jamais foi mencionado.

– Outros nomes, como o do padre Christian Von Wernich (primeiro representante da Igreja a ser julgado e condenado por crimes da ditadura), apareceram e estão no livro “Nunca Mais” – lembrou a ex-ministra do governo Fernando De la Rúa, que tem um filho desaparecido.

Identidade emprestada perseguido em fuga

Mas a posição de Graciela em relação a Bergoglio não é compartilhada por outras mães, como María Pilar, que ontem participou da tradicional rodinha das quintas-feiras das Mães da Praça de Maio. Para ela, o Papa argentino tem responsabilidade sobre crimes cometidos na ditadura, seja por conivência ou omissão em relação às denúncias de abuso dos militares.

– A Igreja toda é de direita e está afinada com o militarismo. É assim, sempre foi – disse.

Como muitas de suas companheiras, Pilar é descrente quanto a possíveis ações do novo Papa para elucidar pelo menos parte dos desaparecimentos.

– Esse Papa é cúmplice da tragédia que se abateu sobre este país – sentenciou.

Cercada por jornalistas do mundo inteiro, as Mães da Praça de Maio pretendem, apesar de suas denúncias públicas, marcar uma audiência com o Papa Francisco nos próximos meses. Acreditam que seria importante uma manifestação pública do Pontífice sobre a necessidade de uma resposta ao que aconteceu na Argentina durante a ditadura.

– Não acredito que nossa causa vá ser mais amparada a partir de agora. Muita coisa está encoberta neste país há anos, e não vai ser um Papa argentino que vai jogar uma luz sobre a situação em que vivemos – afirmou Nair Romero, ostentando no pescoço um cordão com a foto da filha, Patricia Romero, desaparecida em 1979.

As denúncias sobre a suposta cumplicidade de Bergoglio partiram, principalmente, do jornalista Horacio Verbitsky, colunista do jornal “Página 12”. Em suas investigações, divulgadas pelo jornal e em livros sobre o papel da Igreja durante a ditadura, Verbitsky menciona o caso do sequestro de dois padres jesuítas, Orlando Yorio e Franz Jalics. A família de Yorio, já falecido, garante que Bergoglio “os entregou e é o autor intelectual de ambos sequestros”. Essa mesma versão, defendida por Verbitsky, foi descartada ontem por Pérez Esquivel.

– Houve bispos que foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não – enfatizou o Prêmio Nobel da Paz.

A mesma posição é defendida com unhas e dentes pela advogada e ex-juíza Alicia Oliveira, amiga do Papa há mais de 40 anos. Durante a ditadura, assegurou ela, Bergoglio ajudou muitos perseguidos políticos a saírem do país.

– Lembro-me muito bem do caso de um jovem muito parecido com ele, a quem o novo Papa lhe entregou seu próprio documento de identidade para que pudesse fugir – contou. – Tenho plena convicção sobre a honestidade de Bergoglio, não posso dizer a mesma coisa das pessoas que o acusam injustamente.

Ela contou, ainda, que durante o tempo em que foi obrigada a viver na clandestinidade, o Papa a ajudava para poder ver seus filhos quando estavam na escola.

– Bergoglio me ajudou muito e ajudou muita gente – insistiu Alicia.

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Janaína Figueiredo e Flávio Freire, do Globo