No último dia 7 de abril, foi apresentada a segunda versão do substitutivo do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) para o projeto de lei 29/2007, que modifica a regulamentação da TV por assinatura. Essa versão, que já entrou na pauta de votação da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, é resultado da pressão dos vários setores interessados, o que fica evidente quando comparada com o substitutivo anterior.
O impacto dessa versão na atual configuração do mercado é consideravelmente menor que o da primeira. A pergunta que fica para quem observa o processo por detrás das lentes do interesse público é se terá sido muito barulho por nada, se teremos andado por meses para chegar em um lugar muito próximo de onde partimos. Para tentar responder a essa questão é preciso entender o que muda de fato no cenário da TV por assinatura se aprovada essa versão do projeto.
A gênese do PL 29 já explicitava as diferentes forças atuando sobre a questão. Desde o ano passado, a CCTCI tem discutido esse tema, a partir da demanda das empresas de telecomunicações em participar do mercado de distribuição da TV a cabo, o que é hoje proibido. Essa foi a motivação do primeiro projeto apresentado, que determinou uma abordagem pontual para a questão, sem abrir espaço para a discussão de uma lei geral de comunicações que pudesse tratar o tema de forma mais ampla. Obviamente que alguns dos interesses das teles conflitavam com os interesses dos radiodifusores, especialmente da Globo, já que hoje o sistema Net e Sky controla mais de 80% do mercado. Isso fez surgir um segundo projeto tratando do tema, que mantinha o espaço dos radiodifusores e segurava o avanço das teles.
Alguns meses depois, dois outros projetos foram apresentados, desta vez trazendo alguns novos elementos mais preocupados com o interesse público, buscando dar espaço para a produção nacional e independente na TV por assinatura. Todos esses projetos, contudo, mantiveram o foco nas questões de conteúdo da TV por assinatura – especialmente em relação a quem pode distribuir e que tipo de conteúdo pode ser distribuído – sem incidir sobre questões de infra-estrutura, o que parece contraditório em tempos de convergência tecnológica. A tramitação deles se deu em conjunto; a primeira versão unificada foi aprovada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, de onde seguiu para a CCTCI, onde a relatoria foi entregue ao deputado Jorge Bittar (PT-RJ).
A correlação de forças
A partir daí, acirraram-se as pressões. Bittar apresentou um primeiro substitutivo no início de dezembro, e recebeu 145 emendas, representando os mais diversos interesses. As teles buscavam garantir sua possibilidade de distribuir conteúdo, e queriam a aprovação rápida do projeto. A Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) entrou em rota de colisão contra as cotas de produção independente e conteúdo nacional, alegando que o espectador perderia direito de escolha (qual direito de escolha é esse eles nunca deixaram claro). A Associação Brasileira dos Programadores de TV por Assinatura (ABPTA), que representa os principais canais internacionais, também se movimentou buscando derrubar a exigência de cotas de conteúdo nacional nesses canais.
A Globo, que vinha quieta, passou a enfrentar especialmente a exigência de cotas para produção independente – apreensiva pelo risco de perder espaço no mercado de produção de conteúdo – e contra o aumento de poder da Ancine – na prática, a emissora não aceita qualquer regulação que incida sobre o conteúdo. Produtores independentes e entidades da sociedade civil, por sua vez, se movimentaram em defesa das cotas de conteúdo nacional e independente, do papel da Ancine como agência reguladora e em favor da desverticalização plena do mercado. No final do processo, emissoras dos grupos Band e Abril perceberam que a posição da Globo beneficiava unicamente aquela empresa, e fizeram a opção tática de se alinhar aos que defendem as cotas.
O grande problema é que há um enorme desequilíbrio de força entre esses atores. As teles têm um enorme cacife econômico; os radiodifusores, um cacife econômico menor (mas ainda grande) e um enorme cacife político. Para os produtores independentes e aqueles que defendem interesses difusos, sem a estatura econômica dos dois primeiros, restava a esperança de que os deputados firmassem pé para equilibrar esse jogo. O resultado expresso nesse novo substitutivo, no entanto, não é nada equilibrado.
O que muda de fato?
Em relação ao primeiro substitutivo, a segunda versão trouxe recuos significativos, em meio a algumas mudanças pontuais positivas. Apontados como ‘ajustes’, esses recuos na verdade desvirtuam parte das intenções do projeto. Pois vejamos.
Na primeira versão, os canais estrangeiros que no horário nobre veiculam majoritariamente conteúdo qualificado (como filmes, documentários, seriados e programas de debates e comentários) deveriam reservar 10% do tempo do horário nobre para veiculação de conteúdo nacional independente. Na nova versão, mantém-se a obrigação de 3 horas e meia semanais (o equivalente a 10% do horário nobre) de conteúdo nacional, mas apenas metade desse tempo é reservado para produção independente, o que significa 1h45 por semana.
A nova versão isenta de cotas os canais não direcionados ao Brasil (canais que não dublem nem legendem sua programação, por exemplo) e permite às programadoras que controlam mais de um canal intercambiarem cotas entre eles (a exibição na HBO de um filme nacional de 2 horas, por exemplo, dá conta das cotas diárias de quatro canais da programadora). Além disso, flexibiliza a cota para canais pan-regionais, cujo sinal único é transmitido para vários países (por exemplo, para toda a América do Sul), deixando a cargo da Ancine a avaliação sobre se a programadora tem ou não de implantar as cotas. O que isso significa na prática? Que se der trabalho cumprir a lei esses canais poderão ser isentos dela.
Mas a principal mudança ocorreu na cota que estabelece a obrigação de os pacotes vendidos conterem um certo número de canais nacionais. De 50%, na primeira versão, eles caíram para 25% na segunda. Desses canais, pelo menos 1/3 devem estar na mão de programadoras independentes. Todos eles devem veicular pelo menos oito horas diárias de conteúdo brasileiro, das quais quatro deverão integrar espaço qualificado. Dessas, pelo menos duas horas devem estar no horário nobre e uma hora deve ser de produção independente. Contudo, além de modificar o valor das cotas, o projeto impõe um ‘teto de obrigações’, que faz com que as cotas sejam válidas só para pacotes com até 40 canais. Com isso, as emissoras terão que garantir no máximo 10 canais brasileiros e 3 canais independentes.
Para entender o impacto dessas regras, vale pegar um exemplo. O menor pacote digital oferecido pela NET (Advanced Digital), além dos canais de veiculação obrigatória (os da TV aberta e os canais universitário, comunitário, legislativo etc.), tem os seguintes canais brasileiros: Futura, Shoptime, Canal Rural, SporTV, SporTV2, GloboNews, GNT, MultiShow, Canal Brasil, ESPN Brasil, e Record News. Ou seja, ele já carrega onze, quando o projeto obriga que sejam no mínimo dez. Shoptime, Canal Rural, ESPN Brasil e Record News podem ser considerados canais independentes. São quatro, e a nova lei obriga que sejam três. Assim, toda a base digital da NET já está conforme o PL e nenhum canal nacional (independente ou não) precisará ser incorporado.
Para completar, o projeto ainda determina que uma produtora independente não precisa ser totalmente independente. As empresas de programação, empacotamento e distribuição, assim como as concessionárias de televisão aberta, podem deter até 20% do capital votante da produtora, e ainda assim ela será considerada independente. No caso das programadoras independentes (responsáveis por pelo menos um terço dos canais nacionais veiculados nos pacotes), não há nenhuma restrição aos radiodifusores, o que significa que canais da Band e da Record serão, para todos os efeitos, independentes.
Regulação e infra-estrutura
Do ponto de vista da infra-estrutura, o projeto também avança pouco. As teles poderão ter 100% das distribuidoras e empacotadoras, que são justamente as atividades nas quais eles querem atuar. A presença do capital estrangeiro é 100% liberada na atividade de distribuição, sendo restrita em até 30% apenas nas produtoras e programadoras nacionais. O serviço de distribuição será prestado em regime privado, o que isenta as empresas de qualquer obrigação de universalização da cobertura, de ter que seguir metas de qualidade ou de um controle mais rígido nos preços. Também não há nenhuma indicação de que essa rede instalada tenha que ter caráter público e único, como determina atualmente a lei da TV a cabo.
Embora essas definições nunca tenham saído do papel, elas criavam condições para que as empresas fossem obrigadas a ceder capacidade excedente de sua rede para uso de outros interessados, num processo de unbundling.
O projeto avança na regulação das comunicações ao dar à Ancine o poder de regulação sobre a programação e empacotamento. Entretanto, ao contrário do anteriormente anunciado, a agência não poderá instruir o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica em questões concorrenciais. A regulação da etapa de distribuição segue, por sua vez, nas mãos da Anatel.
Um ponto positivo do projeto, talvez a principal novidade e que não tem merecido a devida atenção, é a injeção de aproximadamente 300 milhões de reais para estimular a produção audiovisual. Ela virá de uma realocação de parte da verba destinada ao Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), pago por todas as empresas de telecomunicações e radiodifusão. O projeto determina que 30% dessa verba deverá ser destinada para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 10% para TVs universitárias e comunitárias. Isso cria, pela primeira vez, uma fonte fixa de recursos para esses canais, que são proibidos de veicular publicidade.
Em suma
Acima de tudo, o novo substitutivo é resultado claro das fortes pressões empresariais. Da maneira como está, ele contempla os interesses das teles, que conseguem entrar no mercado. Para os grandes grupos que controlam a TV por assinatura, especialmente a Globo, muda pouco. Com as pressões feitas, elas conseguiram diminuir sensivelmente as cotas, o que faz com que os avanços para a produção nacional e independente sejam tímidos.
De toda forma, a definição dessas cotas abre uma janela importante. Pela primeira vez uma lei brasileira determina claramente a obrigação de veiculação de produção independente na televisão. Embora a Constituição também preveja essa obrigação para a TV aberta, há 17 anos os radiodifusores têm impedido a aprovação de uma lei que regulamente em que termos isso deve se dar.
Em resumo, o projeto melhora um pouco o atual quadro de verticalização, garante um espaço mínimo de produção nacional nos canais estrangeiros, abre uma janela (basculante, a bem da verdade) para a produção independente e dá incentivos financeiros à produção. Ainda assim, para quem acompanhou todo o processo, fica uma sensação de frustração. Mais uma vez opta-se por um projeto de lei fragmentado em vez de se enfrentar a necessidade de uma lei geral de comunicações. Mais uma vez, os interesses dos grandes grupos empresariais da comunicação se mostram muito mais fortes do que o interesse público. Para mudar essa lei, não parece haver PL que dê conta.
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Do Observatório do Direito à Comunicação